O SAPATEIRO DA TRAVESSA

1.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

O seu martelo golpeava a bigorna pequena e produzia o timbre metálico e sonante na Travessa do Paiva. A serenidade dessa via que liga a Rua Central à Praia Grande, permitia que a sua martelada fosse bem audível, desde o posto da Polícia Militar do Palácio da Praia Grande até ao edifício da Imprensa Nacional.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Se outros atraíam com a voz, o seu pregão era a batida aguda com compasso que começava lenta para depois acabar abruptamente. Todos os dias à tarde, montava a sua banca, junto à extensa parede do Palácio, essa figura de cabelos grisalhos, pele seca e morena, franzina e frágil de Lam Kong, que tinha por hábito agachar-se, sentando-se sobre o seu banco de madeira, de cigarro no canto da boca, ficando à espera da clientela que lhe levaria pares de sapatos para conserto.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

E todos os dias galgava a travessa com a pinga sobre o ombro com duas caixas penduradas a cada extremo, uma para a sua ferramenta e outra para os sapatos já prontos. Tão hábil no seu ofício  e tão conhecedor do pé humano como era, vinha gente de outras paróquias a solicitar a sua arte.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Gente de todo o género acorria aos seus préstimos, a começar com os polícias militares, os rondas. Nos tempos mais remotos, apareciam-lhe os praças de Goa e os landins que lhe entregavam restos de sapato, tal era o estado lastimável disso que em princípio devia destinar-se à protecção dos pés. Mas Lam Kong não se queixava, ao invés, executava o  trabalho com igual mestria. Contanto que lhe pagassem, o mínimo que fosse. Não estava ali a pedir esmola, nem para ser um bom samaritano. Todo o trabalho deveria ser recompensado. E…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

O seu bom nome chegava às bocas e ouvidos de gente mais fina. Segundo rumores mais ousados do bairro, até o Governador e esposa solicitavam os seus bons ofícios, tanto quanto a discrição lhes permitia…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

Porém, as poucas patacas que recebia mal pagariam a medicação que a sua netinha necessitava. Lam Kong preferia não pensar nela, para que a dor de coração não estorvasse o ritmo do seu ofício. Tinha de labutar sem parar. A sua netinha tinha direito de brincar, de correr pelo jardim, de gritar, de fazer toda a série de traquinices a que só um avô acharia piada. Não deveria estar na cama, sem prazo. Contava sempre o dinheiro ganho do dia e  calculava quanto sapato teria de consertar nessa semana, como já fizera em tantas outras semanas. 

Havia  também quem os abandonasse, ou pura e simplesmente não os levantasse a tempo, ignorando o seu pré-aviso, de que faria tudo para convertê-los em dinheiro, vendendo-os na melhor forma possível. Sem desperdício algum, a sua netinha não lhe permitiria inutilizar nada, nem tornar o seu trabalho em vão. Era isso que sempre pensava quando reconstruía a sola de um botim, emendava um buraco provocado pela secura do couro. 

Já andava nisto havia dois anos.

Travessa do Paiva, Macau. 1945.
George Smirnoff

2. 

Numa das tardes de Outono, em que a neblina caíra como uma fina rede translúcida sobre o bairro, chegou-lhe um moço que lhe entregou um par de calçado feminino. De modelo modesto, apresentava-se em manifesto estado de degradação. O tacão rachado num deles, totalmente gasto noutro, havia riscos, partes desgastadas com o tempo.

O senhor conserta-me isto?

– Isto vai requerer muito trabalho, rapaz.

O moço não respondeu.

– A flor que devia estar aqui é de difícil reparação. Não tenho tinta para isto. Tens a certeza que tua mãe ainda os quer?

– Por favor, sei que o senhor conserta tudo. Corri para todos os cantos e todos me disseram para vir ter consigo. Vim do bairro de Santo António.

– A tua mãe deve perceber que lhe vai custar dinheiro. Não era melhor comprar uns novos?

– Ela adora estes sapatos, são do seu casamento.

– Mas, isto rapaz, vai levar tempo para…

– Preciso deles amanhã…

– É impossível, o trabalho que isto requer…

– Ela está de cama. Vai ficar muito feliz e se calhar melhorará, tenho  a certeza disto.

Lam Kong fixou no catraio de feições ocidentais, olhos grandes e amendoados, mas claros, pele alva e cabelo escuro, de camisa amarela de linho e calções de ganga. A voz era pausada e muito suave. Falava tão bem chinês.

– Que idade tens, rapaz?

– Tenho oito – e antes que Lam Kong interrogasse mais – vivo com a minha avó.

– Sabes, vou ter de interromper tudo para fazer o que me pedes. Isso custa dinheiro, diz à tua avó. Vou precisar dele.

– Apenas peço o favor … a minha mãe vai adorar. Amanhã, pode ser? Rogo-lhe.

Antes que Lam Kong pudesse responder, viu o moço a correr em direcção à Praia Grande, deixando consigo o par dos mal tratados saltos. Num lapso de segundo, não sabia o que fazer com o que tinha nas mãos. Ademais, não tinha fixado o valor pelo trabalho. 

A imagem da netinha interpôs-se, então, no seu pensamento. Não era de reclamação, mas algo que lhe murmurava no íntimo que aceitasse o novo trabalho. Com sacrifício do restante.

Começou por estudar a extensão do dano. Ambos os tacões precisavam de reparo sério, com pedaços de madeira a soltarem-se, rasgando o tecido de couro branco que cobria o calçado. Felizmente, ainda existiam as alças que se mantiveram incólumes ao desgaste, mas as palmilhas já deixaram de o ser para se tornarem em algo semelhante a pasta de papel seco e apodrecido. A planta de ambos os sapatos estava descolada e Lam Kong sentiu pena da sua dona, pois devia ter pés finos e frágeis que o modelo impunha. Havia ainda que reconstituir uma flor de cor prateada a ser colocada sobre a biqueira. Fez as contas e iria passar uma noite naquela brincadeira!

A Igreja de São Lourenço badalava as seis. A travessa já era calma e mais se tornou com o cair do dia. O enxame de libelinhas pairando sobre o jardim do Palácio anunciava um tufão e outros bichos que povoariam a noite começavam a chegar. 

Lam Kong caminhava com a pinga ao ombro carregando a ferramenta e outros sapatos cujo destino ficara suspenso com a tarefa a que se comprometeu, sem saber como explicar. Instintivamente passou pela lojeca de quinquilharia do velho Kuan, na Rua Inácio Baptista, onde se encontrava tudo o que uma razoável imaginação permitia abarcar, numa confusão organizada com que só o seu dono sabia lidar. Aí descobriu colas, tintas, botões, alfinetes, couro sintético de diversa espessura, arame, pastas para o remendo de buracos e outras imperfeições, enfim, tudo o que precisava para a grande aventura da noite. Mas não, não tudo. Como iria polir e colorir o produto final?

É um grande problema Ah-Kong. – disse o velho Kuan, enquanto sugava o fumo do seu cachimbo de bambú – Mas, és um sapateiro, não?

Nem lhe interessara explicar como aceitara aquela proposta insana. 

E a tua loja não vende “tudo e mais alguma coisa” como anuncia?! 

Sabia que era a frustração que alimentava a parvoíce da sua resposta. O velho Kuan tão pouco se importou. Pousou o cachimbo, calçou os seus chinelos  japoneses, ajustou a sua camisola interior. Fazia isto quando tinha que tratar algo com seriedade. Sentiu que o seu velho amigo Lam Kong estava em apuros. Foi a um quarto, não mais organizado que a recepção da loja, onde a mulher cozinhava o jantar, lavava a roupa e criava uma galinha. 

Não sei se isto serve, não percebo nada de tintas. Mas para aquilo que me explicaste é capaz de funcionar. Que cor queres?

Lam Kong olhou estupefacto para as quatro latas cilíndricas de tinta branca que o velho daí trouxera.

Segundo meu filho, tens que chocalhar a lata e carregar neste botão vermelho. E a tinta sairá uniformemente. É daquelas coisas modernas que vieram para o mercado – sentou-se de novo na sua cadeira de vime e retomou a sua cachimbada – Pagas-me depois. E levas o secador de cabelo também.

Lam Kong continuava mudo com ar de desânimo ante a imagem revoltante do estado de degradação do calçado.

Precisas dos meus botins? – Sorriu o velho Kuan. – Ah Kong, o que tem de ser feito, será feito. És um bom homem, não te esqueças disto. – acrescentou depois  e ligou a telefonia, enquanto se deliciava com o sabor húmido do tabaco.

3. 

Levava um pouco mais de peso do que o habitual, quando descia a sinuosa Rua Inácio Baptista rumo à da Praia do Manduco, onde se marcava o fim do “bairro cristão”. Não tanto pela tralha que carregava, quanto o propósito daquilo tudo. A imagem da netinha e depois a do catraio, moviam-no numa contradição que naquele momento confuso lhe fazia sentido.

A mulher preparava a canja com carne de porco e ovo salmoirado quando ele chegara a casa. Pousou a sua tralha e sentou-se exausto da eternidade do dia.

Ela está a dormir. Hoje comeu bem – sorriu, enquanto vertia a canja na tigela para o marido – Até quando terá ela de sofrer essas dores? Coitada, que mal fez ela para merecer isto? É a maldição da nossa filha ter casado com aquele pulha. A doença dela começou depois do casamento, lembras-te? A Mei-mei carrega este mal que aquele maldito lhe lançou!

Lam Kong manteve-se impávido ante o que mulher repetia todos os dias. Compreendia o seu estado de  inconformação, mas já não a levava em paciência. Provavelmente, já tão calejado de a ouvir bater tanto na mesma tecla, sentia-se agora sentimentalmente imune ao fastidioso flagelo da mulher nos seus ouvidos.

Pelo menos, não reagia com a agonia daquele dia em que vira partir a filha, vítima de uma galopante tuberculose. Não sabia se tinha a ver com sinas, ou se o genro tinha alguma culpa nisso, o certo é que este a abandonara logo que soube da doença. Acamada e ventilada, a filha não falava, pois nem forças tinha para tal, mas o seu olhar pedia clemência para o bem estar da sua bebé Mei-Mei, rogava ao pai que fizesse tudo ao seu alcance para velar pela saúde da petiz que acabara de nascer. Lam Kong apenas segurara a sua frágil mão, assentindo com a cabeça, enquanto o frio se apoderava do corpo e anunciava o momento. Deu ainda para lhe colocar sobre o peito a velha boneca de saia verde a sorrir, que lhe oferecera quando era pequena, dando-lhe um adeus silencioso, com a promessa de que a netinha estaria sempre bem entregue. Mas ela já não o ouvia. Não chorou ao estertor, ao arrepio da tradição chinesa de uma auspiciosa despedida. Queria antes que a filha pudesse transitar suavemente para  uma outra existência e se remisse da insustentável dor, partindo tão leve e inocente, quanto veio a este mundo para uma vida tão cruelmente efémera.

Não quis culpar o genro, não obstante a ignomínia do seu abandono. Preferiu aceitar o destino e selá-lo, partindo para uma realidade nova. A netinha exigiria a atenção que o ódio iria comprometer. Era melhor guardá-lo e soltá-lo de vez em quando, sempre que estivesse apenas consigo ou depois de uns copos de vinho de arroz com o velho Kuan, quando pudesse chorar e gritar impropérios a Kun Iam, ainda que a deusa o não entendesse.

Mais pessimista e rancorosa estava a sua mulher, que vestia a pele de mãe ferida que se via impotente para uma reviravolta e para traçar um rumo para a bebé Mei-Mei. A sina pairou sobre a família, entendeu, e a única explicação teria sido o “pulha”, por quem passou a nutrir um ódio das entranhas. Passou também a ter a certeza de que o mal se instalara em casa e que não descansaria enquanto os três se mantivessem vivos. 

Muito altercara com o marido, que não aceitava os seus argumentos, chamando-lhes de irracionais. Até que um dia se virou para ele com a notícia de que a Mei-Mei manifestava sinais de uma lenta progressão degenerativa de atrofia muscular. E teria que ser tratada com urgência, ir a Hong Kong com frequência.

Era mais uma desgraça que se abatia sobre a família. A mulher venceu a discussão, porém o seu triunfo sabia a fel. Muitas rezas encomendou e muito bonzo visitou a casa, mas nada alterara o trilho para o abismo.

Lam Kong achou que os deuses tinham mais que fazer e não perdeu tempo para tratar da melhor forma de ganhar o dinheiro, pelo menos para a deslocação a Hong Kong. E numa das noites de sám cheng, o velho Kuan, o taciturno que falava mais com olhos e trejeitos, escutou a história ao sabor da cachimbada, foi ao quartinho e depois daí voltou com um par de botins de tropa a cair aos pedaços, com sola lastimável, numa amálgama indefinível de cabedal, borracha e couro, com terra e dejectos secos à mistura. E foi lapidar ao entregar-lhos.

O meu irmão usava-os quando encontraram o seu corpo, na guerra com os “lo pak tau”. Se me conseguires pôr isto a funcionar como sapatos, terei muito trabalho para ti. Tenho gente das obras que vem comprar material miúdo. Andam descalços porque já não têm outra coisa para cobrir os pés. 

O níquel soara mais alto e inspirara o engenho, quando a escolha sumira. No dia seguinte o velho Kuan era um homem feliz que se reconciliara com o passado. Lam Kong renovou os botins do irmão numa noite e não tardara haver gente descalça a alinhar-se à porta da lojeca de quinquilharia para o conserto do seu calçado, como tinha prometido o Kuan. Durante dois meses, trabalhara sem parar renovando calçado, tornando-o utilizável, protegendo pés miseráveis de calo gasto.

Num dia de domingo, porém, apareceu-lhe algo novo. Uma senhora de feições ocidentais parara diante dele.

Também consertas isto? –  entregou-lhes um par de saltos altos, com tacão solto a solicitar sério reparo.

Posso tentar, minha senhora. Vai-lhe custar é dinheiro. Terão de ser trinta patacas e precisarei de três dias.

– Vou-lhe pagar sessenta e quero-os prontos amanhã!

Nessa noite, aos copos com o velho Kuan, desabafava sobre a falta de tempo, sobre essa “gente bárbara” que exige muito. Este, invariavelmente escutou-o sorumbático e apenas encolheu os ombros:

Lembras-te dos botins do meu mano? Então, não consegues?

Lam Kong não rabujou mais, aquiesceu e numa assentada emborcou o sám cheng. Suspirou e debandou. No dia seguinte a bárbara senhora desfazia-se em sorrisos, pelo trabalho meticuloso que ele fizera aos seus saltos e acabou por lhe pagar sessenta e cinco patacas, prometendo-lhe que traria mais gente. E mais gente veio, oriunda da Igreja de São Lourenço, logo após a missa ou catequese. “Gente branca” que falava chinês, mais exigente, com calçado mais complexo.

Ah Kong, talvez seja altura de ires para outro lado – disse-lhe um dia o velho Kuan – Aqui só aparece gente desgraçada. Precisas é de gente que pague.

O velho sagaz sabia que era isso que ele precisava de ouvir. Duas semanas depois, fixou o seu estaminé ambulante junto ao mural do Palácio da Praia Grande, não porque a Travessa do Paiva fosse um local concorrido, mas porque assim, pensava, poderia atrair mais gente branca que pagaria muito mais que os míseros avos da mais humilde gente descalça da construção. 

Haveria, no entanto, que inventar um chamariz. Passou o dia todo a pensar em vão em pregões e, num acto de desespero ante a falta de imaginação, deu uma pancada na bigorna que ecoou pela pacata Travessa do Paiva toda. E assim “toc, toc, toc-toc-toc-toc!” passou a ser o seu mote de guerra, e entre a gente branca ficou conhecido por “sapateiro tóc-tóc”.

A tosse despertou-o da erradia divagação  pela memória e atraiu-o para o quarto da netinha. Deve ter sido a saliva que se avolumou na sua boca, pensou. Mirou a petiz e comoveu-se com o profundo sono em que esta mergulhara. Reparou no movimento do seu frágil peito e sentiu a segurança que transparecia no seu pequeno rosto de menina que sucumbia à paz da noite. Não pensou na injustiça, mas tão só na serenidade que ela merecia. Era tão bom que todas as noites tivessem este desfecho de sossego. Compôs os desgrenhados cabelos que cobriam o seu nariz e notou como os seus lábios desenhavam um sorriso, as covinhas salientavam-se, sugerindo sonhos lindos que desfilavam naquela mente imaculada, de quem não sabe o que espera do mundo.

Contudo, nessa noite tinha trabalho que o desviaria do seu propósito diário. Iria dar crédito a uma causa que nada tinha a ver com a menina, iria fazer algo à margem da sua obsessão. Talvez estivesse junto dela, por descargo de consciência, algo que a sua mulher não entenderia. Talvez estivesse ali a pedir a sua aprovação.

Do vizinho vinha a transmissão da rádio “Vila Verde” e escutara a voz galvanizadora de Ma Si Chang, o orgulho da ópera de Cantão. Acendeu o cigarro, era altura de começar a aventura da noite.

4. 

A pinga pesava mais no dia seguinte, muito embora não carregasse mais do que era o habitual. O que era novo era o par de sapatos de salto, os mais belos que alguma vez vira na sua vida. 

Sentou-se junto ao mural, no local onde, por mera tolerância oficial, fixara o seu estaminé. Nesse dia não assinalou a sua presença com a martelada do costume. Preferiu apreciar o seu trabalho da noite anterior, procurando desvendar defeitos que pudessem ainda subsistir. Sabia que nunca atingiria a perfeição, mas deu-se por satisfeito. Era um reles, sabia. Todavia, sem dar conta nem valor,  tinha postura de artista.

Olhou em direcção à Praia Grande e não havia sinal de criança alguma, apenas oficiais de exército portugueses que entravam e saíam da porta lateral do Palácio. Teria o catraio ideia alguma de como tudo se passou em sua casa ontem?

Tantas vezes trabalhara na calada da noite, em que o bairro se rendia ao sono, em que se ouviria o chirriar do grilo, o assobio seco do vento norte atravessando a rua estreita da Praia do Manduco, o bater das asas de morcegos e de aves nocturnas, o miar dos gatos em cio, interrompidos pelos passos do chon keng, o polícia de ronda, pelo pregão merencório do vendedor nocturno de papos secos, ou então pelo som do er-hu do vizinho. O odor do bairro, salpicado com maresia, champaca, frutos salmoirados e achares, tornar-se-ia mais intenso ao cair do dia, quando todos retornassem à casa e o deixassem exalar-se e recuperar o fôlego para o dia seguinte.  

Em casa, o mundo não era muito diferente, porém o silêncio era dono das suas emoções. Tornava mais audíveis as vozes da sua mente, as quais por sua vez condicionavam a viagem do seu espírito. A voz que mais ouvia era a da sua filha, a do seu primeiro “papá”,  dos seus gritos de alegria ao baloiço, das conversas com a boneca, dos queixumes fazendo beicinho, do anúncio da sua gravidez, do seu casamento, da sua doença, do seu adeus. Outras vozes sobrevinham, como a dos murmúrios da Mei-Mei, da aspereza da mulher, da sabedoria do velho Kuan. Tudo isso ao mesmo tempo, porque o silêncio impunha que assim fosse, tornava-o vulnerável, agrilhoava-o a uma condição de inelutabilidade a que ele indulgentemente se deixava prender.

Mas nessa noite o silêncio foi outro. Bem mais calmo, sem outra voz que não fosse a dele próprio, acompanhada da telefonia do vizinho que transmitia a ópera cantonense trágica de Tai Nui Fa. Sentiu-se liberto de tudo, como se tudo o quisesse envolto nessa causa da noite. A voz cristalina de Pak Sut Sin atravessava o bairro adormecido, como o er-hu  faria, enquanto ele desmanchava os despedaçados sapatos, peça por peça, alisando-os com a lixa fina, desnudava os calçados da pele dilacerada, recompunha os tacões de madeira, colando os pedaços que se destroçaram e martelando peças metálicas para dentro dos mesmos, que sustentariam o peso de um corpo. Não olhara para horas, apenas para os pezinhos imaginados, para o calçado simples e elegante que tinha em mãos. Notou que não havia sinal de rompimento dos lados, como teria acontecido, se a dona tivesse pé chato ou alargado. Os da mãe do menino eram certamente finos e elegantes. A senhora não pesaria muito, pois não acusavam desgaste nos calcanhares, muito embora a zona palmar não tivesse resistido à erosão do tempo. Deveria ser uma senhora distinta e de modos aprumados, como era o menino de olhos grandes e amendoados da Travessa do Paiva.

O estado de degradação da flor da biqueira permitia tão-só a sua substituição. E assim imaginou o que a senhora fina e leve admitiria sobre os seus pés. Teria que ser uma flor simples, para um modelo modesto, mas nobre pelo suposto estatuto social da dona. Uma rosa simplificada seria uma solução sensata e bela. Não perdeu mais tempo e, acto contínuo, viu-se a cortar em dobro a folha de couro sintético em três séries de pétalas para cada sapato, para se sobreporem umas às outras. Não satisfeito ainda, colocou ambos os seriados ao lume para que as extremidades se derretessem, curvando-se, ora para cima, ora para baixo, numa aleatoriedade natural própria de uma flor. 

De repente, o olhar do miúdo interrompera a sua concentração. O que teria feito este correr e implorar? Não tinha condições de saber. Mas sabia que precisava de fazer algo para a mãe, provavelmente, prostrada na cama por doença. Quem sabe, muito doente. Ao menos fazê-la sorrir com os sapatos que muito amara. Talvez fosse isso a razão da sua consternação, o seu abandono de tudo para acorrer ao pedido do miúdo. E ao lembrar-se da filha, sentiu a mesma impotência para contrariar a violência da tuberculose. Se ao menos pudesse tê-la feito sorrir no momento do seu suspiro terminal. Isto dava corpo a uma comunhão de sentimentos, uma razão de ser, um desígnio. Tudo o empurrava para que completasse a obra e essa noite fora feita para isso.

A telefonia do vizinho calara-se havia muito. O relógio estava prestes a tocar as quatro horas, os grilos ainda cantavam e já na rua os madrugadores saíam das suas casas para o san van, o exercício da alvorada. Estava tudo quase pronto, faltando-lhes a pintura final e rezara a todos os deuses que as latas de tinta do velho Kuan funcionassem como o mesmo prometera. Depois de as ter experimentado com os seus próprios, aplicou aos sapatos na derradeira etapa do seu trabalho. Secou-os com o pesado e barulhento secador de cabelo, e finalmente colara as rosas pintadas de cor de prata em ambos os sapatos e esperou uma hora. Foi manuseando a parte mais mole para verificar se a tinta seca estalaria. A tinta do Kuan surtiu o efeito desejado. Como se ainda não bastasse, achou que devia levar ainda mais uma camada de envernizado.

Batiam as seis e a passarada matinal chegara, com o galo do vizinho, qual cabo de exército, a soltar as goelas. Lam Kong tinha os olhos fixos nos belos saltos, enquanto uma ventoinha afugentava o cheiro a verniz. Vieram lágrimas aos olhos de quem chegou ao fim de um grande feito. Estavam longe de serem perfeitos. O que utilizara não era para sapatos, mas outro remédio não tinha senão o que o seu instinto ditava ser o melhor. E assim imaginou o semblante orgulhoso da esbelta e leve dona sobre o belo par de calçados reconstruídos com emoção e razão de causa.

Mas o menino não chegava. Várias vezes estendia o seu pescoço, ora para um, ora para outro lado, mas a travessa mantinha-se numa calma pouco vulgar, sem movimento algum, nem de carros, nem de bicicletas. Já passava da hora que ele provavelmente viria, a julgar pelo dia anterior. A neblina subsistia como se o céu lançasse um véu sobre o bairro, até o sol irradiava uma luz difusa, sem causar sombras carregadas. Pelo menos não havia sombra do menino, nem de ninguém. 

A impaciência aumentava, Lam Kong parecia um menino à espera de uma prenda que nunca mais vinha. Fumou um, dois e uma série de cigarros, matando o tempo que nunca mais andava. Começou até rogar pragas a si mesmo, a sentir-se estúpido. Cansado, muito cansado, com olhos a pesar toneladas. E a culpa era do menino. E era por causa dele que não levaria dinheiro para casa. E…

5. 

E o garoto descera do alto da Travessa do Paiva na sua direcção. Renovou-se em espírito e sentiu-se embaraçado com os pensamentos mais idiotas que passaram pela cabeça, nessa interminável espera pelo pequeno. Não aceitaria que a aventura da noite anterior pudesse resultar num logro de tão mau gosto. Apesar da tenra idade, o menino iria honrar o compromisso, caso contrário não teria vindo, pois não? Mas o que teria ele prometido, se nem acordaram no valor? E o que um garoto de oito anos poderia valer? Já nem quis tentar responder a estas questões.

Estão prontos, menino. Fiz o melhor que pude, mas eles estavam em muito mau estado. 

Quando tirou o par do saco de algodão, os olhos do menino brilharam de comoção. Os sapatos de salto recuperaram a alvura carcomida pelo tempo, estavam agora luzidios. Não havia buraco algum, os tacões recompuseram-se e todos os contornos aí se encontravam, os sapatos eram dignos dos pés pequenos e frágeis da sua mãe. Ainda cheiravam a químico, mas o aspecto renovado superava esse tipo de defeito. Dos olhos grandes do menino lia-se a satisfação por que muito dinheiro não pagaria. E aí chegou a hesitação.

Sei que não acertámos no preço, mas disse-te que isso iria … custar dinheiro. Passei a noite toda a trabalhar… e não foi fácil. A tua avó vai ter de compreender. Ela … sabe disso, não?

Os olhos luzidios do petiz tornaram-se opacos e sem vida. Em seu lugar, sobrevieram olhos de súplica e de tristeza.

Menti… Peço desculpa, senhor.

Lam Kong ficou mudo, antevendo o que teria de encarar, já vulnerável a todo o tipo de surpresa.

Não tenho nenhuma avó. Apenas a minha mãe.

– Mas como vais pagar isso?!

O menino tirou das suas calças uma nota esfarrapada de cinco patacas e entregou-a a Lam Kong.

É tudo que consegui arranjar. 

Mas … mas o trabalho merece muito mais que

Já não tenho mais nada, senhor. Por favor aceite-os.

– Mas…mas…assim não te posso dar os sapatos por este valor…

– Não vim buscá-los – hesitou – Vim antes pagar-lhe com o pouco que consegui arranjar, porque você trabalhou a noite inteira, não está certo ficar com mãos vazias.

Lam Kong sentiu o aperto nas entranhas que a frustração lhe causava, um misto de revolta contra a sorte que lhe era assim patenteada.

– Menino, não estou a entender nada. Não quero, nem posso ficar com eles. São da tua mãe.

O menino fez nova pausa e ficou sério quando se concentrou no rosto seco de Lam Kong.

– Senhor… ela morreu hoje, já não vai precisar deles. Mas, você pode vendê-los para não ficar a perder. Estão tão lindos.

O menino olhou Lam Kong, ficando à mercê de tudo quanto pudesse vir do sapateiro, mas este apenas olhou para o vazio, numa inelutável apatia. No fundo, apetecia-lhe gritar, bater, queria ser violento. Sentiu-se asno e irresponsável por ter aceitado aquela maluqueira, ao arrepio da real necessidade de fazer mais uns trocos, como tinha sido o seu desígnio nesses últimos tempos. A sua consciência não tardaria a vergastá-lo por essa infantilidade. Todavia, a imagem que lhe surgiu no íntimo, não foi de castigo, mas antes da profunda serenidade com que a menina dormia na noite passada, como havia muito que não fazia. E num instante pareceu-lhe ver a sua filha a sorrir-lhe. Suspirou fundo e resignou-se.

Sinto muito, menino. Sei o que é perder uma pessoa querida, sem podermos fazer nada. E tentaste, rapaz. Foste bravo.

Embrulhou então os saltos renovados no saco de algodão e voltou-se para o menino indefeso.

Ela vai precisar deles quando atravessar a ponte para o outro lado, entendes? Leve-os e … não me pagues nada.

Só se lembrou dos olhos do menino a recuperarem o tom luzidio, do seu sorriso de felicidade e gratidão, no momento em que o leve cacimbo outonal lhe fez esfregar os olhos de cansaço e de sono perdido. Quando recompôs a sua visão, viu a nota de cinco patacas e meteu-a no bolso, mas o pequeno tinha já desaparecido com os sapatos. Iniciou-se, então, o cantar dos grilos e dos gafanhotos e ouviram-se as primeiras batidas das asas dos morcegos do Palácio, os inquilinos que revezariam os pardais e os canários na calada da noite.

Era altura de voltar ao poiso.

6.

A pinga desta vez pesou menos e num ápice estava já à entrada da Rua da Praia do Manduco e não tardaria a chegar a casa. Estava calmo, sem embargo o cansaço da noite passada. Sentia-se bem e inexplicavelmente reconciliado consigo mesmo. Tinha a sensação de ter emigrado e agora retornava a casa para retomar a vida que interrompera. Iria jantar com a sua mulher, respirar fundo, dormir e reiniciar um novo dia seguinte. 

Ao abrir a porta da sua casa, viu o rosto trémulo da mulher. Esta não falava, mas acusava algo que ultrapassava uma mera preocupação. De olhos confusos e avolumados de lágrima, apenas apontara em direcção ao quarto da netinha. O seu semblante não deixara dúvidas, acontecera algo com a pequena. Lam Kong largou tudo e correu para o aposento, abrindo a porta com violência e viu a cama vazia.

Por um lapso de segundo experimentou um pânico de morte e gritou em silêncio, transe que só cessou quando uma sombra atravessara o lusco-fusco que vinha da janela. Era Mei-Mei que olhava para as luzes que cintilavam da rua, sobre a ponta dos minúsculos pés. Lam Kong admirava estupefacto como se desenvolveram os músculos das panturrilhas, contra tudo com que vinha lidando a respeito da enfermidade da menina. E teve medo do milagre diante de si.

– Vovô… porque me olhas assim? Estás zangado?

– Oh não meu amor… Nunca! Vovô está tão feliz por te ver a olhar para as  luzinhas lá de fora – Abraçou a petiz com toda a força e não conteve as suas convulsões quando chorou.

Porque choras vovô?

– Choro de muita alegria, minha linda. Foi como se tivesses estado muito tempo fora e agora voltaste. É tão bom ver-te a brincar, a rir, a correr, a dormir na tua cama e a ter lindos sonhos.

– E eu tive um lindo sonho.

– Oh? Contas-me como foi? – sentou-a na sua coxa.

– Sonhei que estava à janela e dei com uma senhora vestida de branco a sorrir para mim. Tinha um ramo de flores numa mão e segurava um menino de olhos grandes com a outra. Não eram da nossa gente e ela estava bela como se fosse para o seu casamento. O rapazinho estava feliz com a sua mãe e tão bonito era o seu sorriso. Ele acenava-me um adeus e a mãe sorria também. Tinha os mais belos sapatos que já vi, vovô. Brancos com uma flor prateada nas pontas. Tinham acabado de atravessar uma ponte. Acordei e fui a correr para a janela, mas já não os vi mais.

Manteve-se calmo e encostou a cabeça da netinha ao seu peito, enquanto a sua mente devaneava à procura de respostas, pelo menos da certeza de que não sonhava e que tinha ao seu colo a jóia mais preciosa da sua vida, incólume a todos os males. Acto contínuo foi ao seu bolso à procura da esfarrapada nota, e sentiu o calafrio atravessar-lhe a espinha, quando de lá saiu apenas um pedaço de papel sem valor. 

Nesse momento a mulher entrou e abeirou-se dos dois e afagou as costas da menina.

– Kun Yam Pou Sat! Escutaram-se as nossas preces, finalmente. Foi um milagre para a nossa Mei-Mei, até sinto a casa mais leve. A sina foi-se embora – limpava as lágrimas – Vou comprar boa comida e hoje é uma noite em que temos de celebrar, com o dinheiro que fizeste.

Apeteceu-lhe gritar de desespero, pois tudo teria de ter uma razão de existir. Como explicar o dinheiro que a mulher refere, se não teve cliente nenhum? Como explicar a força anímica da noite anterior e a resolução em terminar a sua obra. Olhou de novo para a Mei-Mei ao seu colo e lembrou-se então do menino, do seu olhar solícito e de quão cristalina foi a conversa com o mesmo. Teria ele a ver com isso tudo? Não podia ser… Não teria tudo sido um sonho vivo ou então uma partida de péssimo gosto? Perdeu-se na incredulidade da sua existência, resolveu que tudo não passava de uma charada, que nada de extraordinário se passara, não tinha havido saltos femininos alguns, o menino não existira, e quem sabe se não eram sequelas do sám cheng da lojeca do velho Kuan, até quando a mulher vociferou, interrompendo-o nas incursões pelas suas dúvidas existenciais.

Andas agora a fazer flores? Que vais fazer com as latas de tinta, o couro sintético e as colas espalhadas na cozinha? Preciso de espaço, homem! Está cá um cheiro…!

7.

Passaram-se sete anos e a brisa de Outono soprava suavemente esse dia de 1970. A aragem mais seca do quadrante nordeste não estorvava a neblina leve que se espalhava por toda a cidade, dando ao dia uma luminosidade ténue. As libelinhas enxameavam o céu e, acima delas, aves arribavam em bando para outras terras, fechando-se assim um ciclo, para anunciar um outro.

Lam Kong já não operava junto ao Palácio. O velho Kuan falecera e deixara-lhe a lojeca que se converteu na sapataria “Lam Kong Kei”. Mais propriamente para conserto de calçado, o qual passou a ser a sua actividade exclusiva. Apetrechara a loja de todos os utensílios do ofício, encomendara tintas próprias, couro e cabedal de boa qualidade, formas, cremes e graxas, para manter o nome do melhor sapateiro do Bairro de São Lourenço. Vinha clientela de todos os lados, da gente fina do Palácio à dos lupanários da zona velha. Encheu as paredes de figuras de divindades taoistas e budistas, como os “Oito Imortais” e Kun Iam, assim como Tong Sam Chong, o mítico monge da obra literária “Odisseia para o Oeste”, com os seus três discípulos, mas todos sob o jugo do temível olhar de Kuan Tai, o deus justiceiro protector contra todos os espíritos maléficos. Num canto oposto encontravam-se os botins do velho, contra a vontade da mulher que só via mau agoiro nisso. Argumentava que sapatos sem dono não deviam estar em parte alguma e muito menos nas paredes, pois atrairiam quem pudesse andar nelas. Se calhar tinha razão, porém, Lam Kong possuía argumentos suficientes para fazer moucos os seus ouvidos. De cabelos mais grisalhos, de espinha mais arqueada, continuava magro, mas atarefado, cheio de saúde para consertar todo o sapato que lhe viesse parar às mãos. Estava feliz, pois começava o ano lectivo e a sua Mei-Mei fora admitida no Colégio Canossiano do Sagrado Coração de Jesus, onde aprenderia a falar e escrever inglês.

Olhou para o dia e sentiu o fresco de prenúncio invernal. A neblina adensava-se, o que o deixou nostálgico. Mas, não teve tempo para cismar. Cinco pares de sapatos militares e de festa esperavam os seus cuidados, e ele manteria o seu estaminé aberto até completar essa missão do dia. 

Nisso, enquanto curava o mal de uma das solas, escutou uma voz murmurada e delgada de menina.

O senhor conserta isto? Ela precisa de andar.

Lam Kong saiu da sua loja e agachou-se olhando para uma boneca velha, enodoada, descosida e sem uma perna, numas mãos frágeis e minúsculas. Levantou os olhos para a menina franzina, que não teria mais de sete anos, de olhos grandes, pele muito alva, linda como uma boneca de porcelana.

Sorriu.

Claro menina, ela vai ficar bonita como tu. E andará.

Largou a sola e deixou o resto dos sapatos em paz.

Fechou a loja. 

A neblina também se foi.

Travessa do Paiva, Macau.
O mural do Palácio da Praia Grande à esquerda.
Foto tirada em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60 do século passado.

F  I  M


Notas:

Pinga – Vara de madeira, de bambú ou de cana, utilizado pelos chineses para transportar toda a espécie de mercadoria, pendurando-a em cada extremidade da mesma vara.

Saltos – Forma abreviada de “saltos altos”, “saltos de senhora”ou “sapatos de salto”, muito usada entre os Macaenses, correspondente a “high heels”, por referência a “high-heeled shoes” na língua inglesa.

Tai Nui Fa (帝女花) – Clássico da ópera de Cantão, das mais famosas óperas de todos os tempos, sobre a tragédia da Princesa Cheong Peng (長平公主) e o seu noivo Chao Sai Hin (周世顯), no fim da Dinastia Ming, no século XVII.

Ma Si Chang (⾺師曾) e Pak Sut Sin (白雪仙) Famosos intérpretes da ópera chinesa, tanto em palco como, como no cinema, esta última celebrizada no seu papel da princesa Cheong Peng, na ópera Tai Nui Fa.

Lo Pak Tau (蘿蔔頭) – Literalmente “cabeça de nabo”. Expressão pejorativa, provavelmente já caída em desuso, atribuída a japoneses, os quais tradicionalmente ostentavam um peculiar corte de cabelo, caracterizado por um rabicho fino, o qual por sua vez seria dobrado para cima sobre a parte calva da cabeça, à semelhança do prolongamento alongado do tubérculo em causa.

Sam Cheng (三蒸酒) – Também conhecido fora da China pelo nome de Samshu ou mais propriamente por Sam Siu (三燒) é um tipo de vinho chinês a partir do fermento do arroz, com teor alcoólico variado, muito popular entre consumidores da camada social mais humilde, caracterizado pela sua capacidade rápida de embebedar o seu consumidor.

Ponte – Segundo a crença popular chinesa, de origem budista, a alma do defunto teria que atravessar a ponte para a eternidade. Corresponde à “luz branca” que se crê divisar-se logo após a morte.

Er-Hu (二胡) Literal mente “Alaúde de duas (cordas)”, também conhecido por violino chinês, instrumento acústico de duas cordas, muito tradicional na música clássica chinesa.

Kun Iam Pou Sat (觀音菩薩) – A prece, ou mantra invocativa a Kun Iam (Guan Yin), a deusa da Misericórdia, profundamente arreigada na cultura religiosa chinesa.

Macau, 29 de Outubro de 2021, Sexta-Feira

© Miguel de Senna Fernandes

O CORRESPONDENTE SECRETO

Olá Ilda

A Professora Lúcia disse a todos que hoje seria o dia do correspondente secreto e eu deveria escrever a alguém da nossa escola, sem assinar o meu nome. E explicar porque te escolhi.Penso que não tenho razões porque escolher outra pessoa. Espero que tenhas a paciência de leres isto, pois sou “bafo-comprido”. Quando não olham para mim, claro.

Pois bem.

Quando te vi pela primeira vez no começo das aulas, achei que não devia falar contigo, porque não terias tempo para mim. As tuas amigas estão sempre contigo e tens sempre muito que fazer. Riem-se de tudo quanto veêm. Nunca olharam para mim. Sorte minha, pois não saberia onde me esconder. Por isso sei que não dás por mim. 

Notei que tens uns lindos olhos. Quando fugazmente eles se viram para mim, vejo quão claros e intensos eles são, que me fazem amolecer. Parecem que me dizem algo, mas também imagino muita coisa. 

Mas, confesso, tenho fraquezas e fico com a cara vermelha se me olharem muito tempo. Detesto isso!

Quando sei que estás por aí, fico feliz e imagino-te bem perto de mim, a conversar comigo, a olhar-me nos olhos, a responder milhares de perguntas que teria para te fazer, a ouvir música. Não a dançar, porque não tenho jeito para isso e não gosto imaginar-te a rires-te de mim. 

Não posso esquecer do dia do nosso passeio escolar a Hong Kong. Fiquei surpreendido ao ver-te de sapatilhas, ganga e camisola vermelha, algo tão invulgar em ti. Estavas tão bem. De certeza que todos tinham os olhos em cima de ti. Os meus estavam também, embora não gostaria que reparasses que tinhas toda a minha atenção. Cansa muito olhar assim, mas não tinha outro modo. Vi um lugar vago a teu lado,  não tive é coragem de ocupá-lo. As tuas amigas não me perdoariam. Não sobreviveria à zombaria daquela “fantocheira” Patrícia. No entanto, escolhi o assento mais próximo possível de ti, ainda que remoesse de pena, pois a cadeira a teu lado permaneceu vaga. No Museu da Ciência, por um momento, estavas perto quando o Professor Germano passou pela secção dos esqueletos dos animais. Enchi-me de coragem e pus-me a falar sobre isso aos meus colegas da turma. Talvez assim pudesses também aproximar-te. Tive a certeza de que não tinha falado alto de mais, mas mesmo assim arrependi-me. Foi ridículo isso de me destacar, quando nem se quer disso deste conta.

Gostaria tanto que soubesses o que vem na minha cabeça

Nunca experimentei isso que se chama de ciúmes. Achei sempre que isso seria coisa ridícula de menina, até o momento em que senti o aperto do coração, quando vi o Afonso Vaz a dançar contigo, no baile do Natal. É indescritível como é essa sensação de perda e de revolta. Mas, o mais grave é que não sou ninguém, para sentir fosse o que fosse, não tenho estatuto no teu coração.

A carta não logrou sequer sê-la porque não chegou ao seu destino, parou antes num caixote de lixo junto à entrada da turma 9B, à semelhança de tantos outros papéis, embrulhos, pacotes e objectos sem importância, que aí se lançam ao abandono, por razões que ninguém se daria ao trabalho de saber.

Tal como aí se encontrava também um sobrescrito côr-de-rosa, dirigida a um “Rafael Augusto”, nele se incluía uma folha onde se lia qualquer coisa como: 

 Bom dia,

Estás bom, Rafa? Espero que não leves a mal que te trate assim, tal como os teus amigos o fazem.

Estou a escrever-te porque a Professora Mónica da minha turma, disse a todos que enviassem uma carta à pessoa da livre escolha de cada um. Hoje é dia do correspondente secreto, acho que a tua professora também vos disse para fazer o mesmo. Não poderia revelar o meu nome, referiu, mas teria de explicar porque te escolhi.

Julgo que não tenho razões para escolher outra pessoa. Espero que tenhas a paciência de leres até o fim. Não sou boa a sintetizar ideias e se calhar serei chata. É que, não sei se terei coragem de te dizer à tua frente o que sairá agora da minha esferográfica. Estou tão nervosa, acredita.

Quando te vi pela primeira vez no começo das aulas, achei que eras diferente dos outros colegas. Estes apenas queriam chamar atenção e faziam disparates sem graça alguma, mas tu estavas num outro mundo. Tinhas outras coisas na tua cabeça, com certeza, não parecias ter paciência para ninguém. Eu tinha que olhar muito para ti para ao menos saber se olhavas para mim. As minhas amigas são umas parvas, riem-se de tudo, pois tal como os rapazes, também querem chamar atenção. Mas, não tenho jeito para estas coisas e por isso, sei que não reparas em mim.

Contudo, quando consigo que me olhes, vejo naqueles olhos castanhos uma pessoa dócil, pronto para me ouvir. Tens um olhar tão intenso.

Fico feliz quando estás no recreio, no entanto nunca quis dar-te a impressão de andar a perseguir-te. Assim, permaneci sempre longe de ti. Mas, imagino-me perto de ti, a ouvir-te, a responder às perguntas que terias de me fazer, se é que existiriam. Dançarias comigo, embora saiba que os rapazes não gostam de dançar. Dançaria contigo de qualquer modo.

Gostaria tanto que sentisses um fraquinho por mim, nem sei como tive a coragem de admitir isso.

Lembro-me tão bem do nosso passeio a Hong Kong. No Museu da Ciência, pude escutar-te a explicar sobre o esqueleto dos animais aos colegas. Estava como sempre afastada, mas a tua voz soava bem ao longe. Nunca pensei que soubesses tanto e que falasses, pois sempre te achei distante a pensar noutras coisas. Nesse dia, chateei-me com as minhas  amigas. Tínhamos combinado ir de macacão azul, sapatilhas, meias brancas, eu de camisola vermelha, elas de outras cores. Achei uma ideia boa, pois podia usar outro tipo de roupa diferente do usual e, quem sabe, talvez pudesse chamar a tua atenção. Qual não foi o meu choque e embaraço, fui a única que assim apareceu no cais. Senti-me atraiçoada, pois detesto ser o foco de tudo. E proibi que se sentassem ao meu lado. No fundo, confesso, alimentava também esperança de que pudesses sentar-te nessa cadeira vazia. Não faz mal, ficaste umas cadeiras mais perto, dei-me por satisfeita. Ainda bem que elas estavam longe de ti, pois algo me diz que a mais espalhafatosa de todas gosta de ti.

Não penses mal de mim, com esta carta tão atrevida. Precisava de desabafar e o que melhor do que escolher alguém que tem a ver com isso tudo, sem que ele saiba quem seja eu? 

Precisava que soubesses, ainda que em vão, que no baile do Natal, não queria dançar com ninguém. Antes, ter uma oportunidade para conversar contigo e dizer-te tudo o que vinha na alma. Nunca bebi nada de alcoólico, mas precisei dele para ganhar coragem. Um deles conseguiu trazer vodka e bebi. Andei a olhar para todos os cantos à tua procura. E o Afonso não parava de por mais bebida no meu copo. Se calhar já sabes, essas bebidas ora põem-te triste ou então bem alegre, e eu não resisti. Dancei com o Afonso e senti que ele se agarrava a mim. A minha cabeça dava voltas e vi muitas coisas. Não tive a certeza mas fiquei  com a impressão de que olhavas para mim, e era triste o teu olhar. E de repente acordei e parei de dançar. Mas já não estavas. 

Se calhar nunca estiveste.  Queria tanto que soubesses.

Nunca o mesmo caixote experimentara tamanha revolução, como nesse fim da tarde. Na verdade, para quê vasculhá-lo, e recuperar o quê? O que passou ao abandono, nunca retrocederia à sua condição anterior. Mas, vira Rafa a confusão de papéis à volta do receptáculo, como se fora obra de alguém que, tal qual ele, quisesse à força reaver o que lá pusera. E para ele era uma questão vida ou morte, morte de vergonha, uma espécie de calvário que se adivinharia enfrentar, se por um infortúnio, a sua missiva caísse em mãos dúbias. Ainda que anónima, eles adivinhariam quem teria sido o autor, a chacota de que seria alvo e a depressão que se lhe seguiria. Que ousadia, foi aquela? 

As suas mãos remexeram, escarafuncharam a seu mando. Mesmo sem ver o que continha o caixote, ao menos tactear os objectos com a esperança de apalpar o sobrescrito, cuja textura já conhecera, depois de tantas noites a decidir se o deveria enviar. Ao cabo de quinze minutos de frenético resgate, suspirou fundo. Encontrou-o. O alívio sabia bem melhor que uma positiva a Matemática. Puxou-o para si, desinteressando-se do resto que a sua mão ia tocando no seu trajecto para fora.

E o sobrescrito não era o dele. Era de côr-de-rosa, com a letra que não era dele. Corou e sentiu o ardor nas orelhas ao ler o seu nome. Mas sentiu que não estava só no corredor naquele fim da tarde. Não se atreveu logo a ver quem era, mas já sentia uns olhos castanhos e redondos fitando-o intensamente. Nas mãos, a menina segurava a carta que ele andava à procura. 

Ilda sorriu-lhe.

 

9 de Agosto de 2019, sexta feira 

© Miguel de Senna Fernandes

A VEZ DO NATAL

Era mais uma vez.

Como tantas vezes sem conta, ele se sentava diante dela, contando-lhe histórias sobre o seu dia, o trabalho, o chefe, o cão Sebastião, a mercearia Kong Kei que preferia a qualquer supermercado de Macau, entre outras coisas.

 

“Sabes, o Gonçalo já sabe ler as anedotas dos jornais! Aquele mesmo pequerrucho, já sabe ler! Juro, não acreditas, né? A Alzira escreveu e…”

 

Prosseguia por aí fora, especialmente quando se tratava deste, o seu neto mais novo de três anos.

“Exactamente! Ainda me recordo da Alzira no primeiro Natal que passámos na casa da Barra, a dizer que gostaria de ter uma prenda, e que essa prenda fosse um filho. E ele se chamaria Gonçalo! Tinha ela 6 anos” – ria-se.

“Nem pensar, filha, mulher de agora não se casa cedo!” dizias tu!, ai eu não me continha com essa!” – gargalhava tentando caricaturá-la.

E aí ficava Afonso a conversar com a mulher, durante a tarde de todas as tardes, numa viva cavaqueira em que ele encarnava ambos os interlocutores, ora fazendo-lhe perguntas e respondendo por ela, ora retorquindo ao que imaginava ser as suas interrogações. Empolgava-se e dramatizava as histórias que relatava, discutia e contra-argumentava, ante olhares de curiosos e de outros que já se habituaram ao “teatro do ngau sok”.

woman-e1544781002931.jpg– Sabes, finalmente me dei com o fogão que compraste e fiz o meu primeiro frango aí.  Oh! Lá estás tu, não está queimado não! Mais que saboroso! Vais gostar!

Todos os dias, conduzia-a ao seu canto ao lado da enfermaria e dava-lhe de comer. Não que isso fosse preciso, até porque o asilo tratava a sua mulher com todo o esmero. Mas, Afonso fazia questão de levar a canja de galinha à sua boca,  soprando meticulosamente quando estava quente, com o seu lenço pronto para qualquer descuido. Pó de talco sempre ao pé, não vá uma gota manchar o vestido de algodão de imaculado branco que ela sempre punha.

 

“Já mandei lavar aquele casaco de cabedal que adoras. Vou-to trazer na próxima vez. Nem sei porque gostas tanto dele!”  – meneava a cabeça, com ternura.

 

De Sio Ieng apenas recebia o olhar atento e intenso, de um corpo inerte prostrado numa cadeira de rodas. Não falava, não sorria. A boca, semiaberta, era a de uma espectadora atordoada, ante uma exibição artística que não compreendia. Afonso ignorava e dava-se por satisfeito. Tinha, no entanto, notado nos últimos meses que os mesmos olhos que o miravam, tinham-se tornado cada vez mais intensos, os músculos faciais já contraíam e se distendiam com maior frequência, até os dedos davam mais sinais de vida. Tudo isto era motivo de alegria, qual ovação de uma plateia cheia. Sentir a sua reacção era dádiva de Deus.

Havia vezes em que a jovialidade da conversa era mais amena.

“Estás tão linda. Mesmo depois de tantos anos” – sorria suavemente.

Afagava o rosto fino da mulher, deslizando a ponta dos dedos nas suas sobrancelhas, nas maçãs e lábios. Com eles desenhava os contornos de uma face por que se apaixonou,  onde traços de idade ainda mal se viam.

Recordava-se do dia em que  a vira pela primeira vez, na mercearia do Kong Kei, onde pararia todos os dias para uma cerveja com os seus colegas de trabalho. Num ápice sentiu que tinha de a conhecer, essa moça pequena, de movimentos suaves, de cabelos sedosos e negros como breu, a contrastar com uma pele alva, pouco usual entre chinesas que todos os dias via. Sao Ieng não se importunou, sabia quer era apreciada. Mas também não se fez de fácil. Retorquiu com um sorriso confiante e arguto. Ali, vira Afonso como aqueles olhos o faziam vergar.

relationship-drawings-zipcy-4

“O que me dirias se me pudesses falar?”

Perguntava-lhe naquelas vezes em que a melancolia lhe assaltava impiedosamente. Aí a conversa era menos efusiva e com mais pausas. As tardes, mais longas também. Não era a tristeza que o dominava nessas vezes, mas tão só momentos de saudade. Memórias da sua candura, nas noites de Inverno em que ela pousava a sua cabeça minúscula sobre o seu joelho. A sua voz murmurando uma canção naná que aprendera de sua mãe, quando embalava Alzira no seu berço de baloiço. Imagens dos mesmos olhos que o miravam enquanto ele lia as notícias que ela não entendia, ao cintilar dos reclames néon que vinham da rua. Registos da fragrância do seu cabelo preto, da sua fina nudez de marfim. Dos seus suspiros que diziam tudo, nas noites em que ela se lhe rendia completamente.

Amava-a, sem saber como se exprimir em chinês, amava-a sem poder saber o que ela realmente lhe diria, se falasse português.

Amava-a ainda mais, porque sabia que ela jamais seria a mesma.

“Quando é o fim disso tudo?”

Era a vez do Natal que chegava, a mais dolorosa que todos os anos Afonso experimentava. Completar-se-ia mais um ciclo, que se renovaria depois no ano seguinte, como acontecia durante quinze anos. Seria o seu equinócio da amargura, quando a solidão que o assola nas noites frias de Macau atingia o seu vértice, fazendo-lhe reviver a noite em que a viu deitada no chão inanimada.

Tinha chegado à casa depois de mais uma festa de Natal com os colegas. Não era primeira vez que voltava tocado. Nessa noite, a discussão tornou-se mais violenta, ela chamara-lhe todos os nomes que sabia em chinês e em português e ameaçara deixá-lo se a situação se mantivesse. A riposta foi um estalo. Pegou de seguida no seu casaco e fez-se à rua. “Farto” foi a palavra que se lembrou ter dito antes de bater com a porta.

deadhand

Disseram-lhe no hospital que Sao Ieng teria sofrido choque, seguido de um derrame cerebral que lhe provocara uma queda e, com isso, uma fractura na sua coluna vertebral. Nunca chegara ao seu alcance a verdadeira gravidade em que se encontrava a mulher.

Foi sempre assim durante estes anos todos. Mas desta vez a dor foi invulgarmente intensa. Talvez porque a idade começava finalmente a reclamar e a paciência, já ténue, fraquejava. Ou então, porque nada mais segurava a culpa que se forçava à tona.

“Não ligues para aquilo que vou dizer”suspirou.

“Se calhar nem sei se estou a dizer coisa com coisa.”

“Fui sempre um egoísta. Durante esse tempo todo, fiz de conta que estavas aí, pois a esperança de ter ver sã, faz-me doer menos e ajuda a vencer a minha saudade.”

“Sempre acreditei que me pudesses ouvir, mas mesmo que não, ao menos me convenci de que estava a fazer algo para me sentir melhor.”

“Não devia ter saído naquela noite, mas eu acreditava que precisava de respirar. Estava sufocado pelo nosso silêncio e perdido no fosso cada vez mais fundo entre nós. Não sabia como falar contigo.”

“Todos os natais que chegam, sei qual o meu presente. O teu silêncio e esse teu olhar que eu julgava saber ler. Sei que já faz tempo que andas à deriva. Queria fugir para não vir mais, pois nem disso darias conta” – pausou.

“Ao menos me pudesses dizer que não me perdoarias nunca mais. Sofreria muito menos!” – bradou.

Mas voltou em si.

“Mas, eu te amo e que mais poderei fazer?”lovehug

Ajoelhou-se, cerrou os olhos e escondeu a sua face no regaço da impávida Sao Ieng. Devia ter ficado assim por cerca de meia hora. Nunca o silêncio da tarde lhe fora tão sereno. O calor era estranhamente enternecedor, o coração dela palpitava com mais fulgor. Afonso não deu conta de que as mãos de Sao Ieng estavam mais trémulas, de que seus os débeis músculos retesavam-se, como antecipação de um movimento. Ele não tinha notado que a sua mão cerrada empunhava um objecto. Não entendia que ela queria livrar-se do mesmo.

crying-eyeAfonso levantou-se. Sao Ieng tinha os olhos bem fixos nele, as suas bochechas tremiam como trejeitos, o corpo agitava-se e os lábios estavam tensos. Não eram convulsões, porque as pupilas estavam maiores, e uma lágrima principiava a deslizar. Percebeu então que ensaiava um sorriso, como durante meses vinha notando.

Com esforço, Sao Ieng levantava o braço. Não era mero reflexo, era ostensivo. Afonso foi afagando o dorso da mão cerrada, suavizando a pressão dos dedos. Ela  por fim relaxou e pôde mostrar-lhe o objecto.

Afonso viu. Sentou-se.

Pôs as mãos à cara e chorou que nem um menino.

Havia muito tempo que o Natal lhe tinha sido a farsa que se resumia a uma troca vã de prendas e “boas festas”. Nunca imaginaria, porém, que desta vez ele fizesse a diferença e lhe trouxesse como presente, um velho e gasto boneco decorativo que pertencera a Alzira. Na mão de Sao Ieng estava um tosco pai natal em posição de descida, levando às costas um saco repleto de corações.

E vinha com os dizeres em chinês:

“Voltei!”

 

©Miguel de Senna Fernandes

Macau, 14 de Dezembro de 2018, sexta-feira.

 

 

BETSY, no último dia da sua vida

METICULOSAMENTE, o seu pincel deslizava sobre a borda da sua pálpebra esquerda. Aquele tom preto reluzente dava-lhe finalmente a satisfação que já não conhecia havia algum tempo, depois de tanto vasculhar por todas as casas de cosméticos do burgo. Agora sim, os seus olhos destacavam-se claramente. Como ele gostava deles.

sexy

Mirou-se ao espelho. A sua nudez denunciava a leveza do seu corpo delgado, de pele alva amarfinada, de seios pequenos, braços esguios, dedos de fada, sobre pés de menina. Dava graças ao Divino que a aspereza da sua vida fora benevolente ao seu corpo elegante, que não carecia de veste alguma para se enaltecer.

Nessa última noite da sua vida, Betsy preparava-se religiosamente para o evento mais importante da sua existência. Dera tantas voltas e finalmente chegara o momento que tanto sonhara. Iria ser a noite. A maquilhagem, o cheong-sam (1), as unhas de rubro escuro, de comprimento conservador, o penteado clássico a Audrey Hepburn, os saltos, tudo previsto até ao pormenor. À medida que a  escovinha de rimmel levantava as pestanas, o coração batia a um ritmo que não conhecia, como se vivesse dentro de um corpo alheio. Uma ponta de saliva crescia no canto dos seus lábios por pintar. Lábios de malabarismos que tanto prazer lhe dera.

Sorriu, quando se lembrara da noite duas semanas volvidas, em que Terrence lhe dissera que era altura de a apresentar à sua mãe. Nessa noite, ele saiu da sua casa às duas da manhã, mas ela não dormiu. A adrenalina atingia níveis pouco usuais, o seu coração pulsava a ritmo mais forte.

Uma nova prova se avizinhava.

Recordara que no passado, por duas vezes tivera a experiência da noite decisiva. Dois homens que supostamente iriam pôr fim à sua vida sub-canina e sem sentido, não lograram cumprir o desiderato. Ricky empresário de sucesso de Hong Kong, viúvo de  sessenta e dois anos e sem filhos, depois de lhe ter oferecido um anel de diamante, morre de ataque cardíaco no momento em que lhe iria pedir a mão. Seguiu-se Jason que se arrogava de dono de uma sala VIP de um casino, que lhe levara a viajar pela Europa fora, a alojara em hotéis estrelados e a deliciou em restaurantes michelânicos. O casório teria acontecido se ele não tivesse que se pôr em debandada. Soube-se depois que afinal era mero “bate-fichas” e surripiara dinheiro do seu patrão, um sujeito que fazia tão bem as contas, quanto  resolvia os problemas de desvios a tiro e facada. E antes de se ir embora “por tempo que ele próprio não sabia quanto”, pediu-lhe o anel de diamante, para comprar o seu bilhete de avião.

Por duas vezes tivera de regressar à realidade depois de sonhar alto, por uma vida condigna, de civilidade, sem problemas de renda, cheiros hediondos de dejectos no corredor do seu prédio, gente sub-humana, camafeus, agiotas e pregos. Por duas vezes chorara pela sua sina de calvário e se revoltara contra a injustiça do Divino que recaíra sobre ela, pobre rapariga de quase trinta anos que apenas suspirava por um lugar ao sol.ladypop.jpg

Betsy nascera Pek Si. Os pais, oriundos de uma aldeia nos limítrofes de Foshan, Província de Cantão, entraram em Macau clandestinamente, onde se estabeleceram no “bairro de lata” então ainda existente na zona norte da cidade. Ele conseguiu um emprego na construção civil, transportando tijolos e ela como lava-loiças de vários estabelecimentos de comidas da zona. Já nessa altura os ilegais  estavam sob controlo apertado das autoridades policiais. Era usual verem os seus vizinhos serem caçados e recambiados para lá das Portas do Cerco. Mas, sem drama algum, pois ao cabo de um mês acabariam por se re-introduzirem em Macau de uma ou doutra forma. Ele não teve tanta sorte, porém, quando o mal se abatera sobre si num dia em que ele trepava pela estrutura de bambu, transportando os usuais quilos de tijolo acima. O assalto de pânico não distinguia vítimas e ele descontrolou-se, caindo do segundo piso. Não morreu, mas de maca saía escoltado de Macau, para nunca mais poder regressar.

clumsy3

Pek Si, não frequentou a escola como as crianças normais de Macau, não envergou uniformes limpos passados a ferro, nem teve mãe para lhe fazer festinhas. Conheceu quatro paredes num cubículo de lata, onde se penduravam também utensílios vários, desde tesouras, panos de limpeza e canecas de lata para água e escovas de dentes. O papel de jornal era a coisa melhor que se podia ter, pois servia de tapa-buracos, toalha de mesa, limpa-vidros e reforço de cobertor em tempos de frio húmido e implacável do Inverno. O odor a almíscar, mesclado com o de gengibre e peixe da noite anterior, o ar quente que não circulava, era assim na cela que se chamava casa.

De nada lhe valeu a “Operação Dragão” (2) em 1990, destinada a reconhecer os imigrantes ilegais que o Governo de Macau na altura levara a cabo. Apesar de ter conseguido obter um documento de identificação, de ser já gente, as condições de vida não alteraram. A mãe continuou a lavar loiça e ela crescendo em paredes meias com a qualidade de vida, com a qual nunca comungara e sempre a fugir-lhe a meros centímetros de distância.

IMG_7423.jpg

Dinheiro passou a ser uma razão de ser, porventura a mais importante. Não compra a felicidade, estava enjoada de ouvir, mas era fundamental para a atingir. Preferiria estar doente sendo rica, a sadia sendo pindérica. É deprimente ser pobre, chorava para os botões.

Teria que dar um salto para um mundo fora do de Pek Si. De se chamar outra coisa. Betsy foi o que ouvira numa noite de devaneio, quando um bife a chamara no meio de copos, piropos e apalpadelas. Nunca mais respondera a quem pronunciasse o seu nome de origem. Deixou crescer o seu cabelo para além dos ombros, passou a usar roupa mais ajustada e saltos altos. Os seios eram pequenos, mas sabia como compensá-los com a flexibilidade das suas ancas. Aos dezasseis anos virou boneca da noite. Viu muito homem, na maioria estafermos e cretinos.

Só com Ricky Lam e Jason Chiu, pôde experimentar o que era uma vida de gente, de ser servida com amabilidades e deferências. Limpeza. Sofreu muito quando a sorte lhe fora travada por duas vezes a milímetros do seu alcance. Entrou em estado de luto por uma semana, e quando acordou ao sétimo dia, olhou para o sol, apontou-lhe o dedo e bradou:

“Ainda não acabou!”

De facto não seria assim que previra o seu fim. Por duas vezes a hora lhe fintara, para descobrir que afinal ainda não chegara. Esboçou um sorriso, ajeitou os seus sedosos cabelos lisos, arrebitou os seios e, meneando as suas ancas experientes, caminhou para a frente em antecipado desafio à sorte  ainda por vir.

E conheceu Terrence.

Com trinta e três, era filho único de uma família distinta de Macau e Hong Kong. Aluno de Harvard, com brilhante mestrado em gestão de empresas, fino nos modos, voz mansa e de trato fácil. Houve uma altura em que até se sentia inferiorizada a seu lado, porque achava não ter a sua categoria e que só lhe faria figura triste. Mas, docilmente ele aplacava os seus temores e lhe dizia que não se importunasse com questões falsas.

Foi num caraóque com amigos, aos quais se juntaram outros amigos, reunindo-se todos numa única sala de canto. Ele destacava-se, não por falar muito ou de ser o  engraçado da turma, mas pela simplicidade de um homem que atraía respeito. Não cantaram. Falaram é muito no meio da barulheira e da desafinação descarada dos comparsas. E continuaram a falar depois sentados à beira do mural da Meia Laranja, cada um com a sua lata de cerveja, sobre tudo o que trivialmente vinha à cabeça.

As horas batiam três, ele levou-a de carro até a casa. Aí pôde ver que não era um bora-botas. O automóvel era lindo, a cheirar cabedal novo. Nunca esteve num Bentley, mas sabia que era muito mais distinto que um Mercedes ou BMW. Pela primeira vez não esperou que ele subisse. O seu trato era tão reconfortante que preferiu voltar a vê-lo no dia seguinte. E mais dias seguintes vieram. love

Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente.

Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno.

cozy.jpg

Mas nessa noite, a última da sua vida, iria passar pelo teste da sua existência. Ela sabia que não seriam favas contadas, não se casaria com Terrence sem mais nem menos. Toda a sua vida foi construída de provações e era mais uma por onde passaria. Malgrado, não sabia que era a mais importante.

Iria encontrar-se com a pessoa de uma importância gigante para Terrence.

A mãe era uma mulher de maneiras aprumadas, com “postura imperial” como alguns conhecidos seus diziam. Naturalmente graciosa, Mabel fazia questão em se vestir bem. Mesmo nas situações mais triviais ela escolheria roupa que, sem destoar a informalidade da ocasião, evidenciaria a elegância que encarnava. wang-jila-lady.jpgTodas as semanas estaria no seu cabeleireiro, para manter o seu penteado enformado. Não era muito conversadora, mas o sorriso era garantido para todos com quem se relacionava. De estatura média, delgada de pele muito clara e lisa, aos sessenta, as suas faces mantinham o rosado jovem, duma senhora delicada, à qual os anos passaram à ilharga. Uma ou outra ruga, no canto dos seus olhos, não alteravam a jovialidade da sua aparência. Continuava “bela como nos tempos de ouro”, como suspiravam nostálgicos os cavalheiros que a conheceram jovem.

Apreciava a serenidade nas pessoas e o sentido de oportunidade de cada um. “Sem nos trairmos, somos todos circunstanciais”, dizia amiúde. Uma mulher de personalidade ferro, que nunca precisou de levantar a voz, Mabel tinha um jeito sedutor de manifestar a sua autoridade e desagrado, e atingia o alvo com pontaria de alfinete, mantendo intacta a sua calma e timbre.

Haveria que saber interpretar as suas pausas descompassadas, acompanhadas do seu olhar fixo e enigmático sorriso.

Não se abria com facilidade, mas Terrence lembrava-se de tantas ocasiões, mesmo já homem feito, em que se deleitava nos braços da mãe que lhe fazia festinhas na testa, cantarolando-lhe “Yeh Loi Heong…Yeh Loi Heong” (4) uma melodia de Xangai que aprendera em miúda, ao som do piano na telefonia.

Betsy ouviu tudo isso como uma criança diante de um conto de embalar e apaixonou-se por essa figura que por sinal também lhe será importante um dia. Dias a fio, tomou notas e memorizou tudo o que era preciso saber sobre Mabel. Até, sem querer, já ensaiava poses de elegância, tentando reproduzir a sua mulher de referência.

Nessa derradeira noite da sua vida, estava pronta. Olhou para o espelho e pôde constatar a sua postura de classe com que ela vestira. Tudo ao pormenor estudado com dias de antecedência. Não era ela, mas gostou do que vira e a vontade de ser o que estava diante dos seus olhos crescia. Suspirou, tinha que ter calma.

O seu coração ribombava. Terrence segurou-lhe a mão, mas ela recusou. Ainda não era altura.

cheongsamMabel conversava com o gerente do restaurante, sorvendo o seu chá. Estava de  cheong sam verde com tons de jade. Seus olhos abriram-se ante o deslumbramento que Betsy lhe causara, percorreram por todos os cantos da sua aparência. Terrence encontrara uma modelo, dizia para si.

Os gestos da Betsy eram brandos e pausados, sem pressa alguma. Evitou gesticular  em demasia as suas mãos, mas apenas o necessário para realçar essa ou aquela ideia. Ombros sempre rectos acompanhando a sinuosidade do seu dorso. Tinha iniciativa de conversa, mas sempre a propósito dos comentários que Terrence fazia. Betsy estava tão à-vontade que até se esquecera de que estava sob escrutínio. O olhar de Mabel brilhava a todos os detalhes que ela lhe dava. Terrence estava feliz, ao presenciar a intensidade da interacção entre estas duas mulheres mais importantes da sua vida.

O jantar decorreu conforme o previsto, sem falhas. Cumprira com mestria tudo o que foi combinado. A mãe, todo o tempo muito cordial, mas reservada. Sempre preferiu ouvir a falar. De olho atento, o seu sorriso era doce e meigo, os seus gestos limitavam-se ao mínimo como um menear da cabeça, um franzir da testa, um trejeito leve dos seus lábios, em reacção deste ou daquele comentário que se fazia ao longo da conversa amena da noite.

“Estou muito feliz por ter esta oportunidade de a conhecer. O Terrence fala-me tanto de si e consigo agora perceber a razão por que ele tem a grande admiração pela senhora.” Betsy ensaiou com timidez um cumprimento.

Terrence conhece muito bem a sua mãe”. Riram-se todos, e Terrence aproveitou a boa disposição e pousou a sua palma sobre a mão débil de Betsy. Conhece tão bem, que sabe do que gosto. Cresceu atencioso para as coisas da mãe até ao ínfimo pormenor. Coitado dele, pelos inúmeros sermões que aturou de mim.” Mais uma ronda de risada e a noite prometia. Betsy ria de coração, agora liberta de tensão. Via em Mabel a dignidade de uma mulher simples e afável. Era isso que ela gostaria de ser.

“Há alguma coisa que ele não saiba de si?” aventurou-se Betsy, apoiada agora do sorriso confiante de Terrence.

Mabel sorriu para o vácuo. De repente, tudo parou, nem música de fundo se ouvia.

old_moon

“Claro.” Pausou e depois prosseguiu. “Não sabe que a sua mãe também pode ter várias faces, fruto de muitas vidas que teve. Não sabe que a sua mãe vê o que anda a tramar e a combinar com outros para lhe agradar. Oh, como amo o meu filho, que quer sempre a sua mãe feliz. Só que muitas vezes isso tem um preço, que é o de estar preso por algo que afinal não é bom para si. Eu, como mãe, naturalmente sofrerei.”

“Não entendo o que está a dizer” sorriu Betsy ainda na onda da boa disposição reinante.

“Entendes sim, e muito. Tens uma escola de invejar, fizeste tudo com fina arte. Mas falhaste num pormenor. Foste perfeita demais.”

“Mãe… o que se passa?!”. Mabel ignorou o filho e fixou-se em Betsy.

“Estudaste muito bem a lição e deste todos os passos até ao ínfimo pormenor. É a tua experiência da vida que falta a muita gente. Confesso que gostei do teu profissionalismo, fizeste tudo do agrado de qualquer pessoa. Mas, menina … não é assim que se conquista. O meu filho não é um troféu e eu não sou parva.”

“Mas … Deve haver um equívoco. Que mal fiz eu?” . Estava atónita.

Mabel retorquiu com um sorriso. Não deixava dúvida de que algo de mal se seguia.

“Escolheste vestir a roupa que não é tua. Foste tudo menos tu própria. Não tenho tempo para estas coisas. Se queres roubar, é na rua e não na minha cara. Betsy, volta para casa e aprende melhor a lição. Tiveste a sorte de o Terrence ser meigo e inexperiente. Mas o azar teu é teres de enfrentar uma mãe-galinha como eu.

Levantou-se. “O jantar foi bom e a companhia agradável. Mas, não desejo repeti-lo. Terrence telefona ao Ah-Seng para vir buscar-me”. Saiu do restaurante.

Terrence largou logo a mão de Betsy. Era visível a sua aflição perante a situação com que não contava. Doía-lhe presenciar a rejeição da mãe. Nunca lhe tinha acontecido isso.

“Peço desculpa, isto não devia acontecer. Volto daqui a pouco, juro!” E desapareceu.

Ainda ficou por mais dez minutos. Sem fala. Por fim, saiu do restaurante, sem saber se Terrence voltara como prometera. Que importava mais, se estava tudo dito? Nunca ligou para essas coisas do destino, mas começara por acreditar que era esse o seu. Não estava com raiva, o seu coração até palpitava normalmente. Sentiu era o vazio que sugava para si a sua existência, a sua razão de ser. O vazio que vinha da desilusão, da fraqueza de Terrence perante o seu próprio destino. Da sua condição de dependência dessa rocha que ela pensava que fosse. Ele foi a primeira pessoa por quem lutaria mesmo que fosse pobre.

Bridge.jpgRespirava tenuemente enquanto caminhava pelas ruas húmidas, ante olhares de curiosos ou de indiferentes. Na Meia Laranja, tirou os saltos e lançou-os para longe. Não tinha forças para gritar como gostaria. Mas não havia mais nada por que gritar, nem revolta, nem nojo de si. Recordou as palavras de Mabel e concordara com elas: andou a cobrir-se com a roupa dos outros, como andou sobre saltos dos outros. Nada sobre o seu corpo era dela. Ela própria era um enfeite para o deleite de olhos alheios.

Lançou os brincos para o lago. Queria fazer o mesmo com o seu penteado, com as suas unhas, com a sua maquilhagem.

Surpreendeu-se quando deu por si a chorar, não de tristeza, mas de desespero de quem se quer livrar dum emplastro agarrado ao corpo. Betsy era uma invenção, uma via que se transformou num beco. Toda a sua vida fora uma miragem sem contornos. Não podia continuar a viver, porque nunca devia ter nascido. E essa fora a última noite da boneca que vestira tudo para estar junto à vitrina.denude

E prosseguiu a sua caminhada, mergulhando-se no escuro da madrugada.

No dia seguinte, transeuntes encontraram um cheong sam, uma pulseira, no mural enquanto pousavam uns saltos, um aqui outro acolá, sobre as rochas existentes no lago. Ninguém soube decifrar esse enigma, nem tão pouco dizer quem os usara. Quem se importaria?

Nunca mais se ouvira falar de Betsy.

Onze meses passaram. Os seus dedos continuavam delicados e lindos, assim como as unhas, agora mais curtas e sem verniz. Pressionavam os botões da caixa de registo das compras que se sucediam peça por peça, ante o olhar enfadado e impaciente dos clientes enfileirados. Com o seu cabelo negro segurado dentro dum boné, ela executava a tarefa maquinalmente, sem pestanejar, sem abrandar ritmo. Apenas falava quando lhe perguntavam algo ou quando tinha de usar o intercomunicador. Quem a conheceu não mais a reconheceria, se não fossem os seus olhos grandes e despertos que continuavam a irradiar algo excitante, apesar da nova vida radicalmente oposta à que levara. As faces apresentavam agora um rosado sobre as maçãs. Sem qualquer pintura, os olhos eram mais meigos, que espelhavam vulnerabilidade, mas sempre determinantes. Os seus lábios ganharam mais escarlate e destacavam-se nesse seu novo semblante, mesmo sem batom. De ganga e sapatilhas era esse o seu visual diário com que um novo universo de gente a identificava. E “Ah Pek”, o seu nome de guerra. No seu íntimo, resignara-se de que a tal hora sua não chegará jamais, pois afinal nunca teria sido sua. Malgrado, de modo algum aceitaria sair de Macau de maca. Aqui passou a ser a sua terra.

“Pek Si!”, o chamamento quebrou-lhe o fio do pensamento. Não era de homem que a conhecia, ademais, ninguém se lhe referiria nesse nome. Quis ignorar, mas traiu-a a sua cabeça quando lentamente girou para reconhecer a origem. E ficou tensa. A fila do seu balcão não parava de crescer e a pessoa não parava de a olhar. Não teve outra solução que chamar a sua colega para a substituir por um momento, para poder atendê-la.

no make up

O silêncio manteve-se durante alguns segundos.

“Custou-me a encontrar-te, mas há meses que soube onde trabalhavas. Não vim antes, quis observar mais.” Pek Si manteve-se muda, atenta ao que se lhe seguiria. Já se tinha habituado a isso, esse tempo todo.

“Terrence não sabe que estou aqui. Aliás, há muito que não falamos. Peço apenas que me escutes até o fim. Prometo que não me verás nunca mais”.

Concordou. Mabel não quis olhá-la quando principiou.

“A minha vida nem sempre foi de sol. Conheci bem o cheiro da rua, pois vim de lá. Isso, também o Terrence não sabe.”

Pek Si de olhos fixos, não esperava isso dela.

Sei o que é fome e das manhas que temos de engendrar para sacar mais. Sei da memória que temos de conservar boa para mantermos a peta para o dia de amanhã e outros mais que lhe seguirão” sorriu. “Gastamos o tempo a escolher a nossa roupa, para nos despirmos num ápice, porque ele está com pressa. Fazemos o beicinho no momento certo e fingimos tão bem o prazer que eles nos dão. Bem sabendo que na cama ninguém nos vence, temos de saber ser frágeis e estar à mercê. No entanto, ninguém tem culpa da nossa condição, a escolha foi nossa.

Tive sorte porque consegui uma passagem para a ribalta. Não sei se amei o pai do Terrence, nem sei se devia ter-lhe agradecido por aquilo que me deu, mas eu fiz o meu trabalho e ele compensou-me. Fui uma mulher à altura dele ou pelo menos como ele esperava de mim. Deixei intacta a dignidade da sua família, mesmo depois da sua morte. Fi-lo sentir-se marido honrado, apesar das fragilidades que também teve. Podia sentir-me realizada. Todavia, o que me perturba, é que não devia viver disso, da mentira. Embora me seja tão difícil largar mão daquilo que me custou a vida a conseguir, o meu começo estava errado.

Com Terrence, pude novamente escolher. E assim, dei-lhe o que de melhor soube dar. Decência e razoabilidade. Não iria alimentar mais um estafermo, pois estafermos fazem nascer mulheres como nós, que criamos outros estafermos. É um ciclo vicioso, sabes? Quis fazer dele um homem. E um homem não deve querer mulheres como nós.

Todavia, o amor não tem razão. Ele venda-nos os olhos e nos atira para o abismo abaixo.

Como ele te adora. A sua apatia perante tudo não me deixa dúvidas.

Quando eu te vi, julgava saber com quem estava a lidar. Achei-te artista que não me iludirias. É que somos da mesma gente, menina, exalamos rua. Não queria que ele sofresse com a mentira dos outros. Estava tão certa de que irias destruí-lo. É coisa de mãe, Pek Si. E os filhos são a nossa fraqueza.

Mas, o tempo tem destas coisas, contraria as nossas certezas. Ele deu-me a conhecer que o meu filho terá de sofrer por si, pela escolha que fizer. Ele quis amar-te. E o tempo também me disse que estava errada a teu respeito. Escolheste sem troco romper com o passado e renasceste. Isto é garra que muita mulher não tem. A minha foi-se-me, depois de tantas decisões desacertadas que achei correctas.

Um dia serás mãe e verás …”

“Um dia serei como você, minha senhora”. Pek Si interrompera sem a desafiar, embora não tinha nada mais a perder em se sentir à altura de Mabel. “Lutarei para poder escolher. E os meus filhos conhecerão o preço da dignidade. Porém, sem as minhas garras. Eles terão que escolher por si. Enterrei Betsy, mas não me envergonho dela. Faz parte de mim, foi a minha vida e aprendi a viver com ela.

Mabel assentiu.

“Obrigado. Morrerei infeliz se não pudesse dizer isso tudo. Não te vou maçar nunca mais” Olhou fixamente nos olhos de menina de Pek Si e afagou-lhe o ombro. “Que linda que estás. Como o Terrence gostaria de voltar a ver-te. Eu também.”

Não respondeu logo. Mas os mesmos olhos comprimiram ao esboçar um sorriso, como há muito não fazia. De facto, o seu semblante desnudado de qualquer maquilhagem, faziam-na mais bela. Mais ela.

Vou pensar”.

“Acho uma bela escolha.” Sorriu também Mabel antes de entrar no automóvel que estava à sua espera.

Macau, 5 de Outubro de 2018, sexta-feira

© Miguel de Senna Fernandes

_____________________________________

(1) Cabaia chinesa.

(2) Operação do Governo de Macau, em Março de 1990. destinada inicialmente a resolver o problema de pais indocumentados de cerca de 4000 crianças e que resultou em verdadeira amnistia a todos que se apresentassem a registo.

(3) 腐乳 tofu fermentado e depois embebido numa solução de sal, vinho de arroz, vinagre, com uma mistura de malagueta picada. Servido em cubos, é um condimento muito apreciado em pratos fortes de inverno, como carneiro cozido.

(4) Ye Lai Xiang (夜來香), o jasmim da noite. Título de uma canção chinesa muito em voga dos anos quarenta do século passado, metáfora que exprime a saudade por um amor perdido.

O Homem do Amanhã

“É hoje!”

A resolução não podia ter tom mais determinante nesse dia.

É hoje que vai ser!”

O coração bombeava o sangue para o cérebro, inundando-o de uma invulgar vontade de realização.

É hoje! Ou vai ou racha!” bradava em silêncio marcando indelevelmente a sua consciência, como se escrevesse a giz e em palavras gordas o quadro da sua memória.

Era o dia que decidira ser o ponto de viragem na sua vida.

“Tem de ser!”. Estava assim na cama depois de o despertador cumpridor do seu dever mecânico ter arrancado, uma hora atrás. Antes que hesitasse como tantas vezes fizera, saltou da cama, ante o olhar pachorrento, mas surpreendido, do felpudo persa Rufus.

A caminho da sala, passou pelo espelho da casa-de-banho e viu um indivíduo cansado, bolsas por baixo dos olhos, barriga de bebida, ombros caídos. Decadência em pessoa. Mas hoje rejuvenescido de esperança. Sorriu foi direito à sua secretária onde se encontrava uma única folha de papel com os dizeres a vermelho berrante: “MASTER LIST”.

IMG_6753O rol de coisas que teria de fazer para o dia, a única coisa que interessava, a única que teria de captar a sua atenção nesse momento, não obstante o entulho de jornais, postais, embalagens vazias de paracetamol, canetas sem tinta, fios de iphone, moedas, foto de passe, enfim habituais inquilinos da sua secretária, que ele tratou de colocar em tudo quanto era sítio. A sua mesa tinha de estar imaculada. Só  a lista-mor teria legitimidade de pousar aí.

Dormiu bem e acordou nessa manhã cheio de ímpeto. Rapidamente, foi aí dar uma olhada, como quem inaugura um frigorífico com um livro de instruções.

  1. Fazer o depósito da renda
  2. Telefonar à Bel para combinar a tarde com os filhos
  3. Buscar os fatos à lavandaria
  4. Arrumar a estante de livros;
  5. Despejar as garrafas de cerveja;
  6. Despejar a  pilha de cartas abertas e por abrir que estão na secretária;

A lista continuava, era longa, ambiciosa. “Seja comedido. Não queira mudar o mundo num só dia!”.  Lia-se no artigo que passara a ser lei naquele dia. De facto, olhando agora para o que planeara, fora levado em demasia pelo entusiasmo. A autora do artigo, escreve muito bem, pensou. Ela já tinha publicado outro sobre os benefícios de açaí. E outro ainda sobre a meditação

“Não, pára!” gritou para si quando dera nota de que já estava a vasculhar a internet sobre a articulista. Teve no entanto uma ideia melhor: iria tomar um banho primeiro. Nada melhor que um jacto quente de água sobre o corpo ainda sonolento que o despertaria para o resto do dia.

A água que se soltou tinha a temperatura ideal, mas não como o jacto que previra. Reparou então que um fio de água jorrava por um canto da mangueira. Desenroscou-a e verificou que a anilha já gasta exigia substituição. Lembrou-se de que, para o efeito, tinha comprado umas novas, que deixara na sua caixa de ferramentas, havia dois meses.

Foi direito àquela caixa, onde rapidamente as localizou, no meio de parafusos, porcas, fios eléctricos, pilhas enferrujadas, chaveiro. Como também viu, a multifuncional faca suiça, aquela que fora prenda de anos da sua ex-namorada, adquirida em Gongbei e que se soltava com facilidade, por causa de um defeito num dos eixos. E sabia como apertar o parafuso, pois comprou a chave para o efeito.

Encolheu os ombros. “Não custa nada!” e pegou na chave e pôs-se a apertar o malfadado eixo que, não obstante, teimava em não ceder. Afinal a chave não era bem aquela que devia servir, concluiu. Mas que importava, pensou, se era a única do género para o efeito? E com isso passaram-se dez minutos. Até o persa Rufus não resistiu à curiosidade de interrogar que raio estava o seu dono a fazer, de cócoras e nu.

Não conseguira afinal apertar a porcaria do parafuso, pois decidira que isso exigiria uma chave apropriada e ele não a tinha.

“Fica para manhã!” , sentença óbvia com fundamento bastante, achou.

Sentiu os seus pés ainda húmidos e lembrou-se de que tinha deixado o seu banho matinal por começar. Levou a anilha consigo. Mas esta, embora de tamanho apropriado, apresentava um orifício mais pequeno. Não obstante, atarraxou a cabeça do chuveiro na mangueira e rodou cuidadosamente a torneira. O jacto continuou frouxo e por isso aumentou a pressão. “Ahh!”, suspirava agora de prazer com o impacto da água no seu corpo mole. “Isto sim, isto é que é…” Mas nem terminou a sua cogitação, quando a cabeça do duche rompeu com a pressão acumulada no extremo da mangueira. A água esguichava para tudo quanto era sítio, qual fonte desamparada, atingindo o que estava ao seu alcance, desde o tampo da sanita ao espelho por cima da bacia, dela nem escapando o candeeiro omnipresente do céu da casa de banho. Rufus, completamente desfigurado pelo súbito banho que não pedira, atentava agora o dono como um leão esfomeado diante de um jovem antílope.

Mais uma hora tinha passado  e a lista-mór continuava ociosa na secretária. Olhou para a casa de banho, meneou a cabeça, enquanto secava o pelo do persa. Resignadamente, não lhe ocorrera melhor ideia que um “fica para amanhã”. Mas, rematou com um veemente “A sério!” para calar a sua consciência que lhe bradava todos os impropérios.

Fazer o depósito da renda, como item prioritário da sua lista, implicaria sair de casa, pois nem ele, nem o senhorio entendiam o que era isso  de “online banking”. O mesmo seria ir à lavandaria ou jogar as garrafas vazias para o lixo. Olhou para fora da janela, o sol raiava pleno, não obstante uma nuvem preta se formava no horizonte. Decidira que a chuva era iminente. A consciência voltou a dar coices fortes, mas ele calara-a com um “não quero aquela gripe estúpida, que apanhei naquele dia só porque achei que não iria chover. Ia morrendo, lembras-te?!”

Tão convincente foi o argumento que a consciência assentira em ficar em casa nessa manhã, para dar início à odisseia do dia.

As lições da senhora do artigo, foram peremptórias: começar de imediato com a tarefa menos interessante, custe o que custar, pois será pior fazê-lo no fim do dia. Pegou assim no seu telefone. As suas mãos suavam, o coração batia, começava a antever a conversa e antecipava a percepção da voz enfadada de alto timbre da Isabel. Pressionou para ligar e nada mais o faria voltar atrás. Enquanto tocava a chamada, o “Não” da Isabel enformava no seu íntimo, mas para ele o acto era já heróico e estava  para cumprir até ao fim. Quando finalmente soou a voz mecânica do outro lado da chamada, de que o destinatário não estava disponível, teve a sensação de que acertara na lotaria. Alento para mais um sonante: “fica para amanhã!”

lettersMirou de seguida para a pilha de cartas e artigos de correio para despachar. Outra tarefa difícil. Mas iria enfrentá-la, peneirando desde já a espúria do essencial. Ao cabo de dez minutos, exalou: tudo era importante. Desta vez não queria deixar para amanhã, iria resolver isso depois do almoço. E começou por pensar onde iria comer. Italiano, Mac, ou novo tailandês ao lado da FerreiraExpress? “Não, não, já estou a perder-me. Despachar cartas já!”. Retomou a tarefa das cartas, limitando-se a transferir a pilha de um lado para outro.

No meio da papelada já poeirenta, topou um sobrescrito. Uma carta de alguns meses. Reconhecera a letra redonda de menina da Ti Aurora. Prometera tantas vezes a si próprio que iria visitá-la. Sentia pena dela, depois do falecimento do Tio Eugénio. Mas a vontade escapava-se-lhe à última da hora, sempre que decidia dar-lhe uma olhada. Abriu e retirou dele um cartão de aniversário.

“Querido A-Pi, desejo-te um dia muito feliz, neste que celebras os teus anos. Contes muitos mais e que tenhas um ano de muito sucesso.Da tua tia que tem muitas saudades tuas.”

Sorriu. Era a mesma mensagem de aniversário que se repetia durante mais de quinze anos. Ela nunca se esquecia dele. Não que o importunasse – ela até nem lhe telefonava -, mas as suas cartas anuais causavam-lhe uma nostalgia e um sentimento de culpa de que devia prestar-lhe mais atenção. Não obstante, a visita à Ti Aurora ia sendo adiada, com a ideia de que esta não se importaria. De facto, nunca lhe fora dirigido nenhum queixume, ao invés, ano após ano, lá acontecia receber um cartão de anos, com os mesmos dizeres.

Prestes a despachá-la, quando reparou que havia mais qualquer coisa dentro do envelope. Ajeitou-o e retirou daí uma folha bem fina, daquelas que se usavam para cartas. Ti Aurora guardava tudo que pudesse ser reusado, mesmo as resmas de papel que o tempo tratou de amarelar.

“Querido A-Pi,

Estou a escrever-te, enquanto me lembro de ti. Não sei se o mesmo acontecerá se algum dia me vieres visitar. Por favor, não é para te sentires mal, acredita. Sei que a tua vida tem sido confusa, nestes últimos anos. É evidente que não tens tempo. Mas prometi à tua mãe que cuidarei de ti como se fosses o filho que eu nunca pude ter e assim terei de fazer o papel de chata. Já estou a sentir a ciumeira do Eugénio, mas ele também gostava mesmo muito de ti.

Como tu estás?”

IMG_6749Fez-se um profundo silêncio na sua alma. Algo das suas entranhas irrompia à rédea solta, pela espinha acima, desenvencilhando-se das amarras que ele tão cuidadosamente montara ao longo do tempo. A carta simplesmente o surpreendera, nesse que seria o tal dia. Esvaziou-lhe o propósito e encheu-lhe de remorso. Não dava mais para amanhã, era para já ou nunca mais.

Esqueceu-se da lista-mor, de Rufus, de tudo. Vestiu-se e em dez minutos estava de saída. Mas antes de se lançar à rua, arrasta consigo o grande saco de plástico repleto de garrafas de cerveja, rumo à lixeira.

Na rua, ligara para o asilo, mas a linha estava ocupada. A meio do seu caminho, deu-se com a lavandaria. Hesitou, mas rapidamente encolheu os ombros e lá entrou. Já no autocarro, tentava equilibrar-se, com o saco dos fatos apertado na axila, prosseguiu a leitura da carta, onde a voz da Ti Aurora soava pela sua letra de miúda, mais alto que o ruído circundante.

“Fiquei muito feliz quando te casaste. Achei que tinha cumprido a promessa à Emília, que o seu pequerrucho tinha crescido bem, se fez homem e agora iria constituir família. Estava mesmo a ver o sorriso da minha mana. Como são parecidos.”

Sorriu, lembrando-se também de como estava lindo de felicidade nesse dia, pois para além da bela moça que desposara, o semblante da Ti Aurora resplandecia de felicidade. Queria que ela presenciasse essa etapa importante da sua vida. Se mãe é única para muitos, ele tinha duas. E ela-a de verdade.

Saiu do autocarro e chuviscava. Com as mãos ocupadas, outra solução não teve que se abrigar num sítio, onde houvesse toldo. Estava a dois passos do asilo e, sem notar, à porta de um banco. Chovia agora copiosamente.

Enquanto esperava pela sua vez na fila do depósito, lia as palavras da tia.

“Que alegria me deste quando vieram os teus pequenos. Eram como se netos fossem. Mas a tristeza também chegou cedo quando as coisas correram mal. A Bel mal te fala e levou os meus pequenos. Bem. ela é mãe o que se há-de fazer?”

Sorriu novamente, quando a imagem dos seus gémeos Ernesto e Júlio lhe apareceu na memória. Tão lindos eram eles, com as covinhas da mãe, branquinhos com um tom rosado nas suas bochechas, de olhos entusiásticos fixos nele, como se dissessem “pai, que giro!” .Identical twin boys

Mas a amargura não tardou a sobrepôr-se, quando no idílico quadro que se formara na sua mente apareceram cenas de discussões violentas em casa, os gémeos em pranto, Bel aos gritos e ele próprio prostrado no sofá mirando a TV refugiando-se no silêncio, com o pavor de enfrentar a realidade. O coração apertou-se quando reviu a cena dos gémeos com os olhos fixos nele, não já de entusiasmo, mas de despedida que eles não entendiam, no dia em que Bel os levou para fora da casa.

Finalmente chegou ao asilo e subiu ao segundo andar. Mas Ti Aurora já não estava no quarto. A enfermeira informou-lhe que tinham mudado todos os idosos com necessidades especiais para uma outra zona, devido ao surto de gripe a que estariam mais sensíveis. Por um segundo temeu o pior, mas suspirou de alívio. “Dona Aurora, deve estar lá em baixo a descansar”.

E lá em baixo viu a Ti Aurora, estava sentada e de costas para ele. Ele hesitou e rapidamente pensou em várias frases por onde pudesse pedir convincentemente desculpas. 956px-Elderly_Woman,_B&W_image_by_Chalmers_ButterfieldMas antes que ele pudesse balbuciar algo, uma enfermeira interrompeu. Vinha com comprimidos e um copo de água. Mas notara que Ti Aurora, não dizia nada, o seu olhar era vago, como se estivesse a navegar em sonho, sem se fixar em algo real.

“Passa-se algo com ela?”

“A condição da Dona Aurora está a  piorar. Era uma senhora tão simpática quando cá entrou e tão rapidamente ela está a desaparecer”. A enfermeira fez uma pausa. “Você … sabia que ela está com Alzheimer em estado galopante, não sabia?”

Não respondeu e lembrou-se das outras cartas empilhadas ainda por abrir, a ganhar poeira algures perto da sua secretária. A partir daí o seu mundo se reduzira àquela senhora serena de olhar vago, sentada a seu lado, que tempos já idos costumava abraçá-lo, beijar a sua testa, cortar o seu cabelo, dar-lhe ombro para choro, fazer-lhe festinhas nas costas, sussurrar-lhe lenga-lengas de nanar, a quem ele ia comunicar as boas notas em matemática, o prémio de distinção na escola, a notícia de que fora aceite na faculdade, que acabara o mestrado com distinção, que casara com a mulher mais bela do planeta. A senhora a quem chamava de mãe.

“Cheguei, Ti”. Apertou nos seus braços a serena e frágil senhora, confusa e sem noção do que se passava. “Desculpa, Ti. Desculpa.” Foi o que soube dizer, sem ter de fazer apelo à consciência, pois o coração foi mais eloquenteMas pela primeira vez, desde há muito tempo, sentiu saudades antecipadas, porque a enfermeira não tardaria a voltar e lhe pediria que voltasse noutro dia, pois a enfermidade da Ti Aurora não permitia momentos efusivos prolongados.

old eyes

Deambulou pela cidade fora, sem querer ir para casa. O vazio nunca fora tão pesado, avassalador. Olhou para outro lado da rua e um novo estabelecimento de sopa de fitas inaugurava, no meio da estrondosa alegria, com muita gente a falar e a gargalhar ao mesmo tempo. Devia ser negócio de família, pensou. E ele caminhava, lembrando-se das últimas palavras da carta.

“Ando preocupada contigo. Não preciso que te dês com ela, pois dessas coisas de marido e mulher, cada um melhor saberá. Mas preciso que estejas bem, conformado contigo próprio, que te aceites, ainda que passes o resto dos teus dias sózinho. Mas sabes, é muito triste viver só num barco sem porto à vista.”

Parou e pegou no telefone. Doutro lado tocava e desta vez foi atendida a chamada.

“Bel… “

“Que queres agora?”. Era audível o tom ríspido da sua voz.

“Apenas queria que me desses um minuto para eu dizer o que tenho aqui dentro e prometo não telefonar mais. Sei que tenho sido um lorpa, a minha vida foi um caos, um autêntico monstro, um egoísta inveterado. “

“Deste-me a esperança de ser uma pessoa melhor, deste-me dois filhos que qualquer pai se orgulharia de ter, deste-me um lar que um marido pode ter de melhor. Mas nunca soube assumir a nossa família, fui um ingrato contigo e com os filhos.”

“Inicialmente liguei para combinar o dia com eles, mas preferi utilizar este tempo que me permites para te dizer isso, sem querer que me queiras de volta, mas apenas que saibas que estou triste comigo mesmo. Nem à Ti Aurora pude ser filho como ela merece. Não quero que te esqueças da merda que fui, mas apenas me perdoes o mal que vos fiz, para eu me reencontrar e me regenerar.”

Do outro lado Isabel não disse nada, a pausa foi dolorosa e por fim ela desligou. Sabia que ela não lhe diria nada. Mais nada restava, na verdade. No entanto, sentiu-se bem, mais leve ainda que continuasse a sangrar o seu coração. Sentiu um novo alento, uma nova perspectiva de vida.APC_0005-hdr

Iria estar só mas conformado consigo mesmo. Passou pelo Petshop e comprou novos biscoitos e paté para Rufus.

Duas semanas passaram. Em casa despejou as cartas fora, todas sem excepção. Contactou o canalizador e encomendou nova toca para o persa. Era noite ele saboreava um prego e um sumo ante o olhar sereno do felpudo Rufus. Via-se que estava mais reconciliado com o seu dono.

Faltava recolocar os livros na sua estante quando a campainha toca. Deve ser a mulher de limpeza do automóvel. Embora em bom rigor aquela limpeza não se justificaria, pois o carro não saíra do lugar durante o mês todo. Não obstante, empunhava o dinheiro quando abriu a porta.

Dois pares de olhos entusiásticos, miravam-no de baixo para cima, com sorrisos que vincavam mais as covinhas idênticas. Seguiu-se uma voz feminina mais serena, branda e esperançosa.

“Podemos entrar?”

Macau, 24 de Agosto de 2018, sexta feira.

© Miguel de Senna Fernandes

O Filho da Porta

“MOM-TIA … Goo-molling … chou san!”.

Assim anunciava com a sua voz forte e nessa linguagem peculiar, o começo do dia no edifício “Veng San” (永新), 

“Eternamente novo”, como seria traduzido para português, o auspicioso e bem intencionado nome desse edifício. Efectivamente, assim se esperava quando acabou de ser construído, nos finais dos anos setenta do século passado, com uma traça arquitectónica moderna fora de comum para altura, com tons sóbrios de verde esbatido nas partes salientes e branco no fundo. Com quatro fracções por cada dos seus quinze pisos, albergou parte da grande vaga de quadros portugueses do início da década seguinte, numa altura em que também aí estavam os então jogadores hispânicos da pelota basca. Mais tarde, absorvera ainda algum do contingente australiano, que vinha para as corridas de cavalo a trote, na então remota Taipa.

Sem surpresa, o velho Kong Va aprendera a lidar com esse universo multinacional, de gente de tão diversos mundos que por acasos de vida se encontravam a partilhar o perenemente novo edifício. Na verdade, não tinha de o fazer. Mas pelo seu feitio, nunca se limitaria a ser um simples porteiro.

refugeesFilho de pais refugiados da província de Fujian, entrou com cinco anos de idade em Macau, pelas Portas do Cerco em 1940, dias antes da queda de Hong Kong nas mãos dos japoneses. A vida não era fácil para chineses, encarados como povo inimigo pela potência belicosa de então, mesmo em solo neutro, como era o secular enclave português – o único ponto na imensa China, oficialmente em paz. Não foi preciso lição alguma para perceber, que para viver teria primeiro de sobreviver, e para isso tudo valia. Enquanto o pai puxava jerinxás e a mãe lavava a roupa da vizinhança, o pequeno Kong Va deambulava pela cidade, fazendo biscates, sendo moço de recados, assistindo senhoras no mercado, carregando os seus sacos de compra, apoiando os asilos de invalidez e de refugiados.

Desde muito moço, convencera-se de que precisava de uma receita estável e assim, sendo tarefeiro, teria que ser arguto, eficiente, conversador e, acima de tudo, discreto, para ganhar confiança de todos quantos regularmente assistia. Não obstante a fome à espreita, fazia questão em ser diferente dos outros, que se aproveitavam das situações para furtar. Tinha que se dar com todos. Tudo para garantir que ao jantar houvesse um pouco mais de arroz, para além do que o suor de seus pais trazia para as suas tigelas.

Não conheceu a infância, pois cresceu depressa e cedo se virou adulto. Duro de físico, era libente de espírito,  graças ao que conheceu e cruzou com muita gente. Não falava português, nem inglês. Mas, fazia-se entender nessas línguas com um léxico próprio, completando-se com sons, bocados de palavras, olhares e gestos de uma comunicação universal.

IMG_2145Sabia quem seria novo inquilino e quem deixara de o ser, as horas que todos entravam e saíam. Resolvia o problema de todos, desde o entupimento dos canos até as falhas da recepção televisiva. Se não podia arranjar por si, chateava quem o pudesse e devesse fazer. Homem sensato que entendia as questões em poucas palavras. “Nâm pissisa falâ… Kong Va sábi tudo!” (1)Acima de tudo, mantinha a ordem e fazia o trabalho que nem todos teriam o desplante de fazer.

Não poucas vezes viam-no a descompor meninos mal comportados que jogavam a bola no átrio da entrada. “Minino-malánto nâm-póte!” (2)era o seu vernáculo, ao que não admitia réplica.

Ou então, quanto à viúva do terceiro andar “A”, tornada aluna do Conservatório que flagelava à noite meio mundo com uma ária esganiçada, era ele quem bateria à sua porta, com mãos à cabeça, para um implorado “Aia! sióla, muto balúio … nâm-póte dumí!” (3).

Farejava esturro à distância, e quantas vezes não se o ouvira dirigir-se ao forasteiro de mau-olhado, com um sonante “Kat-chât-lou” (4) ou mesmo no seu castiço português  “Puta-caláio vai casa!”. Dizia-o com tanta autoridade que raramente tinha de fazer valer os atributos físicos que lhe dera o calvário da sua vida. Apesar de possuir mãos para estalo e murro, também levava sova de quando em vez, mas o agressor cogitaria a dobrar, antes de planear um novo retorno ao prédio.

Sabia das virtudes e defeitos de todos, que à surdina da noite se revelavam. Mas, mantinha a sua boca selada, qualidade que fazia questão em honrar. IMG_8028O seu silêncio mantinha-o indefinidamente seguro, com autoridade moral para assegurar a ordem no edifício. Aliás “que ganho eu com os podres dos outros, senão a podridão de um cusco?”, dizia ele aos seus botões.

Para uns ele era um filho da mãe – “com um P bem soado!”, como insistia um inconformado. Para outros, o filho do Divino colocado à porta do edifício, para a paz e sossêgo de todos.

Porém, anos passaram e coisas mudaram. Foram-se as pessoas e os ventos sopraram para outros nortes.  O tempo não poupou o já velho edifício, cujo nome passou a ser uma ironia. O verde esbatido era agora mais musgo que tinta, que se alastrava pelo branco, por sua vez já acinzentado.  Nos corredores já não se ouvia português, nem o já idoso Kong Va exercitava o seu invulgar vocabulário. Em seu lugar, passou a ser o inglês com forte pronúncia de tagalog, o mandarim ou então um cantonês amandarinado. Já não tinha tanta força nas pernas para subir e descer pelas escadas do edifício. E tudo se abandalhou.

Não obstante, Kong Va exercia ainda alguma influência sobre a manutenção da ordem, resolvendo à sua maneira as dores de cabeça de todos. Até que chegou um novo inquilino, com características bem diferentes. Mais implicativo e crítico de tudo quanto existia no edifício. IMG_6048Sujeito franzino, de bigode, com um penteado do tipo tapa-carecas, Kenneth Tam vinha de Hong Kong, com ideias muito próprias sobre a gestão de condomínio, à custa do que desdenhava “o atraso de vida” reinante em Macau. Repugnava-lhe no prédio o ambiente “terceiro-mundista” oriundo da “promiscuidade de nacionalidades”, como qualificava. Não nutria confiança por quem não fosse semelhante a ele.

Estava de peito feito para implementar grandes mudanças, quando se tornou administrador. Afinal, dizia, protegia a sua propriedade e o investimento de todos os condóminos, o que lhe merecera aplauso de todos e legitimidade bastante para se impôr. Encheu as paredes de avisos e notificações. Passou a haver regras para tudo e assembleias gerais a todo o tempo.

A única coisa interessante em Kenneth, era tão-só que se casara com alguém que nada tinha a ver com ele. De pele alva, tatuada nas vistosas costas, stockings-hiheelde altura mediana, cabelos lisos e sedosos, seios pequenos mas orgulhosos, ancas ágeis, ela tinha compleição física que faria ressuscitar qualquer alma condenada à morte eterna. O som dos saltos que o seu bamboleante e pausado andar causava sobre o chão de mármore, prenunciava pecado aos homens e  ciumeira violenta às suas mulheres.

Até o velho Kong Va franzira as sobrancelhas quando pela primeira vez a vira e inalara o seu aroma de sândalo. Contudo, para ele o espectáculo durou pouco, pois foi das primeiras vítimas do “grande salto para a frente” no prédio. Recebera a carta, tal como os seus colegas seniores, de que não se lhes renovaria o contrato de prestação de serviços de vigília. O novo plano de reabilitação do edifício não se compadecia com o amadorismo de um punhado de idosos, requeria antes o profissionalismo de uma empresa de segurança. Não se revoltara contra isso, pois o seu bom senso já o tinha precavido dessa data, vários anos atrás. Mas as duas semanas que lhe deram para resolver a sua vida tornaram-se martirizantes.

Na noite em que se despedia de todos, decorria mais uma assembleia geral de condóminos, em que Kenneth vangloriar-se-ia dos seus últimos feitos, desta vez apresentando a todos a nova equipa de vigilância que contratara. No quarto adjacente à portaria, Kong Va despachava a sua quinquilharia acumulada no decorrer do tempo, desde bocados de gaiola, até rodas de carrinho de bebé, quando um grito histérico se soou nos corredores. Alguém andou a urinar no elevador e ninguém quer saber, que vergonha, ouvia-se. O administrador, irado com a interrupção que o malfadado brado causara, embaraçado com o comentário pouco lisonjeador, foi logo ter com Kong Va. Antes que este iniciasse uma careta, vociferou.

“Estou-me nas tintas se é o teu último dia. Quero saber quem anda a sujar o meu prédio! Onde mora e com quem. E tu vais-me dizê-lo com todo o pormenor que eu queira!”

“Sim, Sr. Tam. Percebido”. Iria ser esmifrado até o último momento, foi o que bem depreendera daquele tom de voz e dos olhinhos de tacanhez. Não obstante, encolhera os ombros e não reagira. Iria honrar o seu compromisso até o último segundo, como também sabia há muito ser da sua sina.

lambaz

Dirigiu-se ao elevador, com balde de água e lambaz e observou a poça. Não era volumosa. Não era canina, nem felina. O odor não acusava álcool, nem consumo de fritos. Se o sujeito estava aflito, teria descarregado litros e nunca seria no elevador, pensou. Ou então, estando aflito, não seria adulto. Não vira alma nenhuma, apenas se ouviam aplausos efusivos que se ressoavam da sala improvisada para a reunião dos condóminos. Encolheu os ombros e pôs-se a limpar a sujidade.

Pressentiu que não estava só. As paredes velhas do edifício pareciam sussurar-lhe sobre uma alma tímida à espreita num canto do longo corredor. Kong Va fingiu não dar por isso e resolveu introduzir-se no elevador à espera de um movimento do exterior. Prevendo uma correria que passaria pelo elevador, só teve de esticar o pau do lambaz na altura certa. O suficiente para fazer tombar um gigante. Porém, o que se estatelou no chão fora algo que confirmara as suas suspeitas.

“You?” Kong Va reconheceu-o, mirou para o local molhado e fixou nele os seus olhos julgadores.

filipino_boyPlease Sir, patawad po (5)! I didn’t mean to be a masamang bata (6), Sir. But I couldn’t go home, don’t be mad at me, please Sir!”, desfazia-se o pequeno em pranto, quer de pavor, quer de vergonha, enquanto os seus calções se encharcavam de urina.

“You velly malánto! Nei-tou no toilet! You want shi-shi… you go out!” (7)Exclamou o velho, no vernáculo de que já sentia saudades.

“No time, sir, I’m so sorry. It won’t happen again! Please don’t tell my dad!

Antes de terminar a frase, já o menino fora puxado para dentro do elevador e Kong Va pressionando o botão de subida para o 11º andar. Ignorando as suas súplicas, foi direito ao seu apartamento.

À porta ouviam-se murmúrios ritmados em contrabalanço com um martelar compassado, mal se discernindo, contudo, se era metal contra a parede, se madeira contra o chão. O certo é que a campainha tocava e ninguém correspondia. Kong Va, bem ciente do que se passava aí dentro, já não tinha a paciência de outrora, cerrou o punho e deu três pancadas fortes à porta de madeira. Rapidamente cessou a martelada, mas nem por isso a chamada foi atendida. Mais três murros se seguiram, cada um mais forte que o outro.

A porta abriu-se por fim e saiu de lá Aquilino, um filipino, arfando descalço e seminu. Fitou no olhar frio e penetrante do velho porteiro, com a mão dada ao seu filhote, ranhoso e de calções molhados, e percebera da borrada em que se metera. Juntou as mãos em posição de prece.

Pa...pataw…”.

A manápula rugosa do velhote no pescoço franzino do filipino, impediu que ousasse a acabar a frase. Apontou o seu indicador directamente para o seu nariz.

“Nest time you tiu-hai, boy stay and shi-shi home. Chi-ng-chi-tou?! I call police!” (8)

Aquilino sentira uma vontade súbita de repetir a façanha do seu pequenote. Kong Va, porém, olhou por cima dele, para a escuridão. Não viu ninguém, mas inalara e franzira as sobrancelhas. Meneou a cabeça, suspirou fundo e deixou o filipino em paz, ante o seu atarantado filhote. Tinha cumprido o seu papel, não precisava de mais.

Já em baixo de novo no seu poiso, continuou a lidar com a sua bugiganga. Nessa altura, tinha terminado a assembleia geral e Kenneth transpirava vitória. O administrador prontamente se dirigiu ao estaminé do velho.

“Então, o que me contas? Solta a língua!”

Foi um puto que estava aflito e que não conseguia entrar em sua casa. Nada de mal, não se preocupe. Já está com o seu pai e já limpei tudo o que tinha que limpar, Sr. Tam.”

“Casa de quem? Casa daquela gente?”

Kong Va apenas baixou as suas pálpebras. “Está resolvido, Sr. Tam. Já lhe chamei a atenção, asseguro que…”

“Eu fiz-te a pergunta. Responde sim ou não!”

“Sim, Sr. Tam.”

“E quem mais estava dentro de casa?”

Não vi mais ninguém. O que está dentro de casa, não é da nossa conta, Sr. Tam.”

“Tens a fama de saberes de tudo e agora não viste mais ninguém? Sou o administrador tenho o direito de saber que gentalha mora aí. Não te armes em espertinho, quem mais esteve naquela casa, seu velho canalha?! “

As pálpebras do velho semicerraram. Havia muito que não exercitava os músculos que a sua vida lhe dera, de cuja rigidez não duvidava. Com a mesma mão que apertara o pescoço de Aquilino, segurou a gravata de Kenneth e puxou-o para si. E sem pestanejar mirou nos aturdidos olhos do administrador. E segredou:

“A sua mulher, acredita se quiser! E diga-lhe que sândalo sai-se muito mal com o fedor de  suor, Sr. Tam!”

Fez-se silêncio fúnebre no “Veng San”. Não mais foi importunado até ele deixar o local.

Enchera com os seus haveres e pequenas lembranças um saco de plástico rijo com listras de cor azul e rosa e arrastou-o para o corredor. Olhara para o relógio, quando badalara a meia-noite. Chegara o fim desta longa etapa da sua vida. Os seus incansáveis olhos percorriam pelos cantos do edifício, pela derradeira vez. Muitas das paredes levavam já a nova pintura encomendada por Kenneth. Ficaram vistosas, com tons alegres e joviais, um ar de novidade se introduzia no edifício, lufando frescura. Fez-se jus ao seu nome que afinal não era mera ironia.

Mas para Kong Va, cada canto era uma voz, cada ranhura um grito, um bocado de si que a nova pintura tratava-se de apagar. Em poucas horas de pincelada soterrava-se uma vida, para ganhar uma outra nova sem passado e de futuro incerto. Encolheu os ombros e saiu do edifício.

A lua resplandecia no firmamento. Olhou para trás, sorriu e também pela última vez se despediu do dia.

“Mo-nôte!” 

Macau, 8 de Junho de 2018, sexta feira.

© Miguel de Senna Fernandes

___________________

(1) “Não é preciso dizer mais, Kong Va compreende tudo!”

(2)  “Meninos marotos, não podem (jogar à bola)!”

(3) “Ó minha senhora, é muito o barulho … ninguém dorme!”.

(4) Calão cantonês correspondente a “Vai p’ró c*ralho!”.

(5) “Peço perdão” em tagalog (filipino).

(6) Traquinas, em tagalog.

(7) “És um maroto. Isto aqui não é uma retrete. Queres xi-xi, tens de sair (do prédio).

(8) “À próxima que f*deres, o teu puto fica e mija em casa. Entendes?  Ou eu chamo a polícia!”

 

Hora do tempo

“SABES que horas são?”

Se há pergunta que mais nos incomoda! Não a Humberto, porém. Ele nunca tinha de a responder, pois era antes ele quem a fazia.

manage-time-10-tipsSolteiro, nos seus 40 anos, Humberto Salinas era director comercial da “Time Change” uma empresa de importação e exportação de relógios e acessórios, de e para o Continente. Indivíduo de uma competência rara em tudo quanto metia o seu dedo. Disciplinado, resoluto nas tarefas que desempenhava, pressionaria sem hesitar qualquer botão, se fosse caso disso. Não porque fazia tudo à toa, não queria era perder tempo.

Começava o dia às 7:05. Isso mesmo, às 7 horas e cinco minutos os seus olhos abriam. Não precisava de despertador. “É da minha natureza”, dizia, vangloriando-se dessa sua qualidade, que considerava um dom, numa era em que se morre tanto pelos alarmes.

Às 7:15 teria feito a cama e acabado de se lavar, com o seu fato de treino enfiado para um power walk no paredão da Taipa. Não demoraria muito, mas em quarenta e cinco minutos de marcha contínua, segundo lera, o corpo começaria a sentir os benefícios de uma pulsação a 140 batidas ao minuto.

Às 8:15 já de fato cinzento, gravata azul-escuro e camisa branca, escolhidos e passados a ferro na noite anterior, sairia de casa e às 8:30 estacionaria o seu carro no auto-silo. Quinze minutos depois, a empregada Joyce do Marabella, servir-lhe-ia a bica sem açúcar e uma tosta mista. Em não mais de 10 minutos terminaria a sua frugal refeição, para dar entrada às 9:00 em ponto na “Time”.

Isso era diário, fazia-o por sistema. Amante das listas “para fazer”, colecionador de calendários, que os tem para variadíssimas finalidades, escusado era dizer que detestava surpresas. E isso granjeou-lhe a fama de grande profissional, em quem se podia confiar, neste complexo mundo de chineses, tipicamente avesso ao improviso. Era o homem do tempo certo. Houve quem nos círculos mediáticos sugerisse, jocosamente, que deveria ser nomeado Secretário do Governo, para que se desse vazão a coisas públicas que teimavam em atrasar-se. Tornou-se o orgulho da empresa e inveja dos concorrentes, que lhe pagariam muito mais para daí sair. Ele manteve-se, porém, fiel à “Time”. Ainda não chegou a hora para isso.

Time-Spiral-1200x1200Contudo, se era um prodígio para a sua companhia, era um carrasco para os subalternos. Qualquer papel ou diligência fora da hora designada, era motivo de severa repreensão, independentemente das explicações que ao caso couber. Levaria uma hora para rever tudo o que fizera no dia anterior, analisar o “schedule sheet”, verificar os telefonemas que teria de fazer no dia e peneirar do vasto correio electrónico diário, aquilo que mereceria a sua atenção.

Se o homem é escravo de qualquer coisa, dizia, preferiria a sua submissão ao tempo, à droga das redes sociais. E assim evitaria a contaminação da fútil distracção internética ao trabalho que requereria pontualidade. Ponto por ponto, na ponta da hora.

Todavia, tal como os relógios param, de vez em quando também falhava. Contratempos surgem quando menos se esperam e ele compreendia-os, embora teria o dia estragado. Entre outros remédios, faria no seu gabinete 15 minutos de meditação. Isso recuperar-lhe-ia o  seu senso de disciplina nesses dias de crise, dias para esquecer. Usaria da mesma receita à noite antes de dormir. O estado de leveza a que pretenderia chegar com isso, desbravaria caminho para um sono tranquilo, que se prolongaria até as 7:05 do dia seguinte. Uma espécie de reboot do seu sistema.

Porém, num dia desses, nada funcionou. Nem com a meditação, nem  com o assistente e a secretária ao seu dispor, pôde restabelecer o seu equilíbrio espiritual. O escritório de cima resolveu entrar em obras e o som da broca e do martelo nas paredes era demolidor. Embora já tivesse sido alertado dessa ocorrência, não teve outra solução que sair.

Fora do seu escritório as coisas também não melhoravam. Desde logo a espera pelo elevador, que nunca mais chegava. Tentou minimizar a sua impaciência, focando o seu pensamento em coisas que nada tinham a ver com a realidade que enfrentava no momento. Aprendera que quanto mais se odeia o momento que se vive, mais longo é o tempo que se sente. Imaginou-se a pedalar nos Lagos Nam Van.

Elevator_Original-1024x675

Por fim, entrou no elevador vazio e suspirou fundo. Pensou nos lugares onde iria quando já marcavam 11:00. Iria à biblioteca requisitar um livro, até 12:30. Depois, a pé ao Clube, onde almoçaria e ficaria até às 3:00 da tarde. De seguida daria uma saltada à casa de cafés, a Ferreira Espresso  para levantar a sua encomenda e… A porta do elevador ia fechar, quando uma mão feminina o impediu.

“A tempo! Que sorte!” – sorriu ao entrar diante do atordoado Humberto. “Estes elevadores fecham depressa demais, para depois serem tão lentos”. Ele assentiu mudo, não esperava alguém lhe falasse tão despreendidamente.

“Morreria, se eu tivesse que ir para o hospital”, queria que isso soasse a piada, mas era o que se soltara da sua cabeça. Ela tapou a boca e riu-se, concordando.

“E com a câmara ali em cima, tornar-me-ia numa pessoa famosa, tendo presenciado uma morte tão estranha!”, respondeu com o mesmo à-vontade com que iniciara. Gargalharam à medida que o elevador descia a passo de caracol.

A sua voz era aveludada, meiga com ligeiro tom gutural. Olhos vivos e amendoados, castanhos claros, num rosto alvo de cor de marfim. De cabelos compridos e sedosos, com estatura mediana, vestia-se em tons de flores secas, a condizer com o sorriso mais fresco que alguma vez ele já vira. Podiam-se adivinhar os traços do seu físico, delgado e frágil, o qual assentava graciosamente sobre os seus pequenos pés, em saltos altos de cor clara. Era a primeira vez que vira Elaine.

pumpkin-clock

Primeira vez também, desde há muito tempo que uma mulher o olhava daquela maneira que o perturbava. Não lia segundas intenções naqueles amendoados olhos, apenas uma fascinante espontaneidade.

Nunca imaginara que a cavaqueira do elevador se prolongasse na rua. Banalidades que não acrescentariam nada de novo à sua existência, puxavam para outros assuntos e provocavam mais surtos de risada genuína. Dela soube que nascera em Macau, que voltara dos Estados Unidos e estava à procura de um emprego como contabilista. Não era nova, vinha recomeçar a sua vida.

Havia muito que não acontecia estar na dúvida para onde iria. No entanto, essa incerteza estava a dar-lhe um prazer inexplicável. E tocavam horas de almoço. Não lhe apeteceu ir ao Clube. Ela então sugeriu que comessem um van tan min ao Vai Kei, o estaminé dum velho amigo de seu pai. Aí sorveram e devoraram a sopa de fita e de propósito, fizeram-no ruidosamente que nem uns catraios.

Depois falaram, disseram e conversaram. E muito, pela tarde fora. Era filha única e assim partiu para a América, de lá voltando divorciada. Se isso era boa notícia para os pais, só os deuses dirão, o certo é que estava à mercê do destino que se lhe reservava. Muito desencontro e tempo perdido, na sua vida longe da terra. Ele disse-lhe que era essencialmente um trabalhólico, vivia sózinho, não obstante, com o tempo completamente preenchido. Lia muito, cozinhava para si. Desde que voltou de Lisboa, nunca mais saiu de Macau. Não tinha muito mais para lhe contar. Gostaria de ter sido tão franco quanto ela. Não lhe quis dizer de quanta sova, escárnio e provação apanhara em pequeno por chegar atrasado.

“Porquê tenho a sensação de te conhecer há muito?”, Elaine perguntou-lhe enquanto faziam o longo caminho a pé até sua casa, já depois do jantar.

“Também me interrogo disso desde o elevador, porquê nos damos tão bem?”

“Não tens uma namorada porquê?”. Aí ele hesitou.

“Ninguém perde tempo comigo. E eu respeito isso”, esboçou um sorriso tímido. Não podia ter sido mais real consigo mesmo. Sabia que mostrava o seu flanco, mas estava demasiado cansado de se defender, como sempre fez durante toda a sua vida. Ela sabia também e não insistiu.

“Sobes?”

Related image

Em casa dela não falaram mais. Entregaram-se como amantes por toda a vida. Exprimiram-se em murmúrios, palavras quebradas, olhares e suspiros, numa dançante cumplicidade que só a eles fazia sentido. Para ela, a sorte deu-lhe o tempo para um reencontro na sua vida. Quanto a ele, o tempo deu-lhe a sorte para se reinventar.

Os seus olhos abriram às 7:05. Cumpriu-se o seu power walk  e às 9:00 abria-se-lhe a porta automática do edifício da “Time”, depois do pequeno almoço no Marabella. O que se seguiu foi uma revolução. Cumprimentou todos, desde o seu assistente ao estafeta Ah-Meng, elogiou o belo vestido da sua secretária. Esteve atarefado a ler as notícias da manhã, limpar  o lixo do seu correio electrónico. Pediu à secretária que cancelasse todas as reuniões marcadas para o dia. Instalou-se o pânico e todos acharam por bem que o director fosse para casa, enquanto prosseguir a martelada no piso de cima.

Ele ria-se em silêncio do escândalo que estava a causar. Olhou à sua volta, os gráficos, as notas organizadas e mapas nas paredes, três computadores sobre a extensa secretária, retratos com empresários do Continente, com o Chefe do Executivo, as medalhas e troféus vários, um gabinete que espelha sucesso. Mas em quê, se em vinte e quatro horas tudo mudou de sentido? Ainda que tudo fosse um mero delírio, ao menos viu cores que só ele podia ver.

Enquanto cogitava, o nome “Elaine Lee” aparecia no visor do seu telefone que vibrava.

“Sabes que horas são?!”

Não estava a sonhar. Tinha combinado almoçar com ela e estava atrasado. Abriu-se nitidamente um novo capítulo da sua vida, para durar como o tempo quiser e para o que der. Sorriu de alívio e num ápice estava em casa dela.

E nesse fim da tarde amou-a. Não havia nada que lhe interessava mais. Apenas desejava que aquele momento levasse o seu tempo indefinidamente. Na telefonia ouvia-se um clássico bolero.

“Reloj, no marques las horas… porque voy enloquecer…”

 

2 de Março de 2018, Sexta feira

@ Miguel de Senna Fernandes

A Obra do Art

Tudo começou com ele aos berros com o seu interlocutor, numa discussão ao telefone que ocorrera  às traseiras do restaurante onde interrompera o seu almoço, num terreno ainda vago para construção. Ninguém daria importância alguma se ele não fosse Art Dung.

Nascido Artur Durão, Art passou, de um momento para outro, a ser uma das pessoas mais populares e respeitadas do burgo. Quando foi lançado o seu primeiro livro “O Furo no Pneu”, sobre a vida de um barbeiro, mal imaginava o editor que estava perante um fenómeno. “Estilo etéreo”, “assombro nas letras” e outras expressões do género foram-se ouvindo a seu respeito em tertúlias e noutros círculos intelectuais. Passou a ser convidado a opinar sobre arte, desde a música à culinária. À primeira, não se entende nada o que diz. Porém, ”ele é profundo”, dizem.

Indivíduo de metro e quarenta de altura, de calva brilhante, voz de flauta e óculos escuros mesmo à noite, invariavelmente de casaco negro luzidio de cabedal, faça sol, faça chuva, frio ou calor. Exprime-se efusivamente, qual regente de uma sinfonia de Brahms,  correspondendo a cada expressão um gesto, um trejeito, um rolar dos olhos. Não se sabe se ele faz gala disso, mas é amiúde surpreendido a pensar alto, não só falando consigo mesmo, como também com tudo que encontrava pelo caminho, incluindo cães, gatos e plantas. As pessoas sorriem com deferência perante o espectáculo que faz com gosto. De facto, pelo estatuto alcançado quem ousaria a por em causa a sua genuinidade intelectual? É o homem do momento, o mais cool de entre os seus semelhantes.

Mas, estava nesse dia visivelmente incomodado. Os seus braços curtos esticavam-se e contraíam-se, num vai-vem estonteante à medida que altercação se desenvolvia. Ao que se apurou mais tarde, foi a propósito de uma sanita que ele apelidara de  “modelo florentino” para sua casa de banho que o seu empreiteiro não conseguira encomendar. Sentira-se enganado.

IMG_5957A sua voz era tão estridente que tirou o sono ao velho Vong Kam, o qual aí se recuperava a custo de uma ressaca da noite anterior. Tinha nesse dia um transporte a fazer do entulho que aí se encontrava, uma amálgama empilhada em forma de cubo, de ferro velho, objectos de bronze, bocados de bacias, tampos de sanita e um pouco de tudo. O velho Vong resolveu então retirar-se do sítio rumo à mercearia Leng Kei. Já que não podia continuar no seu sono, ao menos saboreasse ali uma cerveja, como fazia todos os dias. A tralha podia esperar nesse sítio, que ninguém a incomodaria. E é quando aí chegou Art, no seu devaneio.

Olhava sem ver os escombros, mas do seu falsete, saíam brados como “Que bela obra!”. Depois “Isso não tem preço…quem poderá pagar por ela?!”. E claro, quando se irritava em demasia vociferava coisas como “Deus é grande!”. Soube-se depois que a outra parte, não respondera ao seu sarcasmo, mas antes o implorara que aceitasse o modelo que conseguira. Era artístico também e satisfaria qualquer deus, garantia!

E já nessa altura três ou quatro pessoas escutavam-no atentamente. Enquanto se sacudia freneticamente com as mãos, braços, pescoço, acorria mais gente ao local, num cenário que começava a ganhar ares de Cristo no Monte das Oliveiras. Sincronizadamente, as cabeças dirigiam-se, ora para o entulho cubóide do velho Vong Kam, ora para o discurso inflamado do pequenote artista. Os telemóveis seguiam a coreografia, blocos de notas começavam a aparecer e canetas a rabiscá-los.

Etoilets-piled-up por fim, num derradeiro gesto de frustração, deu um murro sobre um pedaço de bacia amontoada, sentenciou lugubremente ao que o seu fornecedor lhe teria feito: ”Isso é Arte!”. Estava cansado, era demasiada a revolta e ele sabia que não tinha coração para isso. Suspirou fundo e saiu do local.

Um silêncio sepulcral instalou-se por uns segundos. As pessoas entreolharam-se sem saber o que fazer. Até que dois jovens resolveram sentar-se junto do entulho em posição de vigília. Seguiram-se depois mais alguns da mesma idade, formando um círculo à volta da amálgama artística. Houve logo quem a apelidasse sem hesitação de arte urbana neo-cubista. Mais gente aparecia e primeiras máquinas fotográficas profissionais disparavam.

Quando o velho Vong Kam finalmente despertara do seu sono de cerveja, estava uma pronunciada multidão. Olhou  para o relógio e era tarde, precisava urgentemente de fazer o transporte quanto antes e dirigiu-se ao entulho, preparando-se para a façanha. Impediram-no de fazer fosse o que fosse. Nada valeu qualquer explicação, que os jovens entrincheiraram-se em defesa da tralha.

Perplexo com esta atitude, outra ideia não teve que chamar a polícia que na zona já rondava. Dois agentes seguiram para o local tentando demover a multidão. Os jovens resolutos em não largar mão da sua dama, barricaram-se ainda mais e responderam lançando-lhes aviões de papel.

No momento em que chegava a Televisão Pública e a Rádio, já havia microfones no ar, repórteres fazendo o seu trabalho. Nas redes sociais, comentários mais díspares ganhavam tom. Os jovens e agora também pessoas de outras idades rodearam o artístico entulho, de mãos dadas num gesto de fraternidade universal e cantavam “We Are The World”.

740e3906-136f-11e7-8424-32eaba91fe03_1280x720_050711A polícia chegou com vinte agentes e o responsável empunhou o megafone exortando à dispersão. Nessa altura a melodia “Imagine” de John Lennon já estava na boca do povo. Ninguém ligou, até que  o mesmo responsável ameaçou avançar caso não deixassem remover o lixo. E todos incorreriam em crime de desobediência, uma vez que se tratava de uma manifestação não autorizada.

Um dos jovens, protegendo-se com o tampo de uma sanita que encontrara abandonado gritou: “Lixo para o Governo, deixem-nos a Arte!”. O mote vingou e a polícia carregou. Os indignados resistiram com a mesma protecção, imitando o destemido jovem.  E nasceu assim o que mais tarde veio a ser conhecido como “O Movimento do Tampo”.

Por fim venceu a ordem e a segurança pública. Erradicaram o cubo entulhado do terreno, que aliás se tornou zona interdita. Os jovens foram levados à esquadra policial para autuação. Era visível o desgosto e a sensação de luto, estampados nos rostos de todos quantos estiveram presentes. “Foi-se a Arte, venceu a Ignorância!”

ProtestO eco produzido até acordou a Assembleia Legislativa, e antes que o deputado que usava pedir a cabeça de todos os governantes, proferisse o seu inflamado discurso, já o Secretário se prontificara a comparecer para justificar como longe estava ele de qualquer culpa.

No momento em que estas letras são redigidas, está a decorrer uma mega manifestação pró-democrata, em prole da arte urbana que segundo a organização do evento está a ser ameaçada de forma descarada e vil. Nas redes sociais, já se fala em interesses ocultos, das pontas de icebergs, dos Illuminati e das forças luciferinas. E mais uma vez se pede a demissão do Chefe do Executivo.

O velho Vong Kam, voltou à mercearia Leng Kei para a cervejada. Fizeram o transporte por ele e sobrou-lhe mais tempo para uma nova rodada.

Quando por fim localizaram Art Dung e lhe perguntaram sobre o sucedido, respondeu de forma honesta e sincera: “Só Deus sabe como tudo se passou!”. E mais não disseNinguém percebeu, mas todos concordaram que foi lapidar e profunda a sua mensagem.

Macau, 23 de Fevereiro de 2018, sexta feira

©Miguel de Senna Fernandes

Preciso de café

IMG_5898O DESPERTADOR tocou no momento em que entrava no sono profundo. Não valia a pena lamentar-se da sua frustração. Tinha de se recompor o mais rapidamente possível, para estar na reunião da manhã, mais uma da maratona que retomaria o seu ritmo diário, dentro de em breve. O prazo de entrega do projecto exigia sacrifício e estava a terminar.

Não havia nada mais importante naquele momento. Nem os croissants que a mulher lhe comprara, e que dizia estarem comme il fault. Precisava de um café. Com açúcar, sem ele, com leite, desleitado, precisava dele que nem um louco. Nesse dia, a empregada  Lorraine pediu folga para tratar dos assuntos junto do seu consulado. E lembrara-se que adiara mais uma vez a compra de uma nova máquina.

Saiu para a rua e rapidamente estranhou. A vida em correria de casa para a empresa e vice-versa, não o permitiam ajuizar sobre como tudo mudou. Ele, que conhecia o seu velho bairro, deu-se por confuso, quando se apercebeu que a modernidade chegou e varreu tudo o que era o normal ver-se. Nas redondezas até fecharam os dois estabelecimentos de comida, depois de terem servido o bairro durante tantas décadas. Pareceu-lhe incrível que em Macau já não se encontra um local onde se pudesse beber um simples café!

Felizmente, o seu desespero foi efémero. Ao cabo de cinco minutos de deambulação deu-se  com o FerreiraEspresso, o novo estabelecimento sofisticado e elegante de café, que tanto se falou na rádio e na televisão, publicitado nos táxis e autocarros, como o pináculo da cultura do café, apostado em revolucionar a comum visão que se tem do néctar negro. Não queria saber por que carga de água aparecia um nome português numa coisa que nada tinha de lusitano, num recinto onde só se viam fotos de Veneza, Rio de Janeiro e Xangai. Precisava era de café.

O Espresso acolheu-o como ninguém alguma vez o tivesse feito. Todo ele em tons basálticos, com paredes e colunas forrados com chapas de granito preto, que mais lembrava a uma solução mesclada de Zara e Massimo Dutti. Tudo polido, desde o chão até o tampo do balcão de atendimento.

As funcionárias, com maquilhagem sóbria e penteado executivo, trajavam-se a preto, num uniforme justo ao seu físico delgado, ao estilo de aeromoça, de saltos altos glossy black, com nomes impressos em crachás prateados no seu peito esquerdo. Antes que ele pudesse balbuciar algo inteligível, já elas lhe faziam sincronizadamente a vénia à japonesa. Era manifesto o treino profissional a que todas se submeteram. Tendo todas a mesma altura, compleição física e tom de alvura na pele, foram certamente escolhidas a dedo.

“Eu preciso…”

IMG_5897

“Pois com certeza, sente-se aqui. Meu nome é Shya”. A sua voz era tão suave e terna que apaziguaria qualquer alma arrancada de um sono turbulento.  “Temos novos sabores que a minha colega lhe apresentará. Mas antes disso, vamos preparar o seu pré-pagamento? São 175 patacas. Não se preocupe que aceitamos cartões mesmo nesse valor”.

Estupefacto, mas sem conseguir travar a sua acção de desembolsar o valor que lhe era pedido. Na verdade, pagaria até cinco vezes mais.

“Mas eu preciso…”

“Sabemos”, adiantou Shya, esboçando um sorriso sabedor. “Mas, fazemos questão em lhe apresentarmos os novos sabores que FerreiraEspresso encomendou do Japão”.

Fez uma pausa quando deparou com a sua perplexidade. Mas voltou a sorrir. “Tal como o vinho pode saber a couro, madeira e banana, o café também tem as suas nuances e momentos. Essa é a nossa última colecção de meia-estação. Com certeza, quer prová-los, certo?”

Ela falou-lhe com tanta convicção que o abalou. Assentiu só para que não lhe dissesse mais nada. As pálpebras começaram a pesar toneladas, os papos pronunciavam-se sem pejo. Precisava urgentemente de…

“Cereja, baunilha e caramelo estão em promoção. Amanhã chegarão framboesa, ananás e chocolate. Ontem um casal comprou três caixas com sabor a morango, que estão uma delicia”, continuou a fresquíssima Shya. “Está a ver aquela fila que se está a formar? O público está a aderir ao nosso trend.

Suspiro de impaciência.

“Se a sua opção for de baunilha, sugiro ainda juntar um pau de canela. Temos uma edição golden a 120 patacas da melhor canela de Veneza. Todavia, se escolher caramelo, temos biscoitos, que são uma mistura de churro e pastéis de Koi Kei. São uma confecção signature do nosso patrão…”

E não continuou mais quando viu a palma de uma mão diante dos seus olhos.

“Eu precisava era um que soubesse a … CAFÉ”.

20150818-coffee-beans-shutterstock_71813833Silêncio.

As funcionárias entreolharam-se e uma delas ligou o intercomunicador. Não tardou que pairasse no ar a fragrância de alfazema, rosa seca e couro, anunciando a chegada do  supervisor. Impecavelmente trajado também a preto, com gravata luzidia. Cabelo preto, com têmporas rapadas, ostentava um brinco no seu lóbulo esquerdo. Nos seus cerca de trinta anos, Ramón Legazpi, nome que ostentava no seu crachá, era alto, musculado e moreno. Bigode fino e pêra aprumada. Ágil no seu andar, flutuava que nem uma diva angélica. E sorriu-lhe no modo mais caloroso como nenhuma mulher o tinha feito.

“Estou a ver que tem um problema. Mas, não se apoquente, que não existe nada que FerreiraEspresso não resolva”. O sorriso era agora mais intenso e intimista. “Café… temos sim senhor!”

“Até que enfim!” bradava o seu íntimo, sem se importar com as pausas de suspense que ele lhe criava.

“Arábico, guatemalteco, colombiano? Ristretto, Doppio, Lungo, ou então Macchiato, Corretto ? Já sei, talvez um Cortado? Ou, melhor ainda, temos um gelado de Rum-Raisin a condizer com um Affogato. E não custará mais que 95 patacas.

“Olhe… por favor dê-me apenas as borras, que eu trato do meu café!?

“Hmmm… vai ter que esperar, porque teremos que embalar isso. Ai, como você irá adorar o nosso package. Está tão devine! Serão tão-só 25 patacas, com direito a chocolate.

O sangue subia-lhe à cabeça, enquanto a adrenalina superava o seu estado deplorável de uma noite não dormida.

“Pronto! Não quero mais nada. Desisto. Preciso é de água! Apenas ÁGUA!

Silêncio.

Ramón assentiu suavemente e fez sinal às pupilas que tudo estava sob controle. Aproximou-se e olhou para os lados para se certificar se alguém os escutava. E sussurrou.

“Vamos ser discretos, pois sabe que a nossa empresa só vende café. Mas serviço personalizado é mote aqui em FerreiraEspresso. Assim, é só a si que faremos isto, porque você é honesto”. Sem deixar de o mirar, mostrou-lhe a sua tablet.

“Vêm de França e Itália, com ou sem gás, de classes A, B, C e D de alcalinidade e de composição mineral. Este é o melhor catálogo de águas que temos, a 60 patacas cada só para si.”

Macau, 16 de Fevereiro de 2018. Sexta Feira.

©Miguel S. Fernandes

Hey!

–  Hey!

Chamou Roberto, ao homem bem trajado, sentado à mesa do restaurante, que folheava o cardápio. Não se recordava do nome dele, mas estava convicto de que o conhecia. Foi no jantar do Rotary Clube. Não, foi na recepção do novo Cônsul Geral do Canadá. Qual quê, no casamento da prima Júlia… Não tinha a certeza, a não ser a de que, como novo membro do Clube, devia cumprimentá-lo.

Hey!  Como vai? – Eis a resposta que obteve.

Também Carlos não tinha a certeza da pessoa do seu interlocutor. Era-lhe familiar. Tão familiar que lhe parecia mal ignorá-lo. Aliás, no Clube ninguém podia ignorar ninguém. Generosidade fazia parte da etiqueta, principalmente para quem acabou de ser aí admitido.

– Sente-se, há tanto tempo que não o via.

– Pois é, já lá vão uns meses. Como tem passado? – tentava ganhar tempo, mas não lhe ocorria outra frase menos cliché, e a mente folheava em vão as páginas da memória, sem descortinar a pessoa que acabou de o convidar.

– A vida tem corrido bem, graças a Deus! – disse efusivamente, com a esperança de que deste modo o seu interlocutor se lhe revelasse melhor. – E você?

– A vida também sempre a andar e não pára, com altos e baixos como em tudo – sorria, sabendo da futilidade disso que nem resposta tinha categoria de ser.

Já sentado na mesa da pessoa que começava a esboçar-se no limbo da sua memória, arriscou.

– Sózinho?

– Sim, não sou casado.

Decididamente não era o que conhecera no casamento da Júlia, que tinha mulher e duas filhas. Enquanto cogitava coisas para alimentar a conversa, Carlos avançou.

– Se não estou em erro, você trabalha na secção de seguro de vida na Império, certo?

– Sim! – Roberto nem pestanejou. Mas recordou-se logo de seguida que era apenas um cliente da mesma empresa.

– Sou muito amigo do Sammy Wong.

Tratava-se naturalmente de alguém importante da Seguradora, de quem o seu interlocutor era chegado. Amigo do Sammy e não de senhor qualquer.

– E quem não seria? É um tipo fora de série, com um sentido de humor do mais apurado, sempre pronto para ajudar, não acha? Quando esteve com ele?

Carlos já se arrependia desse rasgo de inspiração, quando lhe calhara esse nome de que nem ao Diabo lembraria.

– Na semana passada, num cocktail do Clube Militar. Oh, foi pena você não ter ido. O Sammy estava inspirado até mais não.

– Nada me espanta com ele. Com certeza distribuiu os seus cartões de visita bem vistosos. Os tais! – Piscou o olho, brejeiramente, quando lhe ocorreram imagens de panfletos de propaganda pornográfica deixados ao abandono junto de alguns hotéis da cidade.

Carlos quase se engasgara com essa, mas recompusera-se o suficiente para gargalhar ao que supostamente devia ser uma piada. Mas depois, atravessou-lhe o calafrio pela espinha, ante o facto de não saber de que “tal” cartão se trataria.

– Claro! Só podia ser o Sammy com essa dos …cartões! – Não se desfez e retirou a sua carteira do bolso – Oh, que chato não trago nenhum, pois mostrar-lho-ia! – Adiantou-se antes que o outro lhe perguntasse por ele.

Roberto também se soltava desbragadamente, embora interrogando-se qual teria sido a história hilariante por trás do raio dos cartões, que fortuitamente lançara à conversa. Quem seria Sammy Wong?

A conversa já progredia em segunda pessoa. Falaram de tudo, de política, da Seguradora Império, dos planos estratégicos para a China Continental, das pessoas que supostamente deviam conhecer e, claro, das peripécias do Sammy. Pediram sopa e bitoque, dispensando vinho e sobremesa. Pensaram também na conta, se um tivesse que convidar o outro.

– Esplêndido almoço! – Eis a exclamação comum a final. Combinaram novo encontro para a seguinte semana, no mesmo local e na mesma mesa, e procederam à troca dos cartões de visita. E antes de se aperceberem de que os nomes daí constantes, nada têm a ver com quem quer seja do círculo dos respectivos conhecidos, entrava de rompante o Dr. Lei Man Fai.

Hey!

A voz do “Presidente” era tão forte e entusiástica que todo o restaurante estremeceu. Um homem de sorriso largo e franco, que falava com alma e paixão, generoso e arguto. Na verdade era apenas o relações-públicas do clube. Mas a sua postura de autoridade conferia-lhe um estatuto que só presidentes mereciam. Roberto e Carlos, levantaram-se num ápice para cumprimentar o extravagante dirigente, quando este passava pela sua mesa.

– Olha quem está aqui! – essa, uma das frases de marca do afável “Presidente”, a todos que encontrava pelo seu caminho.

Carlos, não estava minimamente à espera da exclamação efusiva que lhe era dirigida. Não obstante, soube-lhe bem ouví-la, pois vinha de quem certamente pesava no Clube.

O generoso doutor não ficou por aí, e de seguida deu uma palmada no antebraço do outro – Até que enfim te vejo aqui!

Roberto sentiu-se melhor, não foi preterido. Até achou que o comentário do simpático doutor, soara ainda mais intimista.

– Pois, até que enfim. Não me esqueci das vezes sem conta que você me falou deste Clube.

– Sempre soube que este clube era o melhor, também não resisti – Carlos não quis ficar para trás.

– Meus queridos, isto não é casa para qualquer um. Aqui reina a classe e a sua finura. O espírito é de partilha, de boa disposição e de camaradagem. Tenho a certeza de que isso vai na linha do vosso feitio. E já agora quem vos recomendou? Deve ter sido um amigo muito bom!

Ambos assentiram e pensaram no mesmo, quanto à pessoa de maior crédito no momento.

– Sammy Wong!

– Ahh… Sammy, o mágico?

Pela primeira vez trocaram olhares.

– Sim… esse mesmo. Da Império. – adiantou Carlos.

– O homem dos cartões! – Roberto completou.

O presidente abriu os olhos e sorriu ainda mais.

– Pois é mesmo como vocês o conhecem! Exímio nos tais cartões. Eles aparecem e num ápice ele fá-los desaparecer à nossa vista! Olha que ele não dá show para todos! – Risos de brejeirice.

– Você deveria tê-lo visto na semana passada, foi um espectáculo!

Carlos repetia confiante a história que relatara a Roberto. Este não ficando atrás, até se lamentou ter deixado em casa o que o famoso lhe teria oferecido. Sentiam-se agora alguém. Falavam com legitimidade de Sammy Wong e presenciaram como privilegiados o seu espectáculo de magia na semana passada com os tais cartões.

Por fim despediram-se, tendo o dr. Lei insistido em pagar a refeição, e ante o protesto dos outros, combinou-se novo almoço para o dia seguinte por conta destes.

Lá fora do Clube, Roberto e Carlos apertavam calorosamente as mãos, como amigos de longa data. Por ambos passara a confortável sensação de ter ganho o dia, o terem almoçado no Clube e merecerem a liberalidade do seu presidente, nessa sua primeira vez. Prometeram mutuamente a manterem-se em contacto, especialmente nas tais ocasiões mágicas.

Lá dentro do Clube, o Dr. Lei falava ao telefone.

– Sr. Inspector, quanto àquela informação que me pediu há uns tempos atrás, sobre os cartões de crédito falsificados, o “mágico” está em Macau. … Como eu sei? Dois indivíduos que nunca vi na minha vida, acabam de me contar coisas que só confirmam isso… Claro que é de fiar, que interesse teriam em inventar a história que me contaram? Tenho os seus contactos. E amanhã almoçarão comigo, se quiser apareça. Agora deixe de me telefonar todos os dias, pois trabalho e não faço truques de magia!

Macau, 9 de Fevereiro de 2018, sexta feira.