CONVERSA DA TRANÇA

As escadas de madeira rangiam, como me lembro, quando subi ao primeiro piso do restaurante Long Cheang, um dos poucos culaus que sobreviveram à fúria da modernização desenfreada da cidade, em que o desenraizamento do que já era institucional passou a ser a regra. A ganância pelos ganhos astronómicos  por um bocado de terreno, levaram velhas famílias e comerciantes a largar mão do que era o mais tradicional de Macau.

Era o terceiro e último dia de entrevista com Eduardo Malaquias, um dos antigos residentes portugueses mais bem sucedidos de Macau. Sorvia o seu Tit Kun Iam, enquanto conversava com um idoso senhor chinês, quando cheguei. Era tão natural a sua fluência em cantonense, que não parecia um estranho em terra estranha. Até me causou certa surpresa, senão inveja, vê-lo a comunicar-se com o seu interlocutor, com desembaraço, sem a barreira linguística que, secularmente, separou portugueses do resto da população essencialmente chinesa. 

Negociava com o dono do estabelecimento sobre produtos chineses a serem colocados no mercado em Portugal. O Sr. Malaquias era homem de sete ofícios, sendo um deles o de importador e exportador de vários produtos alimentícios, entre Macau e Portugal.

Tínhamos já falado sobre a sua chegada a Macau em 1973, vindo de Lisboa, e o seu ingresso nos quadros da polícia militar. Sobre o 25 de Abril e o subsequente desmantelamento da unidade, sobre a sua passagem para as Forças de Segurança Pública de Macau, onde foi tudo, desde mecânico a guarda de ronda. Fizemos uma digressão pela sua aventura no mundo empresarial, relatando ele as vezes em que estivera em apuros, a forma como disso recuperou. Na verdade, havia já matéria substancial para o meu artigo “Portugueses Globalizados”, já pronto para ser enviado a Lisboa. Não fosse uma curiosidade que me intrigou.

“Não acha que já lhe contei mais que o suficiente? “- sorria Malaquias, enquanto apreciava o chá.

“Sim é verdade. Até o artigo está completo…”

“E…?”

“Porquê nunca quis regressar a Portugal?” – fui directo.

Malaquias sorriu novamente.

“Aquilo que tem no seu artigo, não responde à sua pergunta?” – continuava ele em tom jocoso.

Meneei a cabeça. 

“Senhor Malaquias, o que me irá contar não será publicado, asseguro-lhe.”

O esboço do sorriso ainda subsistiu, mas gradualmente se desfez e era a primeira vez que Malaquias se tornava nostálgico. Nada parecido com o que mostrara nas duas vezes anteriores de entrevista. Não insisti, preferi esperar até quando decidisse falar. Então suspirou.

“Esta é uma terra de tentações e de contrariedades, meu amigo. Os passos que dei são incontáveis. Conheci gente maravilhosa, numa terra que me acolheu e me fez um dos seus.”

“Conte-me, Sr. Malaquias. Por favor?”

“O meu passado na polícia não foi belo. Fui expulso da corporação – sorria, apesar de ser já vago o seu olhar – Os meus colegas, que bem me podiam salvar da situação, deixaram-me afogar. Tudo pela mulher da minha vida. Estava apaixonado.”

“Quando conheci a Sio Yin, pensei que fosse algo passageiro. Ela trabalhava como empregada de mesa no “Ming Chu”, a boate da perdição então muito em voga na Taipa, onde a rapaziada parava para copos e mulheres. Para eles, tudo era uma alegria e peixe na rede.”

“Enquanto as outras se ocupavam em entreter a malta, a Sio Yin fazia o seu trabalho como era esperado e ia-se embora, sem qualquer outro tipo de expectativa. Era discreta, em contraste com as outras que, por ofício, tinham de sorrir, falar alto e agradar.”

“Talvez por isso, me despertou a atenção. Provavelmente ela teria sido a mais silenciosa, nesse recinto que era barulhento. Comecei assim a frequentar o “Ming Chu” noites a fio, sempre que o fim dos meus turnos permitia. Não falava chinês, mas sabendo que ela estava por perto, dava-me alento e vontade de ficar até tarde.”

“Deve ter sido muito bonita” – acrescentei.

“Não era uma estampa de beleza, para ocidentais como nós. Mas eram brandos os seus modos e o seu corpo delgado tinha um modo especial de se contorcer quando andava. Os pés eram pequenos, assim como os seus seios. Nunca vi cabelos tão lisos e escuros, e exalavam essência de champaca. E tudo isso, acompanhado do seu olhar penetrante e do seu sorriso inocente, a acusar um certo embaraço, fazia dela uma mulher tão linda. É difícil de explicar”.

“Bastou um momento de simples troca de palavras, para que me pusesse a pensar nela a qualquer momento do dia. Tal era a paz que a sua voz invocava em mim. Se elas soubessem o que realmente fazem aos homens!” – gargalhou.

“No entanto, isso causou-me um certo mal estar: estaria eu já apaixonado por ela? A minha razão recusou logo este ridículo, mas com o tempo, a consciência foi ganhando peso. A imagem do seu olhar, provocava em mim sentimentos de culpa, sobretudo quando pensava na namorada que estava à minha espera em Lisboa. Não era justo para a Mafalda. Tinha que pôr cobro a isso e me penitenciar!”

“Não iria mais ao Ming Chu, decidi, para me concentrar na minha amada em Portugal, estar em espírito com ela, lembrar-me com todo o pormenor a sua beleza, rever os momentos em que ela se me entregava de amor na casa dos seus pais em Campo Ourique. Ela seria a minha tábua de salvação!”

“Passaram-se dez dias dessa parvoeira e habituei-me de facto a não ir à boate! Passei a contar os dias em falta para voltar a Portugal, ainda que não houvesse data para o efeito. Forcei-me a ter saudades dela. A minha namorada voltou a ser o centro da minha vida. Senti-me salvo do vício, recuperado da tentação, estava feliz como se tivesse vencido o fumo. Orgulhoso, também, por conseguir recusar a acompanhar a rapaziada para a borga!”

“E nesse dia, quando fazia a última ronda pelo mercado, andei lentamente, imaginando-me no Jardim da Parada em Campo Ourique, de mãos dadas à Mafalda, a inalar aquele ar puro das plantas, flores e castanhas à mistura.”

Pausou.

“E de repente não consegui imaginar mais cantos de Lisboa. Tudo estava tão longe, não obstante o meu esforço enorme. Tudo tão irreal e inatingível. Se calhar estava cansado de tanta artificialidade. Por mais voltas que podia dar na minha imaginação, voltava às ruas de Macau, ao seu cheiro, aos seus ruídos. Foi quando me cruzei com Sio Yin. Estampava-se a satisfação naqueles olhos, como se me perguntassem porque nunca mais fui à boate.”

“Não dei mais conta da hora. Soube que passei o resto do dia com ela, acompanhei-a nas compras que tinha de fazer para a casa. Depois do meu jantar fui acompanhá-la à boate. E aí fiquei até ela terminar o seu serviço, para depois tomar uma canja com ela. O meu vocabulário tão parco em cantonense e o seu português que mal ia para além de um “bom dia, obrigado”, não permitiam grandes desenvolvimentos, mas os seus olhos liam-me e entendiam o que a minha alma lhe queria dizer. À nossa maneira, dissemos muito.”

“Nessa noite quando voltei ao quartel, senti um aperto no coração. O meu mundo decididamente mudou e roguei para que a Mafalda fosse muito feliz. E me perdoasse. Deixou de ser uma questão de justiça, como nunca foi, para ser uma decisão de vida, que cada um de nós sabe, quando ela chega.”

“Nos seguintes meses foram intensos em emoções. Esmerava-me em aprender tudo que fosse chinês, não obstante ela não atinar com o português, uma língua dificílima para o seu conceito. Amávamo-nos quase todos os dias e a nossa relação aprofundou-se, tanto que começou a ser comentada entre a rapaziada, muitas vezes em tom de chacota, sabendo todos do que acontecera à namorada em Lisboa. Isso pouco me importava, pois a minha presença nesta terra ganhou uma nova razão de ser.”

“Nisto, veio o dia que traçou o meu destino. Um dos oficiais de patente superior estava na boate bastante bebido e resolveu abordar Sio Yin, tocando no seu braço. Ante a resistência desta, apertou-a contra si, abusando da sua fragilidade, tentando dar-lhe um beijo. Claro que o desiderato não se cumpriu, porque o meu murro lhe partiu o nariz e duas costelas suas foram à vida com um pontapé que lhe dei em cheio. Senti braços a imobilizar-me, quando dei conta de mim, enquanto o superior continuava prostrado no chão, com sangue jorrando pelo nariz.”

“A versão que ficou assente no processo disciplinar que se seguiu, foi que eu teria bebido imenso a ponto de violar os limites de decoro, em flagrante insubordinação, acrescido de agressão a superior hierárquico, num recinto de diversão nocturna envolvendo indivíduos de sexo feminino de vida promíscua, pondo em causa o prestígio da Corporação, sendo indigno dela. Acto contínuo, foi-me apresentada a guia de marcha para a minha viagem de retorno a Portugal. Fui expulso.”

Malaquias pausou. Custava-lhe prosseguir com a mesma desenvoltura com que usara para me narrar esta fase da sua vida. Todavia, sorveu um pouco mais de chá,  tinha mais para me contar.

“Mas você preferiu … ficar em Macau.”  

“Encontrei-me de seguida com Sio Yin. Tinha que lhe explicar como as coisas se complicaram. Que deixei de ser alguém porque tinha acabado de perder o emprego, que seria desonroso para ela se continuássemos juntos. Que me marcaram a minha volta a Portugal.”

“Ela escutou em silêncio tudo o que tinha para lhe contar e então disse-me que soube da gravidade da situação, pois o caso na boate foi muito badalado. Mas eu não podia voltar a Portugal assim, pois quem sai da sua terra, regressa a ela triunfante. A perda de face seria insustentável e, para os chineses, seria até motivo de suicídio. Disse-me que também deixou o emprego, e iria trabalhar numa fábrica de panchões, longe de todos. Não ganharia muito, mas era preferível viver com pouco a morrer sem dignidade. E olhou fixamente para mim quando disse, que o seu homem merecia ser protegido, pois ele a defendeu à custa da sua própria honra. Ela estaria aí comigo para o que viesse. Era a primeira vez que a ouvi falar de uma vida a dois.”

“Passámos a viver nos primeiros meses em casa dos seus pais, onde o conforto era algo inexistente para um ngau sok como eu, mas não me queixei. Não foi fácil ser aceite e grandes discussões ocorreram entre ela e seu pai, que encarava a situação como um opróbrio insustentável. E ela defendia-me com unhas e garras, eu era o homem que ela escolhera e assim seria para sempre. Passei a comer com pauzinhos, devorando tigelas de arroz borrifado com molho de soja e banha de porco, acompanhado de peixe salgado e hortaliça salmourada. Comecei a frequentar mercados de peixe e de carne. Transportei sacos de arroz, boiões de vinho chinês. Fui marceneiro, canalizador, mecânico de automóveis, enfim o “conserta tudo” no bairro San Kiu. No espaço de um ano já falava cantonense, o suficiente para regatear nas compras que fazia, de aconselhar quem tinha problemas com as autoridades. No mesmo espaço de tempo, deixei de ser aquele português de Portugal, para passar a fazer parte da terra. O ser-se ocidental a falar cantonense, trouxe-me muita simpatia entre os mais simples. Para eles, eu era o ngau sok que queria fazer parte da terra. Você não calcula a face que isso representa. Passaram a chamar-me de Ma Lok Kei.”

“Casei-me segundo os ritos chineses, houve festa no bairro e muito panchão da fábrica onde Sio Yin trabalhava. Se no início, a vizinhança desprezava a Sio Yin, por namorar com um forasteiro, o casório veio a transformar tudo em algo honroso para a minha mulher. Os pais dela reconciliaram-se connosco. Eu era afinal um chi-kei-ian!

“E os portugueses?”- fiquei curioso.

Pausou de novo. Pareceu-me ter querido vasculhar algo já perdido na memória.

“Durante algum tempo não tive mais contacto com ninguém vindo da Metrópole. Fui muito injusto, admito. Mas estava ainda profundamente ressentido com o desfecho do caso da boate e o vexame a que me sujeitaram. Havia certamente gente boa, não nego, mas não quis mais nada com a malta e cortei com todos”.

“Até que um dia Sio Yin anunciara a vinda da nossa filha. Não me teria importado se ficasse com um nome chinês, mas a minha mulher já tinha decidido quanto a isso, com a ajuda das suas antigas amigas da boate. A filha levaria o apelido do pai e seria um nome português. Por mais razão que eu tivesse no meu alheamento aos meus compatrícios, não deveria renegar as minhas origens. E com esse nome iria estudar português. Iria chamar-se Mafalda Chan Malaquias. Não foi mera coincidência, mas não quis perguntar-lhe a razão do nome escolhido. O seu bom senso e o sek chou foram o suficiente para me deixarem sem fala.”

“Volvidos quatro anos, no átrio do Colégio de Santa Rosa de Lima enquanto esperava pela Mafaldinha, fui abordado por um português, pai de uma outra criança. Vim a saber que se chamava Nicolau Boaventura e era também de Lisboa. Tinha ouvido falar de mim, como o “portuga que conhece as trocas-baldrocas da terra” e precisava de uma ajuda minha na instalação de um negócio de importação e exportação de produtos variados. Precisava de uma pessoa de confiança que estivesse no terreno. Haveria melhor que um conterrâneo que falasse chinês?”.

“A minha entrada na empresa foi uma reviravolta na minha vida. O dinheiro começou a entrar e em pouco tempo conseguimos sinalizar a compra de uma casa. Pude finalmente levar a Sio Yin a Hong Kong para comprar os vestidos mais belos que até aí apenas sonhara ter. Tornei-me num homem sucedido, não por ter ficado rico, mas por ter conseguido cruzar dois mundos tão díspares, com resultados fabulosos, na companhia da minha mulher. “

“A mulher do seu sucesso!” – comentei.

“A mulher de todas as surpresas!” – riu-se.

“Numa noite suada de amor, interrogou-me porque o nosso Deus era tão complicado de se entender. Porquê a Trindade, se Deus era único? Não tinha resposta para isso, mas fiquei curioso pela pergunta que me fez. Ela estava a frequentar a catequese, disse-me então. Dei um salto de completa surpresa, até porque já estávamos casados. Então explicou-me que queria casar comigo na minha igreja. Se ela seguir o seu homem, deveria comungar também da sua fé. E se um dia ela morrer, quererá estar num sítio para onde o seu homem certamente irá.”

“A “Nicolau & Amigos, Limitada” passou a ser uma das principais agências de importação e exportação, ao lado das tradicionais “F Rodrigues” e “Nolasco”. A vida melhorou consideravelmente e, com o bom senso e insistência da Sio Yin, investi em propriedades em Macau e, vinte e cinco anos depois, punha os pés em Portugal, com ela e Mafaldinha, quando resolvemos comprar um terreno em Sintra.”

“Reconciliou-se com Portugal, então?”

“O País não tem culpa dos desaires de cada um. Mas custou-me a regressar, confesso. Ele foi o meu berço, mas a minha terra está na China. É Macau que me prendeu e me fez o que sou. É tão difícil explicar o que isto é, que todos julgam saber. Tanto paleio disparatado se ouve e se lê sobre este mundo, mas ninguém entende, ou não quer entender, porque as coisas são como são aqui.”

“E … a Sio Yin. Que foi feito dela?”

Suspirou.

“A minha Sio Yin morreu um ano depois de nos termos casado na Igreja de S. Lourenço. Foi sempre uma pessoa franzina e acusava constantemente um mal estar de que nunca se curara propriamente. Não quis que eu soubesse do seu tumor no útero, que piorava dia após dia. Estava deslumbrante com o vestido de noiva, tão branco e a preceito. Recordo-me bem dos seus lábios finos, traçando um sorriso suave. Não se pintava muito, nem precisava disso. Seus olhos meigos, os mesmos de há muitos anos que me diziam tudo, sem ela precisar de falar. Eles me mostraram como estava feliz, porque se cumpria o desejo último dela, como ela tinha planeado. Ela sorria porque, no seu entender, poderia já morrer em paz.”

“Lamento muito. É triste.”

“A saudade é imensa e a solidão é uma tortura. Mas não há tristeza. Um dia hei-de estar novamente com ela, tal como ela previu. Estar ela na minha vida já me alegra e assim será até ao meu último dia.”

“A sua história fez-me lembrar de um romance local com o título “A Trança Feiticeira”, conhece?”

“Não li todo o livro, mas conheço o autor”- sorriu. “De certa forma, conta a vida dele, da minha e a de tantos outros, como eu, que ficaram em Macau, pelo amor à mulher e à terra que a criou.”

“Mas há tranças ainda?” – gracejei.

“O que há, e sempre houve, é aquela mulher que nos surpreende e nos comove com a sua simplicidade, que está à nossa altura quando decide estar, que luta incondicionalmente por nós, contra tudo e todos, seja a que custo for, e que perdoa as idiotices que a nossa dita inteligência tantas vezes nos leva a fazer. Isso é belo, porque nos dá uma oportunidade de nos renovarmos. Não sei dos outros, mas foi assim que a Sio Yin me prendeu. Sabe-se lá se não era isso que a tal trança queria afinal significar? – voltou a sorrir.

“Julgo que sim. Quem sabe?” – saiu-se-me, espontaneamente.

Então, mirou-me atentamente com aqueles olhos por que muita vida passou.

“Respondi a tudo quanto precisava de saber, não?” – tive o pressentimento de que me lia a alma.

“Você até me contou mais do que esperava…”

“Sim. A sua curiosidade fez-me sentir que algo na sua vida dependia do que lhe iria contar” – brindou-me com a chávena de chá.

De súbito, ouço um sussurro suave sobre o meu ombro que me  interrompe e me desperta da minha memória sobre essa conversa com Malaquias, havida dois meses antes.

“É tão tarde, Beto, vem para a cama. Saímos cedo para Gongbei, como sabes.”

“Claro amor, vou já”.

Ainda não me tinha habituado à decisão de iniciar uma vida com Maggie e, para mais, a de conhecer os seus pais em Shanghai. Lembrei-me da Sandra, das suas lágrimas pela injustiça que lhe fiz, da sua raiva silenciosa no dia em que parti de vez para Macau, selando uma relação de sete anos de casamento adiado. Ainda estive a pensar se devia ter remorsos, mas para que eles serviriam, se nada salvaria o que há muito tinha chegado a seu termo?

E Maggie? Qual … a sua trança? É difícil dizê-lo. O certo é que já estou com ela e nela me quero prender.

Fui para a cama, senti o calor do seu desnudado corpo que me pedia ternura e apertei-a contra mim. Sem dar por isso, agradeci a Malaquias, por me ter compreendido. 

“Disseste alguma coisa, querido?”

“Nada amor, dorme bem. Amanhã temos uma vida pela frente.”

FIM

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Notas:

Culau (高樓) – Estabelecimento tradicional chinês de comidas. Cou Lau, significa literalmente “piso alto”, pela circunstância de este tipo de estabelecimentos possuir ou se situar normalmente no piso superior dos imóveis onde se instalavam.

Tit Kun Iam (鐵觀音) – Ou Tieguanyin, é um tipo de chá da família de chás Oolong, com propriedades medicinais vários, muito popular e apreciado entre chineses.

Panchão – do cantonense Pau Cheong (炮仗 ), petardo muito utilizado para a celebração de grandes acontecimentos e efemérides, com a crença de poder afastar os maus espíritos.

Ngau sok (牛縮) – Lit. “odor bovino”, designação inicialmente depreciativa que os chineses de Macau davam aos militares portugueses, provavelmente, pelos seus odores corporais intensos, diferentes do comum dos locais. A expressão ganhou popularidade e passou a ser usada para a generalidade de todos oriundos de Portugal, sem a carga pejorativa.

Chi kei Ian (自己人) – Lit. “dos nossos”.

Sek Chou (識做) – Lit. “saber fazer”, expressão cantonense que exprime o mesmo que “savoir faire”.

Metrópole – Lisboa (ou Portugal). Expressão oriunda do vocabulário do Estado Novo, muito usada nas antigas colónias portuguesas, perdurada no léxico de toda a geração nascida antes do 25 de Abril.

Macau, 28 de Janeiro de 2022, Sexta-Feira

Miguel de Senna Fernandes

O SAPATEIRO DA TRAVESSA

1.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

O seu martelo golpeava a bigorna pequena e produzia o timbre metálico e sonante na Travessa do Paiva. A serenidade dessa via que liga a Rua Central à Praia Grande, permitia que a sua martelada fosse bem audível, desde o posto da Polícia Militar do Palácio da Praia Grande até ao edifício da Imprensa Nacional.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Se outros atraíam com a voz, o seu pregão era a batida aguda com compasso que começava lenta para depois acabar abruptamente. Todos os dias à tarde, montava a sua banca, junto à extensa parede do Palácio, essa figura de cabelos grisalhos, pele seca e morena, franzina e frágil de Lam Kong, que tinha por hábito agachar-se, sentando-se sobre o seu banco de madeira, de cigarro no canto da boca, ficando à espera da clientela que lhe levaria pares de sapatos para conserto.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

E todos os dias galgava a travessa com a pinga sobre o ombro com duas caixas penduradas a cada extremo, uma para a sua ferramenta e outra para os sapatos já prontos. Tão hábil no seu ofício  e tão conhecedor do pé humano como era, vinha gente de outras paróquias a solicitar a sua arte.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Gente de todo o género acorria aos seus préstimos, a começar com os polícias militares, os rondas. Nos tempos mais remotos, apareciam-lhe os praças de Goa e os landins que lhe entregavam restos de sapato, tal era o estado lastimável disso que em princípio devia destinar-se à protecção dos pés. Mas Lam Kong não se queixava, ao invés, executava o  trabalho com igual mestria. Contanto que lhe pagassem, o mínimo que fosse. Não estava ali a pedir esmola, nem para ser um bom samaritano. Todo o trabalho deveria ser recompensado. E…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

O seu bom nome chegava às bocas e ouvidos de gente mais fina. Segundo rumores mais ousados do bairro, até o Governador e esposa solicitavam os seus bons ofícios, tanto quanto a discrição lhes permitia…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

Porém, as poucas patacas que recebia mal pagariam a medicação que a sua netinha necessitava. Lam Kong preferia não pensar nela, para que a dor de coração não estorvasse o ritmo do seu ofício. Tinha de labutar sem parar. A sua netinha tinha direito de brincar, de correr pelo jardim, de gritar, de fazer toda a série de traquinices a que só um avô acharia piada. Não deveria estar na cama, sem prazo. Contava sempre o dinheiro ganho do dia e  calculava quanto sapato teria de consertar nessa semana, como já fizera em tantas outras semanas. 

Havia  também quem os abandonasse, ou pura e simplesmente não os levantasse a tempo, ignorando o seu pré-aviso, de que faria tudo para convertê-los em dinheiro, vendendo-os na melhor forma possível. Sem desperdício algum, a sua netinha não lhe permitiria inutilizar nada, nem tornar o seu trabalho em vão. Era isso que sempre pensava quando reconstruía a sola de um botim, emendava um buraco provocado pela secura do couro. 

Já andava nisto havia dois anos.

Travessa do Paiva, Macau. 1945.
George Smirnoff

2. 

Numa das tardes de Outono, em que a neblina caíra como uma fina rede translúcida sobre o bairro, chegou-lhe um moço que lhe entregou um par de calçado feminino. De modelo modesto, apresentava-se em manifesto estado de degradação. O tacão rachado num deles, totalmente gasto noutro, havia riscos, partes desgastadas com o tempo.

O senhor conserta-me isto?

– Isto vai requerer muito trabalho, rapaz.

O moço não respondeu.

– A flor que devia estar aqui é de difícil reparação. Não tenho tinta para isto. Tens a certeza que tua mãe ainda os quer?

– Por favor, sei que o senhor conserta tudo. Corri para todos os cantos e todos me disseram para vir ter consigo. Vim do bairro de Santo António.

– A tua mãe deve perceber que lhe vai custar dinheiro. Não era melhor comprar uns novos?

– Ela adora estes sapatos, são do seu casamento.

– Mas, isto rapaz, vai levar tempo para…

– Preciso deles amanhã…

– É impossível, o trabalho que isto requer…

– Ela está de cama. Vai ficar muito feliz e se calhar melhorará, tenho  a certeza disto.

Lam Kong fixou no catraio de feições ocidentais, olhos grandes e amendoados, mas claros, pele alva e cabelo escuro, de camisa amarela de linho e calções de ganga. A voz era pausada e muito suave. Falava tão bem chinês.

– Que idade tens, rapaz?

– Tenho oito – e antes que Lam Kong interrogasse mais – vivo com a minha avó.

– Sabes, vou ter de interromper tudo para fazer o que me pedes. Isso custa dinheiro, diz à tua avó. Vou precisar dele.

– Apenas peço o favor … a minha mãe vai adorar. Amanhã, pode ser? Rogo-lhe.

Antes que Lam Kong pudesse responder, viu o moço a correr em direcção à Praia Grande, deixando consigo o par dos mal tratados saltos. Num lapso de segundo, não sabia o que fazer com o que tinha nas mãos. Ademais, não tinha fixado o valor pelo trabalho. 

A imagem da netinha interpôs-se, então, no seu pensamento. Não era de reclamação, mas algo que lhe murmurava no íntimo que aceitasse o novo trabalho. Com sacrifício do restante.

Começou por estudar a extensão do dano. Ambos os tacões precisavam de reparo sério, com pedaços de madeira a soltarem-se, rasgando o tecido de couro branco que cobria o calçado. Felizmente, ainda existiam as alças que se mantiveram incólumes ao desgaste, mas as palmilhas já deixaram de o ser para se tornarem em algo semelhante a pasta de papel seco e apodrecido. A planta de ambos os sapatos estava descolada e Lam Kong sentiu pena da sua dona, pois devia ter pés finos e frágeis que o modelo impunha. Havia ainda que reconstituir uma flor de cor prateada a ser colocada sobre a biqueira. Fez as contas e iria passar uma noite naquela brincadeira!

A Igreja de São Lourenço badalava as seis. A travessa já era calma e mais se tornou com o cair do dia. O enxame de libelinhas pairando sobre o jardim do Palácio anunciava um tufão e outros bichos que povoariam a noite começavam a chegar. 

Lam Kong caminhava com a pinga ao ombro carregando a ferramenta e outros sapatos cujo destino ficara suspenso com a tarefa a que se comprometeu, sem saber como explicar. Instintivamente passou pela lojeca de quinquilharia do velho Kuan, na Rua Inácio Baptista, onde se encontrava tudo o que uma razoável imaginação permitia abarcar, numa confusão organizada com que só o seu dono sabia lidar. Aí descobriu colas, tintas, botões, alfinetes, couro sintético de diversa espessura, arame, pastas para o remendo de buracos e outras imperfeições, enfim, tudo o que precisava para a grande aventura da noite. Mas não, não tudo. Como iria polir e colorir o produto final?

É um grande problema Ah-Kong. – disse o velho Kuan, enquanto sugava o fumo do seu cachimbo de bambú – Mas, és um sapateiro, não?

Nem lhe interessara explicar como aceitara aquela proposta insana. 

E a tua loja não vende “tudo e mais alguma coisa” como anuncia?! 

Sabia que era a frustração que alimentava a parvoíce da sua resposta. O velho Kuan tão pouco se importou. Pousou o cachimbo, calçou os seus chinelos  japoneses, ajustou a sua camisola interior. Fazia isto quando tinha que tratar algo com seriedade. Sentiu que o seu velho amigo Lam Kong estava em apuros. Foi a um quarto, não mais organizado que a recepção da loja, onde a mulher cozinhava o jantar, lavava a roupa e criava uma galinha. 

Não sei se isto serve, não percebo nada de tintas. Mas para aquilo que me explicaste é capaz de funcionar. Que cor queres?

Lam Kong olhou estupefacto para as quatro latas cilíndricas de tinta branca que o velho daí trouxera.

Segundo meu filho, tens que chocalhar a lata e carregar neste botão vermelho. E a tinta sairá uniformemente. É daquelas coisas modernas que vieram para o mercado – sentou-se de novo na sua cadeira de vime e retomou a sua cachimbada – Pagas-me depois. E levas o secador de cabelo também.

Lam Kong continuava mudo com ar de desânimo ante a imagem revoltante do estado de degradação do calçado.

Precisas dos meus botins? – Sorriu o velho Kuan. – Ah Kong, o que tem de ser feito, será feito. És um bom homem, não te esqueças disto. – acrescentou depois  e ligou a telefonia, enquanto se deliciava com o sabor húmido do tabaco.

3. 

Levava um pouco mais de peso do que o habitual, quando descia a sinuosa Rua Inácio Baptista rumo à da Praia do Manduco, onde se marcava o fim do “bairro cristão”. Não tanto pela tralha que carregava, quanto o propósito daquilo tudo. A imagem da netinha e depois a do catraio, moviam-no numa contradição que naquele momento confuso lhe fazia sentido.

A mulher preparava a canja com carne de porco e ovo salmoirado quando ele chegara a casa. Pousou a sua tralha e sentou-se exausto da eternidade do dia.

Ela está a dormir. Hoje comeu bem – sorriu, enquanto vertia a canja na tigela para o marido – Até quando terá ela de sofrer essas dores? Coitada, que mal fez ela para merecer isto? É a maldição da nossa filha ter casado com aquele pulha. A doença dela começou depois do casamento, lembras-te? A Mei-mei carrega este mal que aquele maldito lhe lançou!

Lam Kong manteve-se impávido ante o que mulher repetia todos os dias. Compreendia o seu estado de  inconformação, mas já não a levava em paciência. Provavelmente, já tão calejado de a ouvir bater tanto na mesma tecla, sentia-se agora sentimentalmente imune ao fastidioso flagelo da mulher nos seus ouvidos.

Pelo menos, não reagia com a agonia daquele dia em que vira partir a filha, vítima de uma galopante tuberculose. Não sabia se tinha a ver com sinas, ou se o genro tinha alguma culpa nisso, o certo é que este a abandonara logo que soube da doença. Acamada e ventilada, a filha não falava, pois nem forças tinha para tal, mas o seu olhar pedia clemência para o bem estar da sua bebé Mei-Mei, rogava ao pai que fizesse tudo ao seu alcance para velar pela saúde da petiz que acabara de nascer. Lam Kong apenas segurara a sua frágil mão, assentindo com a cabeça, enquanto o frio se apoderava do corpo e anunciava o momento. Deu ainda para lhe colocar sobre o peito a velha boneca de saia verde a sorrir, que lhe oferecera quando era pequena, dando-lhe um adeus silencioso, com a promessa de que a netinha estaria sempre bem entregue. Mas ela já não o ouvia. Não chorou ao estertor, ao arrepio da tradição chinesa de uma auspiciosa despedida. Queria antes que a filha pudesse transitar suavemente para  uma outra existência e se remisse da insustentável dor, partindo tão leve e inocente, quanto veio a este mundo para uma vida tão cruelmente efémera.

Não quis culpar o genro, não obstante a ignomínia do seu abandono. Preferiu aceitar o destino e selá-lo, partindo para uma realidade nova. A netinha exigiria a atenção que o ódio iria comprometer. Era melhor guardá-lo e soltá-lo de vez em quando, sempre que estivesse apenas consigo ou depois de uns copos de vinho de arroz com o velho Kuan, quando pudesse chorar e gritar impropérios a Kun Iam, ainda que a deusa o não entendesse.

Mais pessimista e rancorosa estava a sua mulher, que vestia a pele de mãe ferida que se via impotente para uma reviravolta e para traçar um rumo para a bebé Mei-Mei. A sina pairou sobre a família, entendeu, e a única explicação teria sido o “pulha”, por quem passou a nutrir um ódio das entranhas. Passou também a ter a certeza de que o mal se instalara em casa e que não descansaria enquanto os três se mantivessem vivos. 

Muito altercara com o marido, que não aceitava os seus argumentos, chamando-lhes de irracionais. Até que um dia se virou para ele com a notícia de que a Mei-Mei manifestava sinais de uma lenta progressão degenerativa de atrofia muscular. E teria que ser tratada com urgência, ir a Hong Kong com frequência.

Era mais uma desgraça que se abatia sobre a família. A mulher venceu a discussão, porém o seu triunfo sabia a fel. Muitas rezas encomendou e muito bonzo visitou a casa, mas nada alterara o trilho para o abismo.

Lam Kong achou que os deuses tinham mais que fazer e não perdeu tempo para tratar da melhor forma de ganhar o dinheiro, pelo menos para a deslocação a Hong Kong. E numa das noites de sám cheng, o velho Kuan, o taciturno que falava mais com olhos e trejeitos, escutou a história ao sabor da cachimbada, foi ao quartinho e depois daí voltou com um par de botins de tropa a cair aos pedaços, com sola lastimável, numa amálgama indefinível de cabedal, borracha e couro, com terra e dejectos secos à mistura. E foi lapidar ao entregar-lhos.

O meu irmão usava-os quando encontraram o seu corpo, na guerra com os “lo pak tau”. Se me conseguires pôr isto a funcionar como sapatos, terei muito trabalho para ti. Tenho gente das obras que vem comprar material miúdo. Andam descalços porque já não têm outra coisa para cobrir os pés. 

O níquel soara mais alto e inspirara o engenho, quando a escolha sumira. No dia seguinte o velho Kuan era um homem feliz que se reconciliara com o passado. Lam Kong renovou os botins do irmão numa noite e não tardara haver gente descalça a alinhar-se à porta da lojeca de quinquilharia para o conserto do seu calçado, como tinha prometido o Kuan. Durante dois meses, trabalhara sem parar renovando calçado, tornando-o utilizável, protegendo pés miseráveis de calo gasto.

Num dia de domingo, porém, apareceu-lhe algo novo. Uma senhora de feições ocidentais parara diante dele.

Também consertas isto? –  entregou-lhes um par de saltos altos, com tacão solto a solicitar sério reparo.

Posso tentar, minha senhora. Vai-lhe custar é dinheiro. Terão de ser trinta patacas e precisarei de três dias.

– Vou-lhe pagar sessenta e quero-os prontos amanhã!

Nessa noite, aos copos com o velho Kuan, desabafava sobre a falta de tempo, sobre essa “gente bárbara” que exige muito. Este, invariavelmente escutou-o sorumbático e apenas encolheu os ombros:

Lembras-te dos botins do meu mano? Então, não consegues?

Lam Kong não rabujou mais, aquiesceu e numa assentada emborcou o sám cheng. Suspirou e debandou. No dia seguinte a bárbara senhora desfazia-se em sorrisos, pelo trabalho meticuloso que ele fizera aos seus saltos e acabou por lhe pagar sessenta e cinco patacas, prometendo-lhe que traria mais gente. E mais gente veio, oriunda da Igreja de São Lourenço, logo após a missa ou catequese. “Gente branca” que falava chinês, mais exigente, com calçado mais complexo.

Ah Kong, talvez seja altura de ires para outro lado – disse-lhe um dia o velho Kuan – Aqui só aparece gente desgraçada. Precisas é de gente que pague.

O velho sagaz sabia que era isso que ele precisava de ouvir. Duas semanas depois, fixou o seu estaminé ambulante junto ao mural do Palácio da Praia Grande, não porque a Travessa do Paiva fosse um local concorrido, mas porque assim, pensava, poderia atrair mais gente branca que pagaria muito mais que os míseros avos da mais humilde gente descalça da construção. 

Haveria, no entanto, que inventar um chamariz. Passou o dia todo a pensar em vão em pregões e, num acto de desespero ante a falta de imaginação, deu uma pancada na bigorna que ecoou pela pacata Travessa do Paiva toda. E assim “toc, toc, toc-toc-toc-toc!” passou a ser o seu mote de guerra, e entre a gente branca ficou conhecido por “sapateiro tóc-tóc”.

A tosse despertou-o da erradia divagação  pela memória e atraiu-o para o quarto da netinha. Deve ter sido a saliva que se avolumou na sua boca, pensou. Mirou a petiz e comoveu-se com o profundo sono em que esta mergulhara. Reparou no movimento do seu frágil peito e sentiu a segurança que transparecia no seu pequeno rosto de menina que sucumbia à paz da noite. Não pensou na injustiça, mas tão só na serenidade que ela merecia. Era tão bom que todas as noites tivessem este desfecho de sossego. Compôs os desgrenhados cabelos que cobriam o seu nariz e notou como os seus lábios desenhavam um sorriso, as covinhas salientavam-se, sugerindo sonhos lindos que desfilavam naquela mente imaculada, de quem não sabe o que espera do mundo.

Contudo, nessa noite tinha trabalho que o desviaria do seu propósito diário. Iria dar crédito a uma causa que nada tinha a ver com a menina, iria fazer algo à margem da sua obsessão. Talvez estivesse junto dela, por descargo de consciência, algo que a sua mulher não entenderia. Talvez estivesse ali a pedir a sua aprovação.

Do vizinho vinha a transmissão da rádio “Vila Verde” e escutara a voz galvanizadora de Ma Si Chang, o orgulho da ópera de Cantão. Acendeu o cigarro, era altura de começar a aventura da noite.

4. 

A pinga pesava mais no dia seguinte, muito embora não carregasse mais do que era o habitual. O que era novo era o par de sapatos de salto, os mais belos que alguma vez vira na sua vida. 

Sentou-se junto ao mural, no local onde, por mera tolerância oficial, fixara o seu estaminé. Nesse dia não assinalou a sua presença com a martelada do costume. Preferiu apreciar o seu trabalho da noite anterior, procurando desvendar defeitos que pudessem ainda subsistir. Sabia que nunca atingiria a perfeição, mas deu-se por satisfeito. Era um reles, sabia. Todavia, sem dar conta nem valor,  tinha postura de artista.

Olhou em direcção à Praia Grande e não havia sinal de criança alguma, apenas oficiais de exército portugueses que entravam e saíam da porta lateral do Palácio. Teria o catraio ideia alguma de como tudo se passou em sua casa ontem?

Tantas vezes trabalhara na calada da noite, em que o bairro se rendia ao sono, em que se ouviria o chirriar do grilo, o assobio seco do vento norte atravessando a rua estreita da Praia do Manduco, o bater das asas de morcegos e de aves nocturnas, o miar dos gatos em cio, interrompidos pelos passos do chon keng, o polícia de ronda, pelo pregão merencório do vendedor nocturno de papos secos, ou então pelo som do er-hu do vizinho. O odor do bairro, salpicado com maresia, champaca, frutos salmoirados e achares, tornar-se-ia mais intenso ao cair do dia, quando todos retornassem à casa e o deixassem exalar-se e recuperar o fôlego para o dia seguinte.  

Em casa, o mundo não era muito diferente, porém o silêncio era dono das suas emoções. Tornava mais audíveis as vozes da sua mente, as quais por sua vez condicionavam a viagem do seu espírito. A voz que mais ouvia era a da sua filha, a do seu primeiro “papá”,  dos seus gritos de alegria ao baloiço, das conversas com a boneca, dos queixumes fazendo beicinho, do anúncio da sua gravidez, do seu casamento, da sua doença, do seu adeus. Outras vozes sobrevinham, como a dos murmúrios da Mei-Mei, da aspereza da mulher, da sabedoria do velho Kuan. Tudo isso ao mesmo tempo, porque o silêncio impunha que assim fosse, tornava-o vulnerável, agrilhoava-o a uma condição de inelutabilidade a que ele indulgentemente se deixava prender.

Mas nessa noite o silêncio foi outro. Bem mais calmo, sem outra voz que não fosse a dele próprio, acompanhada da telefonia do vizinho que transmitia a ópera cantonense trágica de Tai Nui Fa. Sentiu-se liberto de tudo, como se tudo o quisesse envolto nessa causa da noite. A voz cristalina de Pak Sut Sin atravessava o bairro adormecido, como o er-hu  faria, enquanto ele desmanchava os despedaçados sapatos, peça por peça, alisando-os com a lixa fina, desnudava os calçados da pele dilacerada, recompunha os tacões de madeira, colando os pedaços que se destroçaram e martelando peças metálicas para dentro dos mesmos, que sustentariam o peso de um corpo. Não olhara para horas, apenas para os pezinhos imaginados, para o calçado simples e elegante que tinha em mãos. Notou que não havia sinal de rompimento dos lados, como teria acontecido, se a dona tivesse pé chato ou alargado. Os da mãe do menino eram certamente finos e elegantes. A senhora não pesaria muito, pois não acusavam desgaste nos calcanhares, muito embora a zona palmar não tivesse resistido à erosão do tempo. Deveria ser uma senhora distinta e de modos aprumados, como era o menino de olhos grandes e amendoados da Travessa do Paiva.

O estado de degradação da flor da biqueira permitia tão-só a sua substituição. E assim imaginou o que a senhora fina e leve admitiria sobre os seus pés. Teria que ser uma flor simples, para um modelo modesto, mas nobre pelo suposto estatuto social da dona. Uma rosa simplificada seria uma solução sensata e bela. Não perdeu mais tempo e, acto contínuo, viu-se a cortar em dobro a folha de couro sintético em três séries de pétalas para cada sapato, para se sobreporem umas às outras. Não satisfeito ainda, colocou ambos os seriados ao lume para que as extremidades se derretessem, curvando-se, ora para cima, ora para baixo, numa aleatoriedade natural própria de uma flor. 

De repente, o olhar do miúdo interrompera a sua concentração. O que teria feito este correr e implorar? Não tinha condições de saber. Mas sabia que precisava de fazer algo para a mãe, provavelmente, prostrada na cama por doença. Quem sabe, muito doente. Ao menos fazê-la sorrir com os sapatos que muito amara. Talvez fosse isso a razão da sua consternação, o seu abandono de tudo para acorrer ao pedido do miúdo. E ao lembrar-se da filha, sentiu a mesma impotência para contrariar a violência da tuberculose. Se ao menos pudesse tê-la feito sorrir no momento do seu suspiro terminal. Isto dava corpo a uma comunhão de sentimentos, uma razão de ser, um desígnio. Tudo o empurrava para que completasse a obra e essa noite fora feita para isso.

A telefonia do vizinho calara-se havia muito. O relógio estava prestes a tocar as quatro horas, os grilos ainda cantavam e já na rua os madrugadores saíam das suas casas para o san van, o exercício da alvorada. Estava tudo quase pronto, faltando-lhes a pintura final e rezara a todos os deuses que as latas de tinta do velho Kuan funcionassem como o mesmo prometera. Depois de as ter experimentado com os seus próprios, aplicou aos sapatos na derradeira etapa do seu trabalho. Secou-os com o pesado e barulhento secador de cabelo, e finalmente colara as rosas pintadas de cor de prata em ambos os sapatos e esperou uma hora. Foi manuseando a parte mais mole para verificar se a tinta seca estalaria. A tinta do Kuan surtiu o efeito desejado. Como se ainda não bastasse, achou que devia levar ainda mais uma camada de envernizado.

Batiam as seis e a passarada matinal chegara, com o galo do vizinho, qual cabo de exército, a soltar as goelas. Lam Kong tinha os olhos fixos nos belos saltos, enquanto uma ventoinha afugentava o cheiro a verniz. Vieram lágrimas aos olhos de quem chegou ao fim de um grande feito. Estavam longe de serem perfeitos. O que utilizara não era para sapatos, mas outro remédio não tinha senão o que o seu instinto ditava ser o melhor. E assim imaginou o semblante orgulhoso da esbelta e leve dona sobre o belo par de calçados reconstruídos com emoção e razão de causa.

Mas o menino não chegava. Várias vezes estendia o seu pescoço, ora para um, ora para outro lado, mas a travessa mantinha-se numa calma pouco vulgar, sem movimento algum, nem de carros, nem de bicicletas. Já passava da hora que ele provavelmente viria, a julgar pelo dia anterior. A neblina subsistia como se o céu lançasse um véu sobre o bairro, até o sol irradiava uma luz difusa, sem causar sombras carregadas. Pelo menos não havia sombra do menino, nem de ninguém. 

A impaciência aumentava, Lam Kong parecia um menino à espera de uma prenda que nunca mais vinha. Fumou um, dois e uma série de cigarros, matando o tempo que nunca mais andava. Começou até rogar pragas a si mesmo, a sentir-se estúpido. Cansado, muito cansado, com olhos a pesar toneladas. E a culpa era do menino. E era por causa dele que não levaria dinheiro para casa. E…

5. 

E o garoto descera do alto da Travessa do Paiva na sua direcção. Renovou-se em espírito e sentiu-se embaraçado com os pensamentos mais idiotas que passaram pela cabeça, nessa interminável espera pelo pequeno. Não aceitaria que a aventura da noite anterior pudesse resultar num logro de tão mau gosto. Apesar da tenra idade, o menino iria honrar o compromisso, caso contrário não teria vindo, pois não? Mas o que teria ele prometido, se nem acordaram no valor? E o que um garoto de oito anos poderia valer? Já nem quis tentar responder a estas questões.

Estão prontos, menino. Fiz o melhor que pude, mas eles estavam em muito mau estado. 

Quando tirou o par do saco de algodão, os olhos do menino brilharam de comoção. Os sapatos de salto recuperaram a alvura carcomida pelo tempo, estavam agora luzidios. Não havia buraco algum, os tacões recompuseram-se e todos os contornos aí se encontravam, os sapatos eram dignos dos pés pequenos e frágeis da sua mãe. Ainda cheiravam a químico, mas o aspecto renovado superava esse tipo de defeito. Dos olhos grandes do menino lia-se a satisfação por que muito dinheiro não pagaria. E aí chegou a hesitação.

Sei que não acertámos no preço, mas disse-te que isso iria … custar dinheiro. Passei a noite toda a trabalhar… e não foi fácil. A tua avó vai ter de compreender. Ela … sabe disso, não?

Os olhos luzidios do petiz tornaram-se opacos e sem vida. Em seu lugar, sobrevieram olhos de súplica e de tristeza.

Menti… Peço desculpa, senhor.

Lam Kong ficou mudo, antevendo o que teria de encarar, já vulnerável a todo o tipo de surpresa.

Não tenho nenhuma avó. Apenas a minha mãe.

– Mas como vais pagar isso?!

O menino tirou das suas calças uma nota esfarrapada de cinco patacas e entregou-a a Lam Kong.

É tudo que consegui arranjar. 

Mas … mas o trabalho merece muito mais que

Já não tenho mais nada, senhor. Por favor aceite-os.

– Mas…mas…assim não te posso dar os sapatos por este valor…

– Não vim buscá-los – hesitou – Vim antes pagar-lhe com o pouco que consegui arranjar, porque você trabalhou a noite inteira, não está certo ficar com mãos vazias.

Lam Kong sentiu o aperto nas entranhas que a frustração lhe causava, um misto de revolta contra a sorte que lhe era assim patenteada.

– Menino, não estou a entender nada. Não quero, nem posso ficar com eles. São da tua mãe.

O menino fez nova pausa e ficou sério quando se concentrou no rosto seco de Lam Kong.

– Senhor… ela morreu hoje, já não vai precisar deles. Mas, você pode vendê-los para não ficar a perder. Estão tão lindos.

O menino olhou Lam Kong, ficando à mercê de tudo quanto pudesse vir do sapateiro, mas este apenas olhou para o vazio, numa inelutável apatia. No fundo, apetecia-lhe gritar, bater, queria ser violento. Sentiu-se asno e irresponsável por ter aceitado aquela maluqueira, ao arrepio da real necessidade de fazer mais uns trocos, como tinha sido o seu desígnio nesses últimos tempos. A sua consciência não tardaria a vergastá-lo por essa infantilidade. Todavia, a imagem que lhe surgiu no íntimo, não foi de castigo, mas antes da profunda serenidade com que a menina dormia na noite passada, como havia muito que não fazia. E num instante pareceu-lhe ver a sua filha a sorrir-lhe. Suspirou fundo e resignou-se.

Sinto muito, menino. Sei o que é perder uma pessoa querida, sem podermos fazer nada. E tentaste, rapaz. Foste bravo.

Embrulhou então os saltos renovados no saco de algodão e voltou-se para o menino indefeso.

Ela vai precisar deles quando atravessar a ponte para o outro lado, entendes? Leve-os e … não me pagues nada.

Só se lembrou dos olhos do menino a recuperarem o tom luzidio, do seu sorriso de felicidade e gratidão, no momento em que o leve cacimbo outonal lhe fez esfregar os olhos de cansaço e de sono perdido. Quando recompôs a sua visão, viu a nota de cinco patacas e meteu-a no bolso, mas o pequeno tinha já desaparecido com os sapatos. Iniciou-se, então, o cantar dos grilos e dos gafanhotos e ouviram-se as primeiras batidas das asas dos morcegos do Palácio, os inquilinos que revezariam os pardais e os canários na calada da noite.

Era altura de voltar ao poiso.

6.

A pinga desta vez pesou menos e num ápice estava já à entrada da Rua da Praia do Manduco e não tardaria a chegar a casa. Estava calmo, sem embargo o cansaço da noite passada. Sentia-se bem e inexplicavelmente reconciliado consigo mesmo. Tinha a sensação de ter emigrado e agora retornava a casa para retomar a vida que interrompera. Iria jantar com a sua mulher, respirar fundo, dormir e reiniciar um novo dia seguinte. 

Ao abrir a porta da sua casa, viu o rosto trémulo da mulher. Esta não falava, mas acusava algo que ultrapassava uma mera preocupação. De olhos confusos e avolumados de lágrima, apenas apontara em direcção ao quarto da netinha. O seu semblante não deixara dúvidas, acontecera algo com a pequena. Lam Kong largou tudo e correu para o aposento, abrindo a porta com violência e viu a cama vazia.

Por um lapso de segundo experimentou um pânico de morte e gritou em silêncio, transe que só cessou quando uma sombra atravessara o lusco-fusco que vinha da janela. Era Mei-Mei que olhava para as luzes que cintilavam da rua, sobre a ponta dos minúsculos pés. Lam Kong admirava estupefacto como se desenvolveram os músculos das panturrilhas, contra tudo com que vinha lidando a respeito da enfermidade da menina. E teve medo do milagre diante de si.

– Vovô… porque me olhas assim? Estás zangado?

– Oh não meu amor… Nunca! Vovô está tão feliz por te ver a olhar para as  luzinhas lá de fora – Abraçou a petiz com toda a força e não conteve as suas convulsões quando chorou.

Porque choras vovô?

– Choro de muita alegria, minha linda. Foi como se tivesses estado muito tempo fora e agora voltaste. É tão bom ver-te a brincar, a rir, a correr, a dormir na tua cama e a ter lindos sonhos.

– E eu tive um lindo sonho.

– Oh? Contas-me como foi? – sentou-a na sua coxa.

– Sonhei que estava à janela e dei com uma senhora vestida de branco a sorrir para mim. Tinha um ramo de flores numa mão e segurava um menino de olhos grandes com a outra. Não eram da nossa gente e ela estava bela como se fosse para o seu casamento. O rapazinho estava feliz com a sua mãe e tão bonito era o seu sorriso. Ele acenava-me um adeus e a mãe sorria também. Tinha os mais belos sapatos que já vi, vovô. Brancos com uma flor prateada nas pontas. Tinham acabado de atravessar uma ponte. Acordei e fui a correr para a janela, mas já não os vi mais.

Manteve-se calmo e encostou a cabeça da netinha ao seu peito, enquanto a sua mente devaneava à procura de respostas, pelo menos da certeza de que não sonhava e que tinha ao seu colo a jóia mais preciosa da sua vida, incólume a todos os males. Acto contínuo foi ao seu bolso à procura da esfarrapada nota, e sentiu o calafrio atravessar-lhe a espinha, quando de lá saiu apenas um pedaço de papel sem valor. 

Nesse momento a mulher entrou e abeirou-se dos dois e afagou as costas da menina.

– Kun Yam Pou Sat! Escutaram-se as nossas preces, finalmente. Foi um milagre para a nossa Mei-Mei, até sinto a casa mais leve. A sina foi-se embora – limpava as lágrimas – Vou comprar boa comida e hoje é uma noite em que temos de celebrar, com o dinheiro que fizeste.

Apeteceu-lhe gritar de desespero, pois tudo teria de ter uma razão de existir. Como explicar o dinheiro que a mulher refere, se não teve cliente nenhum? Como explicar a força anímica da noite anterior e a resolução em terminar a sua obra. Olhou de novo para a Mei-Mei ao seu colo e lembrou-se então do menino, do seu olhar solícito e de quão cristalina foi a conversa com o mesmo. Teria ele a ver com isso tudo? Não podia ser… Não teria tudo sido um sonho vivo ou então uma partida de péssimo gosto? Perdeu-se na incredulidade da sua existência, resolveu que tudo não passava de uma charada, que nada de extraordinário se passara, não tinha havido saltos femininos alguns, o menino não existira, e quem sabe se não eram sequelas do sám cheng da lojeca do velho Kuan, até quando a mulher vociferou, interrompendo-o nas incursões pelas suas dúvidas existenciais.

Andas agora a fazer flores? Que vais fazer com as latas de tinta, o couro sintético e as colas espalhadas na cozinha? Preciso de espaço, homem! Está cá um cheiro…!

7.

Passaram-se sete anos e a brisa de Outono soprava suavemente esse dia de 1970. A aragem mais seca do quadrante nordeste não estorvava a neblina leve que se espalhava por toda a cidade, dando ao dia uma luminosidade ténue. As libelinhas enxameavam o céu e, acima delas, aves arribavam em bando para outras terras, fechando-se assim um ciclo, para anunciar um outro.

Lam Kong já não operava junto ao Palácio. O velho Kuan falecera e deixara-lhe a lojeca que se converteu na sapataria “Lam Kong Kei”. Mais propriamente para conserto de calçado, o qual passou a ser a sua actividade exclusiva. Apetrechara a loja de todos os utensílios do ofício, encomendara tintas próprias, couro e cabedal de boa qualidade, formas, cremes e graxas, para manter o nome do melhor sapateiro do Bairro de São Lourenço. Vinha clientela de todos os lados, da gente fina do Palácio à dos lupanários da zona velha. Encheu as paredes de figuras de divindades taoistas e budistas, como os “Oito Imortais” e Kun Iam, assim como Tong Sam Chong, o mítico monge da obra literária “Odisseia para o Oeste”, com os seus três discípulos, mas todos sob o jugo do temível olhar de Kuan Tai, o deus justiceiro protector contra todos os espíritos maléficos. Num canto oposto encontravam-se os botins do velho, contra a vontade da mulher que só via mau agoiro nisso. Argumentava que sapatos sem dono não deviam estar em parte alguma e muito menos nas paredes, pois atrairiam quem pudesse andar nelas. Se calhar tinha razão, porém, Lam Kong possuía argumentos suficientes para fazer moucos os seus ouvidos. De cabelos mais grisalhos, de espinha mais arqueada, continuava magro, mas atarefado, cheio de saúde para consertar todo o sapato que lhe viesse parar às mãos. Estava feliz, pois começava o ano lectivo e a sua Mei-Mei fora admitida no Colégio Canossiano do Sagrado Coração de Jesus, onde aprenderia a falar e escrever inglês.

Olhou para o dia e sentiu o fresco de prenúncio invernal. A neblina adensava-se, o que o deixou nostálgico. Mas, não teve tempo para cismar. Cinco pares de sapatos militares e de festa esperavam os seus cuidados, e ele manteria o seu estaminé aberto até completar essa missão do dia. 

Nisso, enquanto curava o mal de uma das solas, escutou uma voz murmurada e delgada de menina.

O senhor conserta isto? Ela precisa de andar.

Lam Kong saiu da sua loja e agachou-se olhando para uma boneca velha, enodoada, descosida e sem uma perna, numas mãos frágeis e minúsculas. Levantou os olhos para a menina franzina, que não teria mais de sete anos, de olhos grandes, pele muito alva, linda como uma boneca de porcelana.

Sorriu.

Claro menina, ela vai ficar bonita como tu. E andará.

Largou a sola e deixou o resto dos sapatos em paz.

Fechou a loja. 

A neblina também se foi.

Travessa do Paiva, Macau.
O mural do Palácio da Praia Grande à esquerda.
Foto tirada em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60 do século passado.

F  I  M


Notas:

Pinga – Vara de madeira, de bambú ou de cana, utilizado pelos chineses para transportar toda a espécie de mercadoria, pendurando-a em cada extremidade da mesma vara.

Saltos – Forma abreviada de “saltos altos”, “saltos de senhora”ou “sapatos de salto”, muito usada entre os Macaenses, correspondente a “high heels”, por referência a “high-heeled shoes” na língua inglesa.

Tai Nui Fa (帝女花) – Clássico da ópera de Cantão, das mais famosas óperas de todos os tempos, sobre a tragédia da Princesa Cheong Peng (長平公主) e o seu noivo Chao Sai Hin (周世顯), no fim da Dinastia Ming, no século XVII.

Ma Si Chang (⾺師曾) e Pak Sut Sin (白雪仙) Famosos intérpretes da ópera chinesa, tanto em palco como, como no cinema, esta última celebrizada no seu papel da princesa Cheong Peng, na ópera Tai Nui Fa.

Lo Pak Tau (蘿蔔頭) – Literalmente “cabeça de nabo”. Expressão pejorativa, provavelmente já caída em desuso, atribuída a japoneses, os quais tradicionalmente ostentavam um peculiar corte de cabelo, caracterizado por um rabicho fino, o qual por sua vez seria dobrado para cima sobre a parte calva da cabeça, à semelhança do prolongamento alongado do tubérculo em causa.

Sam Cheng (三蒸酒) – Também conhecido fora da China pelo nome de Samshu ou mais propriamente por Sam Siu (三燒) é um tipo de vinho chinês a partir do fermento do arroz, com teor alcoólico variado, muito popular entre consumidores da camada social mais humilde, caracterizado pela sua capacidade rápida de embebedar o seu consumidor.

Ponte – Segundo a crença popular chinesa, de origem budista, a alma do defunto teria que atravessar a ponte para a eternidade. Corresponde à “luz branca” que se crê divisar-se logo após a morte.

Er-Hu (二胡) Literal mente “Alaúde de duas (cordas)”, também conhecido por violino chinês, instrumento acústico de duas cordas, muito tradicional na música clássica chinesa.

Kun Iam Pou Sat (觀音菩薩) – A prece, ou mantra invocativa a Kun Iam (Guan Yin), a deusa da Misericórdia, profundamente arreigada na cultura religiosa chinesa.

Macau, 29 de Outubro de 2021, Sexta-Feira

© Miguel de Senna Fernandes

CHI-CA-POM, O BOLERO IMPROVÁVEL

 

I

“Yo para querer…No necesito una razón…Me sobra mucho…Pero mucho… corazón” (1)

A voz de veludo de Omara Portuondo rasgava a calmia desse serão no Beco do Musgo, ao som do bolero da charanga cubana. Por mais que quisesse, Nico não atingiria aquelas notas como conseguia muitos anos atrás. A idade cobra juros e o rum não ajudava nada.

O ar estava quente e húmido em casa. Nessa noite do fim de verão, Nico suspirava nostálgico, expelia da sua boca o fumo da sua cigarrilha, enquanto sorvia um Santiago de Cuba e se retorcia com o ritmo alternado dos bongos, congas, guiros e maracas. Não estava com vestimenta de casa. Ao invés, usava camisa com padrões floreados, calças de cor beige, suspensórios. Os seus sapatos de tons preto e branco, impecavelmente engraxados, como se preparados para uma festa.

Era efectivamente um momento festivo, pelo menos para ele.

“Muñequita linda… de cabellos d’oro… de dientes de perla… lábios de rubi…”(2), badalava agora a orquestra de Edmundo Ros e ele cismava. Ela devia ter feito trinta e cinco, hoje, murmurava para si. Mãe de filhos? Quantos seriam? Encolhia os ombros, enquanto vertia o rum pela garganta abaixo. Tantos anos se passaram, e ainda se lembrava do dia em que lhe comprara a boneca de olhos de vidro, branquinha com um rosado nas bochechas, com vestido cor-de-rosa, alças sobre camisinha branca, meias rendilhadas do mesmo tom, calçando sapatinhos pretos luzidios. Um pequeno malmequer enfiado nos seus cabelos de oiro. Benita bonita, com as covinhas bem salientes, fazia três anos e olhava para a sua boneca com admiração e ternura. Não a tirara da caixa só para não amachucar os seus cabelos doirados. Mas depois de dias a contemplá-la retirou-a do pacote e nunca mais a deixou. Até o dia em que  a sua mulher Pilar o deixou levando Benita para longe. Nunca mais voltou a vê-las.

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Da mesma Consuelo, que foi pai e mãe a educar e avó para mimar, aprendeu uma lição de ouro, num dia em que voltou a casa choramingando de uma sova que levara na vizinhança.

“Ri sempre, mesmo que estejas triste. Nunca ninguém ganhou a vida a chorar. Os pobres que choram ficam ainda mais pobres, porque nem lágrimas sabem poupar!”

Quando se dera o alarme no natal de 1958 de que Fulgêncio Batista(3) não era tão poderoso como fazia crer, a avó Consuelo não hesitou em corresponder ao que o seu instinto lhe obrigava, agachou-se e pela primeira vez falou a Niquito num tom muito sério, muito mais sério do que nas vezes em que ele fazia asneira e esperava a surra.

“Niquito… Vais ser homem e ser homem é ter coragem e não chorar. O teu tio Alonzo está na América e muito te espera. Quero que tu fiques com ele, por uns tempos.”

“Vovó…eu vou sózinho? Não vais?”

“Não meu amor. Vovó tem que ficar, porque a música aqui não pode parar.”

“Mas eu posso ajudar, o Tio Manito ensinou-me a clave da rumba….eu mostro… é um pouco diferente da do son…”

“Niquito, ouve bem a vovó! É importante que te vás, aqui não está muito bom para meninos da tua idade. O Tio Alonzo tem um quarto para ti, aí estarás seguro.”

“Não quero ir sem ti, vovó. Quem vai cantar e dançar comigo?”, choramingou.

“Na América vais dançar e conhecer muita gente. Vais conhecer o mundo. Vovó não pode ir agora. Mas um dia quando tiveres dinheiro vais comprar o meu bilhete. E eu estarei contigo, como sempre.”

Abraçou o netinho com toda a força. Nesse dia, passou muito tempo com ele aos seus braços. Se calhar sabia que nunca mais voltaria a vê-lo, entregue à sorte que Deus lhe reservara.

No dia 8 de Janeiro de 1959, enquanto os heróis da revolução davam a sua entrada triunfal na capital, Niquito d’Aragón embarcava para Miami, um mundo novo que não escolheu, para o qual o atirou a sua sina de eterno exilado. E aí continuou o seu crescimento, tal como tantos cubanos, em terra e cidadania alheias. Sem saber que a vovó fora posteriormente presa por causa do filho e suas ligações com o regime batistano.

Não obstante as dificuldades de adaptação nessa nova terra que foi forçado a aceitar, Niquito não deixou de ser alegre. Estava no seu sangue rir quando a vida só lhe dava razões para pranto. Dava mão ao seu tio Alonzo, na pequena frutaria que possuía na populosa “Pequeña Habana”, a Meca para todos os exilados, sem no entanto se esquecer das palavras da vovó.  E foi a rir e dançar que conquistou todos.

 Na América, a vida de imigrante tinha mais baixos que altos. Apesar da aparente solidariedade entre os hermanos em terra de gringo, sobreviver era a palavra de ordem. Estava fora de Cuba e havia toda uma série de primos porto-riquenhos, colombianos, mexicanos, peruanos, bolivianos, enfim toda a América-Latina tinha poiso na Little Havana. As rivalidades entre eles eram uma constante, e não poucas vezes, sangue jorrava pelas ruas de Miami.

Estava-se no intervalo e o saxofonista entoava uma canção mexicana acompanhada de um bongo. “Noche no te vayas … quédate con nosostros… para siempre…” (4), ouviu a sua própria voz a cantarolar maquinalmente essa melodia de Roberto Cantoral, que o Tio Alonzo tocava sempre em casa. Um som diferente da charanga da avó, mais suave, harmónico principalmente nas vozes, acompanhado de três violas.  Os trios mexicanos faziam um grande furor nos Estados Unidos, acasalando o mariachi com os ritmos caribenhos. Fechou os olhos e meneou as ancas ao sabor do bolero que o bongo impunha. O seu ritmo lento e indolente evocava uma sensualidade natural que subia à cabeça desde a ponta dos seus pés, acompanhado dum calafrio na sua espinha.

Sentiu a mira de alguém quando o saxofone parou. Era Johnny Arroyo que naquele momento se inspirou. E se a orquestra incluísse uma trupe de dança nos seus espectáculos?

A partir daquela tarde até a formação dos “Rumbéros de La Esperanza”, dois meses depois, todos os dias à mesma hora, Niquito iria ao clube para os ensaios de aperfeiçoamento da sua dança. Era esquio, de altura mediana, moreno, cabelos bem escuros e luzidios, usava roupa muito justa que denunciava a musculatura de um macho ágil e robusto. Caíu nas atenções de Pilar, a filha predilecta de Johnny, com ela dançou e muito. Teria sido uma ligação fugaz, não tivesse ele engravidado a princesa, praticamente à primeira. Niquito passou a frequentar a casa dos Arroyos e mesmo antes da estreia dos Rumbéros já ganhava uns dólares. Não tinha muita liberdade, sobretudo depois do seu casamento que se daria logo a seguir. Johnny, que se tornara viúvo muito cedo, exigia muito que sua filha fosse sempre muito feliz. Para Niquito, o sucesso em vista justificaria sempre qualquer sacrifício, não obstante suspirasse por um mundo onde pudesse respirar o seu próprio ar.

Aos vinte e quatro anos, como rumbeiro da trupe de Johnny Arroyo, saía dos Estados Unidos, com a sua mulher e filha de dois anos, rumo a outros países, onde os ritmos da clave, maracas e bongos animavam os salões de dança, apesar da vaga crescente do rock. Bangkok, Saigão, Singapura, Taipé foram algumas paragens por onde o seu ritmo deixou marcas.

Um dia parou em Wanchai, Hong Kong.

Mais um trago de rum pela garganta abaixo, quando cantava Beny Moré “Como fué….no sé decirte, como fué…  no sé explicarme qué pasó…pero de ti me enamoré…” (5) que o amarrava para o fundo da sua melancolia.

E pôs-se a cismar como muitas vezes lhe ocorria fazer. O que se teria passado, como foi tudo para agora acabar os seus dias só, na companhia das suas memórias, mantinha-o vivo na sua memória.

Nico tragou um bom bocado do seu fumo, aguentou para o exalar no momento decisivo em que Beny Moré entraria na frase apoteótica. Semicerrou os olhos antecipando-se à catarse. A congada decisiva estava mesmo à esquina, Nico até preparou o seu corpo. É agora.

Um estrondo de latas no caixote de lixo vinham da vizinhança.

Nico tossiu como que tivesse entrado numa câmara de fumo. O susto fê-lo virar a mesinha onde tinha a sua bebida. Tudo estilhaçado no chão, copo, Santiago, e ele de pernas para o ar.

    Tal qual como na última vez, pegou no pau e saiu da sua casa para afugentar os gatos da vizinhança que apareciam à vasculha do jantar. Ou então seria a rapaziada que lá paravam para fazer disparates da meia-noite, mormente largar partidas ao “Tao ngao lou” (6)

Ai Carrico! Venga, venga! Donde estás tù, cabrón?!”

Ia de peito feito para desancar, para mostrar que aos cinquenta e três anos continuava hombre. Porém não era o que estava à espera.

Diante de si estava uma  moça franzina, imóvel, prostrada sobre um canteiro abandonado.

Toda a aparência de touro enraivecido dissipou. Nunca lhe acontecera coisa semelhante. Queria ver se passava alguém aí, mas o Beco era calmo demais para interessar fosse a quem fosse. Queria chamar a polícia, mas o que eles iriam pensar? Queria pura e simplesmente voltar para casa, ignorar o sucedido e limpar o estilhaço da noite, e assim fez. Mas malvada consciência que não lhe deixa escapar um percalço, ribombou em protesto. Ademais, começou a chover e cada vez mais.

“Carajo!”

Voltou ao mesmo local e a chuva castigava. Olhou para a moça imóvel no chão da rua e decidiu que ela não podia ficar aí. Pegou no seu braço, colocou-o sobre o seu ombro que por sua vez pressionou o seu axilar, segurou-a na parte lateral do seu indolente corpo e arrastou-a para dentro da sua casa.

Sentou-a no seu sofá. Encharcada, aí estava em sua casa, ante o pasmo de um homem que subitamente perdeu a fala.

Isto … não está a acontecer!” Dizia ele para si, observando a moça inanimada.

O que iria fazer era coisa que não passava pela cabeça, já em si pesada com o efeito do rum. Ela está molhada de cabeça aos pés, quanto tempo levará para secar toda a roupa? E… ñooo! … tresandava a vómito.

II

Maria Lúcia Pena Guterres, faria vinte e quatro anos nesse dia.

Passou a sua vida despercebida do público. Ela sabia disso e tinha as suas razões para se afastar das pessoas. Para além da dentuça presa por uma armação metálica que os seus lábios se viam impotentes para disfarçar, não tinha nada que o comum padrão de beleza feminina abonasse a seu favor. Pálida de pele, era esquelética que nem uma “Olívia-Palito”, sem relevo algum quando apreciada de lado. Enfim,  “aeroporto”, como cruelmente chamavam as bocas maldosas em Macau às raparigas que tivessem esse infeliz atributo. E para acentuar a sua distância à formosura estereotipada, a sua postura fazia lembrar um ponto de interrogação, porém, mais mais alongado nas curvaturas. Tudo isso a rematar com rabicho no penteado e óculos de aros largos e escuros.

Sem surpresa, não era popular. Ou então a sua popularidade advinha do escárnio da rapaziada desbocada, pelo qual  ninguém a venceria numa corrida de atletismo, pois a sua dentuça e o seu pescoço longo e descaído dar-lhe-iam sempre uma invejosa vantagem.

O pai, oriundo da Marinha Grande, em Portugal, nunca se convencera de que ela era sua filha. A fealdade da menina não se coadunava muito com a sua fama de moço bem parecido e atraente. Separou-se da mãe, logo após o fim da comissão de serviço na polícia, no início dos anos noventa do século passado. Quando finalmente Marilu foi a Portugal visitá-lo, vinte anos depois, anunciaram à porta da casa “Pai, está aí uma mascarada de múmia, à tua procura”. Lá dentro ouviram-se gargalhadas. Foi em finais de Outubro e a tradição do Halloween tinha já chegado com força em Portugal.

A mãe, macaense(7), casou com um indivíduo de nacionalidade filipina de quem teve vários filhos. Marilu, sentia-se estranha na sua própria casa, onde, tal como em público, era ignorada. Contudo, teve garra suficiente para se esmerar nos estudos. Embora não tenha sido aluna de notas sonantes, nunca fizera a mãe ou o seu padrasto gastar mais do que deviam para assegurar a sua educação. Enquanto os seus irmãos foram todos para as escolas chinesas, ela achou que devia aprender português e depois inglês. E depois chinês e depois outras coisas que eram pura e simplesmente menosprezadas por gente da sua geração. Aprendeu fotografia e até armar tenda para campismo. Tinha tempo de sobra e até se inscrevera num curso de dança de salão.

Ingressou na função pública, juntou o seu dinheiro e pôde pagar uma caução por um arrendamento, quando decidiu sair de casa e levar uma vida só dela. A mãe e a sua prole nem reagiram.

Nunca namorou, também não surpreendia. Era invisível aos rapazes, aliás um mero espírito errático para toda a gente que conhecia. Habituara-se a isso desde pequena. Assim, aquelas festas de escola, onde toda a gente se abraçava, se beijava, se alimentava de dramas de paixão, não eram com ela. Solidão, ela sim, era a sua melhor amiga.

No entanto, gostaria que Deus um dia lhe abrisse uma excepção. Não lhe exigia, nem o implorava que fizesse. Apenas desejava que condescendesse. Um dia bastaria.

Imaginava que nesse dia, alguém  desse pela sua existência, não como uma alma danada, mas como pessoa viva a fazer coisas que faria gente normal. Não era um queixume. Quem nasceu assim, pensava, seria assim vida toda, sem razão alguma para qualquer lamento, tal como um cego de nascença não choraria por não conseguir ver. Ela queria apenas algo de novo, de invulgar, tal como o cego acharia interessante, por uma vez da sua vida, experimentar o que seja a luz.

Este dia apareceu. Um rapaz no curso de dança de salão ficou sem par e calhou à Marilu a situação de poder corresponder ao pedido do instrutor para que o rapaz não perdesse a aula. De facto não teria sido em vão, pois ela sabia todos os passos e compassos que aprendera de Mister Hung, funcionário aposentado que aproveitara o seu vigor para dar umas aulas de dança que aprendera de outros. Nada de grandes coreografias,  nem o seu instrutor tinha criatividade para tal, mas era cumpridora e executava todos os passos que ele identificaria de tango, cha-cha-cha ou paso-doble.

Rapidamente se desenvolveu uma relação de confiança entre ela e o rapaz, a ponto de se gerar uma cumplicidade, fundamental para que um par de dança funcionasse como tal. Não que dançasse bem, até porque sofria da síndrome do pé pesado, mas ela não falhava ante o escrutínio rígido do Mister Hung.

Três semanas de aulas foram o suficiente para que Marilu abrisse olhos para um sentimento nunca experimentado. Aliás, que nunca ousara tê-lo. Achava que as aulas lhe desbravavam caminhos nunca antes trilhados, vias para um excitante mundo desconhecido. Criara-lhe expectativas. E o rapaz correspondia-lhes.

Os sonhos passaram a ser outros, tal como aquele que teria o cego depois de se despertar para uma imagem idílica. Encheu-se de coragem e de resolução para se declarar e escolhera para o efeito o dia dos seus anos.

Tinha escolhido o melhor vestido que achou apropriado para si, depois de vasculhar muita revista de moda informal. Marcara uma mesa num restaurante, conforme tinha combinado com ele na aula da noite anterior. Ficou nervosa e ao mesmo tempo indecisa se devia pedir vinho, aquela “coisa amarga” com que nunca se dera bem. Não obstante, achou que a ocasião merecia tudo e assim veio à mesa um Grão Vasco, o único tinto português que se vendia em muitos restaurantes de Macau.

Mas ele não apareceu. Eram já dez horas e meia quando ela saiu do restaurante. Suspirou fundo, não se enraiveceu. Apenas engoliu seco o que naquele momento era de todo intragável. E disse para si, que amanhã seria outro dia, como foram todos os outros. Procurou pensar em coisas boas, concentrou-se e à força convenceu-se de que o caldo verde estava delicioso, assim como o nairo grelhado e o bolo de aniversário. Não faz mal, dizia, alguma vez os seus anos foram diferentes? E sózinha acabou com o tinto.

Sentia calor, sabia que estava corada de vinho, o coração acelerava e a pulsação sentia-a na cabeça. Estava tudo bem, não fora ter apanhado um grupo de rapazes e raparigas a conversar logo à esquina do bairro por onde seguia para casa. Eram da sua gente e de gente conhecida.

Ainda bem que te salvámos deste ridículo” – ouvia-se de uma voz feminina.

“Já imaginaste como a malta falaria de ti, se te apanhasse a jantar com a “Avestruz”? – perguntava um.

Chupâ-ovo de avestruz (8) – respondeu outra voz. Risada forte.

Oh pá! Ela é uma gaja porreira…”

Reconheceu a voz. Agora agachou-se para ouvir o resto da conversa, embora a sua habitual prudência aconselhasse uma outra coisa a fazer.

“Gaja porreira para levares pra cama, seu porco de merda! É pa… ainda dás cabo daquela caixa de ossos!” – Gargalhada estrondosa, que até motivou protesto da vizinhança.

Caramba mé! Só quis aprender a dançar, mas a Rosa adoeceu e não tinha par”. – prosseguia ele em tom jocoso.

Podias dançar com uma vassoura, po!” – outra risada. ”Deixa-te dessa merda, ainda acabas por vê-la prenha! Ainda bem que estás salvo!”

“Homostruz! Filho de avestruz e homem!  – outra gargalhada.

“Dou-te mas é uma omelete no cú, seu boca-fêde! (9)” –  retorquia ele.

A festa da rua continuou. À custa dela.

Cada palavra era um alfinete que perfurava a sua pele. Cada vulgaridade, um facho em brasa na sua alma. Não estava à espera disso, não tinha como se defender, sobretudo quando já saíra amachucada do restaurante. Sentiu-se enlameada, entorpecida pelo vil insulto da boca de quem lhe dera toda a imagem de homem são e leal. Fitou o céu e bradou em silêncio.

É isso queres para mim!?”

Não foi para casa, antes cambaleou por uma mercearia e comprou gin. Bebeu-o toda e nele se afogou. Deu-se por vaguear pelas ruas estreitas do bairro. Não sabia ao certo onde se encontrava. Mas pouco importava, não queria era parar, precisava de andar, contrariando o que de costume fazia. Tinha já parado demais na sua vida. E agora que o destino se foda!

A cabeça dava-lhe a sensação de transportar um panelão de água quente, com sérias dificuldades de equilíbrio. E ao errar pelo Beco do Musgo foi de encontro ao contentor a transbordar de lixo, escorregou e caiu. Se alguma dignidade lhe restava nessa noite, o saco de dejectos que sobre si caíra, desfê-la por completo.

Não sentiu a chuva que, a rematar,  regou sobre ela. E mesmo que tivesse dado por ela, iria alterar coisa alguma?

O sol inaugurou com fulgor ao segundo dia dos acontecimentos, com uma clareza invulgar, como se a chuva das noites anteriores tivessem limpo o ar de todas as impurezas. Nico saiu para fazer compras e o relógio batia o meio-dia quando regressou a casa. Preparara uma canja de galinha à moda chinesa, que sabia ser boa para quem convalescia de uma noite agitada de álcool e vómito.

Queria primeiro ter a certeza de que ela estava bem, para depois tomar outras medidas. Algo lhe dizia que agia correctamente, apesar da situação sem precedentes em que se encontrava. Só sabia que cuidar dela era a única coisa que no momento fazia sentido.

Ouviu-a tossir. Aproximou-se e colocou a palma sobre a sua testa. Já não tinha febre e o corpo indiciava transpiração. Retornou à cozinha quando ela acordou.

A cabeça desta girava ainda quando tentou olhar para os objectos ao alcance da sua visão. Estava deitada em cama alheia, envergando roupa alheia. Sentia-se confortável, o seu corpo exalava odor a pó talco. Entrou em súbito pânico, ao procurar saber da sua própria roupa. É quando Nico volta com um copo de água.

Acenou a cabeça quando colocou o copo na cabeceira.

“Oyé…?” – Marilu não respondeu.

“Bebe este água que te faz bien. Estoy a preparar una canja que está cási pronta” – esforçou-se a falar português, como que adivinhasse que essa fosse também a língua dela.

“Onde …estou?”

“En mi casa” –  Marilu olhou-o atónita, indagando como isso teria sido possível. Nico sentiu desconforto, desviou o seu olhar  e encolheu os ombros.

“Estavas tán bêbada. Como vieste parar aqui? Conoces alguém?” – Marilu não respondeu, apenas olhou para o velho pijama no seu corpo. Nico suspirou e explicou-se.

“Perdoname, não tinha outra coisa para te vestir.” – Os olhos da Marilu aumentaram sobremaneira.

“Chica! Llovia por ahí, estabas empapada! – Marilu incrédula.

“Carrico! Sí … io tuve que… que… bañarte!” – Marilu em pânico.  

“Eras uno…uno excremento de vómito, qué esperabas?!” – Marilu soluçava com as mãos no rosto, enquanto Nico aumentava o tom de voz.

“Ahhhh, no….no…quería … Mira, chica …” voltou a falar o pouco de português que aprendera. “Preparé …una canja de pollo….de galinha”. Marilu desfaleceu.

 Perdeu a paciência de esconder o seu embaraço. Retornou à cozinha e desligou o fogão.

Carajo!” pegou no seu casaco e sumiu da casa.

Já fazia noite, quando ela voltou a acordar, encharcada de suor e faminta. Certificou-se de que não era sonho, que de facto despertara na cama de alguém, com vestimenta que não era dela. E teve uma conversa conturbada com um homem de meia idade. Olhou à sua volta, à procura dos seus haveres. Estavam sobre a cadeira perto de si, a sua mala intacta pendurada no encosto da cadeira e a roupa passada a ferro. Quis sair daí já, mas a fome berrou mais alto.

Não viu ninguém quando saiu do quarto e dirigiu-se à cozinha. Havia aí apenas uma tigela sobre um prato e uma colher junto de um panelão de canja, confeccionada para ela. Devorou-a num ápice, estava saborosa mesmo quando fria.

E na sua terceira tigela deu-se a apreciar o seu redor. Pé direito alto, numa casa que aparentava ter umas largas décadas. O tecto a acusar infiltração de água e cheiro a bafio. As paredes, para além da imagem da Imaculada Conceição, enchiam-se de fotografias de artistas. Reconheceu os grandes da música latino-americana, o Trio Los Panchos, Los Três Caballeros. Estava também Lucho Gatica, Omara, Tito, Celia, Compay Segundo. E dum canto, fitavam-na olhos sabedores, dum semblante escuro e ossudo, com fino bigode a traçar um sorriso sedutor, Beny Moré. O que estas figuras faziam num antro tão lúgubre como aquele sítio, não entendia. Se calhar nem era para entender, quando mal se convencia da razão de ser da sua própria situação, única em toda a sua vida.

Pousou a tigela na mesa e apressou-se a vestir. Mas, brigava com um sentimento de culpa. Quem podia ter sido aquele sujeito que a tirara da confusão da rua? Que fora decente com ela, o mesmo ininteligível sujeito que a poupara da pior degradação que lhe aconteceria?

Respirou fundo. Assomaram-se-lhe imagens nebulosas da tina de banho, a toalha e pó talco sobre o seu desnudado corpo, o pijama e alguém a carregá-la com ambos os braços para a cama. Como agradecer? O conflito estalara, mas a vergonha vencera. Não olhou mais para trás quando fechou a porta da casa, correu sumindo do Beco do Musgo como quem fugisse de algo ignominioso.

Chegou a casa, pousou os seus haveres e despiu-se. No chuveiro, rodou a torneira até o máximo para que o jacto de água a fustigasse com toda a violência, como que quisesse sacudir à força o que acabara de se entranhar na sua vida. E aí chorou copiosamente. De medo, de confusão, chorou.

III

No Kai Kei, a velha mercearia do bairro, Nico sorvia a sua quinta cerveja, ruminando o incómodo que a situação lhe causava. Já passara por muito, mas nunca na sua vida se pôs fora do seu próprio poiso por uma escanzelada moça que não conhecia e que a pusera na sua cama para se recuperar de uma ressaca violenta, seguida de uma gripe demolidora, a quem banhara e preparara uma canja! A boa vontade mal compreendida era algo difícil de digerir, mas algo lhe empurrara para essa maluqueira. O que teria acontecido a essa moça aparentemente normal para se apresentar naquele estado?

Sem querer, Benita atravessava o seu pensamento e aí estacionou. Extasiado, viu-se a zumbir, imitando o som dum avião ou duma mosca em vôo livre, enquanto sua mão rodopiava pelo ar,  com a colher levando a papa à boquinha, ante olhos castanhos claros que o fitavam felizes. Aí a menina rasgava-se em gargalhadas, com covinhas pronunciadas. Ela agitava-se, as palmas minúsculas batiam suavemente no tampo da mesa. Lia-se segurança naquelas gargalhadas, de quem tinha pai, casa estável e vida condigna. Era o seu tesouro, o escape no exercício das suas funções de bom pai de família.

Eram os bons tempos em que passaram em Hong Kong. Imagens de Wanchai sucediam-se na sua mente, revia o seu apartamento que não era grande, mas suficientemente arejada, com boa vizinhança e tudo estava ao alcance para que a vida fosse levada com paz e sossego. Pilar estava feliz e ele era um homem bem lançado. Mal grado, a noite possui a mística de transformar os mais puros, ou então revelar a sua verdadeira natureza.

 Os “Rumbéros”  acompanhando a banda caribenha de Johnny Arroyo, faziam furor, não só no Tropicana, como também noutros recintos de espectáculos, como o Lee Theatre em Causeway Bay.  Johnny  diversificava os contactos e conseguia mais contratos, para a sua orquestra  e a troupe de dança.

Todavia, com o tempo, Nico  passou a ser o espectáculo principal. O modo como o seu corpo viril se contorcia, como seus pés deslizavam suavemente sobre  a pista, como as suas ancas e sólidas nádegas marcavam infalivelmente o compasso sensual da rumba, alimentava fervor nas mentes libidinosas das suas fãs. Em terra de Dragão, ele movia-se sinuosa mas poderosamente como o mítico monstro. Não tardaram a apelidá-lo de Long Ngao (龍牛), o Dragão-Touro, o másculo ao qual se rendiam todas as menos resilientes. Vaidoso, fez gala disso. Deixou de ser Niquito, e o seu nome de família D’Aragón converteu-se no epíteto “El Dragon”.

Porém, a fama é daquelas facas de gumes diversos e um deles é particularmente mortífero, fazendo sangrar quando menos se espera. Se a receita dos espectáculos não cessava de entrar, o Dragão não parava de rumbar em camas alheias. Um homem requisitado no meio feminino, deleitava-se com a disputa entre as mulheres pela sua atenção. Não poucas vezes fazia visitas a uma, a seguir de outra num mesmo dia, antes de um espectáculo. Entre as suas admiradoras havia muita gente da alta sociedade, que lhe pagaria tudo para uma noite de volúpia. Dum momento para outro, passou a usar anéis, calçado luzidio, fatos de alfaiatarias caras. Se no início Johnny Arroyo aprovava esse “modo peculiar de atrair admiradores”, começou a sentir o incómodo que gradualmente crescia, à medida que diminuía a alegria da filha. Até que um dia não se conteve:

“Nico, a mulher do outro é como cocaína de que não nos livramos facilmente. Mas quando a nossa filha está casada com um drogado desses…”, o recado foi muito claro, havia limites para tudo. Porém, ouvidos moucos também, como tão bem os fazia, quando tal vício o enrigecia e tomava conta do seu tino.

Pese embora essa tendência femeeira que foi adquirindo, não lhe faltava devoção à pequena Benita. Acreditava que ela era fonte da sua permanente juventude, a encarnação daquela criança risonha e arrojada que sempre trouxe consigo, desde os tempos da avó Consuelo, e acarinhada pelo Tio Alonzo na Pequena Havana em Miami. Por nada deste mundo a trocaria. Chegava até tarde aos seus encontros íntimos, porque Benita precisava do seu colo para adormecer. E aí despia-se de todos os pensamentos lascivos, para se concentrar na sua pequena Benita, contando-lhe histórias que ela pudesse entender, com os seus dedos acariciando-lhe a minúscula testa, sussurrando-lhe suavemente “Como fué…” até os seus olhinhos se apagarem, para um sono em paz.

Depois repunha a sua veste de besta castigadora, marraria por aí fora entre beijos, pernas, gemidos e gritos, num martelar sem piedade, para a delícia e perdição das suas amantes. Os constantes avisos de Johnny Arroyo não surtiam efeito. O dispêndio de energia não o preocupava, nem tão pouco a ciumeira cada vez mais badalada em casa. A juventude criava-lhe a miragem de um poder sem limites e havia sempre quem desse cobertura a todas as escapadelas que se lhe exigiam.

Cego de êxtase, o seu ímpeto não conhecia marido de ninguém, nem os riscos que pisava. Era o toiro bravo, que só conhecia um território, o dele. Até que, numa noite encontrou uma turma de forcados pela frente, a mando de um inconformado com a leviandade da esposa.

Suava ele em cima desta, quando a porta da pensão se abriu a pontapé. Entraram seis encapuzados e logo se ouviu a estalada que pôs a adúltera inconsciente. De imediato, dois deles prenderam-lhe os braços, posicionaram-no de pé. Nico mal pôde organizar as suas ideias quando sentiu o duro de um bastão a atingir a sua barriga. Seguiu-se mais um golpe. E mais outro. Abriu os olhos e eram dois. A pancada era de tal violência que lhe pareceu sentir as suas entranhas já fora. Os dois que lhe seguravam os braços esticaram-nos e um terceiro golpeava-o por trás, enquanto mais bastonadas atingiam a parte frontal do seu corpo. Nico gritava. Sangue expelia pela sua boca, sabia que acabaram de fracturar pelo menos uma das suas costelas. As suas mãos a cobriam agora a cabeça e o porrete atingia os dedos, enquanto que outros continuavam a sovar as partes vulneráveis do seu corpo mazelado.

Um dos golpes mais duros atingiu-lhe a tíbia. A crueldade não tinha limites e a ponta do bastão foi o suficiente para esmagar o seu pé. Ao querer segurá-lo para evitar mais dano, levou uma paulada na maçã do rosto e outra na clavícula. E por fim, já prostrado no chão, divisou que um deles empunhava um cutelo e não queria acreditar que essa fosse a sua última noite. Estava à mercê do seu destino, demasiado ferido para decidir como iria morrer. Fechou olhos e esperou pelo final.

Soou um grito de alarme. Ela acordara atordoada e assistia o cenário horrendo em que o seu touro se encontrava. O homem hesitou, o seu cúmplice segurou-lhe o punho e persuadiu-o a desistir do pior. Cobriram-na com um lençol e arrastaram-na para fora do quarto, entre gritos e soluços.

Nico acordou deitado numa maca no hospital. Havia polícias à volta a querer saber do sucedido, sem que pudesse corresponder ao que lhe era perguntado. Não conseguia mexer e cada acto de respiração era uma dor lancinante. Estava preso na maca, para lhe assegurarem repouso absoluto, com um penso atado na cabeça para manter imóvel o seu maxilar. Acusava também fractura de dedos e da tíbia. Não sentia o seu esmigalhado metatarso. Nico só cantarolava em silêncio “Como fué…” com Benita no seu pensamento, a única forma de amenizar o tormento do instante. Não compreendia como continuava vivo, enquanto corria notícia de que uma mulher, esposa de um temível, flutuava cadáver nas águas de Deep Water Bay.

Passou no hospital duas semanas e ninguém o visitara. Telefonou várias vezes à casa, a linha não dava sinal de vida. Teriam os mesmos jagunços feito alguma coisa à sua família? À Pilar? À Benita do seu coração? Quando conseguiu finalmente andar apressou-se a ir para casa e quando lá chegou a porta não estava trancada. Esperou pelo pior e entrou. A casa estava impecavelmente arrumada, não havia sinal de saídas abruptas. O único cheiro que havia não era da violência que esperava, mas sim do vestuário da Pilar, quando abrira o guarda fato do quarto. Estava tudo intacto, porém sem ninguém, sem nada. Ao sair do quarto, reparou que algo o enxergava. Era o brilho reflectido nos cabelos de ouro da muñequita da Benita, prostrada num canto do sofá. Nico imaginara como Benita teria chorado quando Pilar a levara da sua casa, sem a sua amiguinha de dentinhos de pérola e lábios de rubi. Não obstante o sentimento de culpa, podia viver sem Pilar. Mas, o coração despedaçou-se quando pensou em Benita. Traíra-a com a sua ignominiosa leviandade. Naquele momento mal sabia que tinha começado o seu longo calvário.

Acelerou o passo que o levaria à Tropicana. Aí deparou-se com Johnny e levou logo um estalo na sua já macerada cara, quando principiara a conversa.

“Não te quero ver mais, não me cumprimentes, não olhes para mim. Não gosto de gente do esgoto, dá-me nojo. Nem penses em voltar a ver as duas, que já saíram desta terra. Nem te passe pela cabeça voltar a Miami, pois a tua mísera cachola está a prémio”.

Nunca mais voltou a ver Johnny Arroyo, nem mais passou pelo Tropicana. Nunca soube se a sova que levara tinha algo a ver com o seu sogro. O certo é que nunca mais sorriu, como a avó Consuelo gostaria.

Acordou do seu devaneio quando Ah Kai, o dono da mercearia perguntou se queria mais alguma coisa, pois estava a fechar o estaminé. O dia caía calmamente e ele arrotava cerveja. Era altura para voltar ao Beco do Musgo.

IV

Passaram-se dez dias e a vida teria retornado ao seu incondicional tédio, não fosse o tilintar da campainha.  Nico arrastava-se sonolento em direcção da porta, sem dar conta de que já marcavam oito da noite, quando a sineta voltou a tocar. Irritado, abriu-a, mas despertou de vez.

Marilu olhava para os seus próprios sapatos, estava tensa. Tinha encenado muitas vezes nesse dia para esse momento, mas não controlava o seu nervosismo.

“Qué quieres?” – desferiu a voz com impaciência e agressividade.

“Vim…ah… Posso entrar?”

Atónito, esperava tudo menos isso e antes que lhe fechasse a porta na cara, convidava-a a entrar, sem ao certo saber porquê.

Ela sentou-se no sofá, ante um olhar julgador, que na verdade mais escondia incredulidade.

“Comprei uma coisa para si. Achei que iria gostar”.

Nico franziu a testa quando tirou o CD do embrulho. “Reliquias de Havana” lia-se na capa. Mirou e interrogou-a com um encolher de ombros.

“Eu…ah…muito obrigada… por… por ter … cuidado de mim. Teria ficado bem pior se o senhor não tivesse dado por mim.”

Nico sorveu o seu rum, pouco impressionado, continuou com os olhos fixos nela, sem nada dizer.

O silêncio colocou-a numa situação difícil de gerir, o seu coração acelerava de ritmo, num misto de vergonha e de arrojo. Estava aí, vulnerável, sentada diante de uma figura a quem devia a sua vida, em circunstâncias tão invulgares que não teria coragem para relatar, fosse a quem fosse.

Perdoe-me por ter saído assim de sua casa, sem lhe dizer nada. Não sou ingrata, mas não sabia como e o quê lhe dizer. Estava desesperada e fugir foi a primeira coisa que naquele momento me veio à cabeça” – Já rogava pragas a si mesma, por não terem sido essas as palavras que decorara.

Nico encolheu os ombros, não sabia o que dizer.

“Qué pretendes de mi?” – indagou enquanto dedilhava as bordas do CD.

Hesitou.

“Queria retribuir… Posso pagar, sei lá, mas também fazer qualquer coisa. Por exemplo arrumar a sua casa…” – ela mal continha o seu calafrio pela gafe cometida. Nico apenas fez uma careta de espanto.

“Pero, mi casa está mui bién, no necesito de nada más!”

Ela não sabia com que retorquir. Que mais lhe ocorreria dizer, nessa situação tão inacreditável, sem o risco de um mal-entendido?

Apenas dizer-lhe que … que…”

“Qué?”

“Apenas para lhe dizer que … nunca fui assim … tão bem tratada. Nunca ninguém se interessou por mim, que tivesse cuidado da minha saúde e da minha segurança.”

“Pero tú padre, madre…” – ela baixou os olhos e meneou a cabeça.

Na verdade, nos dois dias que passou em sua casa, o seu telemóvel não deu sinal de vida. O que animava essa espinafrada moça com dentuça aramada, nunca iria entender. Mas, percebeu que havia algo comum entre eles. Ambos viviam uma vida à margem da atenção de todos, cada um no seu gueto inexpugnável, construído de vivências, angústias, apelos sem resposta e gritos inaudíveis. Porém, enquanto ela ainda nova com resquícios da vã esperança pela melhoria da sua condição e ele já resignado do fado que se lhe traçara.

“No sé lo que más decir.”

“Não tem que dizer nada. Podemos ouvir o disco e…e depois vou-me embora, prometo! Isso…se… se não se importar, é claro!”

Ele suspirou fundo.

“Chica… Qué es lo que realmente quieres? No tengo nada para ti.”

Não respondeu logo. Baixou os olhos e fitou nas as suas mãos que se cruzaram.

“Não tenho mais nada que se chame … família.”

O silêncio instalou-se e assim se ouviram todas as notas de Paquito d’Rivera soprando”Cuando vuelva a tu lado” e de outros tantos que se lhe seguiram, sob os auspícios da Imaculada Conceição e de toda uma turma de estrelas da parede. Até ela se ir embora, não disseram palavra alguma. Talvez a calada fosse a língua comum, cruzando duas vidas tão distintas, num momento tão improvável.

E o bolero passou daí em diante a soar de modo diferente no Beco do Musgo. Deixou de ser uma mera nostalgia para se tornar em algo com razão de ser.

V

Três meses se passaram, de uma nova vida para Marilu. Todos os dias de todas as semanas, eram um sopro novo na sua vida monótona. Havia agora motivo de se estar, que alimentava um ânimo que jamais experimentara. Interrogara-se várias vezes, o que aquele velho amigo tinha de especial que lhe dava uma força estranha e tornava os seus dias mais diversificados. Até o sol lhe parecera mais amigo. Não poucas vezes, se surpreendia com o cantarolar que espontaneamente brotava da sua boca, ao ritmo da sua caminhada. Antecipava a alegria que adivinhava desfrutar na visita que iria fazer ao Beco do Musgo. Sem surpresa encontraria um Nico, parco em sorrisos, mas sempre pronto a contar mais uma peripécia. Inicialmente havia os “olá estou de passagem” mas rapidamente eles converteram-se em algo constante.

Ele contava-lhe histórias da sua meninice, das traquinices com os colegas da escola que frequentara pouco, os brinquedos que inventaram, os sonhos que fingiram realizar. Contava-lhe sobre as sessões da charanga da avó, a congada de Pablito, o guiro do velho Chano e como todos juntos acompanhando a voz cheia de alma de Consuelo, davam mel à vida do bairro mísero de Havana. Algumas vezes saía sem dizer para onde, no momento em que ela chegava. Ela ficaria em casa arrumando o que estaria fora do sítio.

A vizinhança coscuvilheira não tardou em apelidá-la de “afilhada do espanhol” , com evidente  tom de escárnio libidinoso. Um hispânico caquéctico e uma trinca-espinhas vesga e dentuça, um rico par de circo que alimentaria anedotas mais grosseiras que uma mente pecaminosa poderia abarcar. Mas, isto não lhe beliscava em nada, pois já se dera com nomes bem piores.

A visita regular tornou-se uma necessidade. Nico passou a ser a pessoa a quem podia contar tudo, sem receio de censura, a ser um ouvido para as suas façanhas. Contou-lhe a sua vida, a sua solidão, os seus desejos.

Não obstante, havia nele também momentos de melancolia. Menos efusivo, ele repousaria no vago ao sabor do rum. Reinaria então mais o silêncio, quebrado fugazmente por uma ou outra melodia latino-americana. Nesses dias, não conversavam. Ela lia e ele errava pelos pensamentos.

Num desses momentos Marilu perguntou-lhe:

Quem é a menina da fotografia?

Retorquiu com um trago súbito, que até pingos de rum salpicaram sobre a sua camisa. Seus olhos habitualmente ágeis tornaram-se inertes, denunciando o vão de uma vida ainda à procura de sentido.

Marilu esperou. Pressentiu que tocara numa cicatriz mal curada e, quiçá, a chave do quadro enigmático desse homem de tantas facetas e surpresas.

Esta es la última foto de Benita que he guardado. Mi hija tenía trés años. – disse, passados vinte minutos de mudez.

– Onde está ela?

– No sé. Nunca la he vuelto a ver.

– Chegou a procurá-la?

Nico sorriu, emborcou mais um gole e explicou a sua resignação com um encolher de ombros. Marilu não insistiu mais. O desalento estampava-se no rosto do idoso, cujos olhos trémulos dispensavam palavras. Ela então decidiu que seria só ele quem voltaria a falar sobre a Benita.

Nessa noite, a conversa acabou cedo, Nico até adormeceu no sofá. Marilu cobriu-o com uma manta e antes de sair desligou todas as luzes que ela ajudou a montar, e eram tantas nessa noite.

VI

“Porqué no tienes un namorado? Estás perdiendo tiempo aqui, no?” perguntou o cubano, numa noite depois do jantar.

“ Porquê? Queres livrar-te de mim?” – gargalhou Marilu, enquanto lavava a loiça.

“Una chica con tu edad debia namorar, no?”

“Nico por favor, quem me quererá? Acorda!”

“Ah io te quiero! Pero tengo edad para ser tu padre! No seria apropriado”.

“Haha, tu és bom para mim, mas eu sei que Deus tem outras ideias. Umas pessoas nasceram para namorar e têm uma sorte bestial, outras podem esperar até morrer… sozinhos”.

“Como io…”

“Oh Nico…”

“Tus clases de baile… nunca más has hablado dellas.”

Desta vez a ferida abriu-se.

Desisti. Telefonei ao Mister Hung para cancelar a minha inscrição”

“Porqué?”

“Nico… sempre julguei que podia dançar. Mas afinal isso não é para mim”.

“Disparate! Voy a hablar con el señor Hung…”

“Nico olha bem para mim!” Ria-se, mas a mágoa transparecia. “Não consigo ver-me ao espelho. O que uma pata pesada pode fazer numa pista de dança? Fiquei farta… enojada” – lembrara-se da noite do seu último aniversário.

Nico não disse nada, respirou e dirigiu-se para a sala e pôs música.

Venga chica”.

“Nico, por favor não, amanhã trabalho e vou já para casa…”

“Callate. Acércate de mi”.

Marilu fazia cara de quem já adivinhara tudo o que viria a seguir. Não quis contrariá-lo, mas fez um trejeito de enfado.

Mírame a mí! No digas nada para lo que voy a hacer.”

Ela cumpriu, fixando os seus olhos nos dele. Intensamente. Apontou o seu dedo na boca dela.

Sácate eso de tu bóca.” Ela fitou-o nos olhos com espanto, ia protestar mas ele limitou-se a acenar a cabeça suavemente, insistindo no que pedira. Depois de ela ter removido o aramado da sua boca, manteve-se imóvel à espera do próximo passo de Nico. Este passou para trás dela e soltou o seu rabicho. As suas mãos rugosas seguraram depois nos débeis ombros da atordoada Marilu, e forçou que as suas costas ficassem rectas, projectando o seu liso peito para frente.

Seguidamente ela sentiu os seus rugosos dedos retirarem os seus pesados óculos. Nico virou para trás e apontou para o pé do sofá a sete metros de distância. Marilu seguiu o dedo indicador e olhou.

Nico fez-lhe então sinal para manter o ângulo da sua cabeça e voltou à frente dela.

Chica, ahora mírame en mis ojos. Escucha la canción”.

As suas faces ruborizaram e sentiu-se nua de todos os objectos que a ocultavam do mundo, que a protegiam de qualquer escárnio e censura. Mas a sensação de leveza atingia rapidamente o seu imo, nada pesava naquele momento, e pela primeira vez experimentou o seu próprio ser, que por tantos anos a inanidade do seu meio tratou de ofuscar.

“Sin ti…no podré vivir jamás… y pensar que nunca más … estarás junto a mi…” (10)

Instintivamente o corpo de Marilu se embalava ao ritmo dos Panchos. Enquanto Nico segurava firmemente os seus ombros, as suas ancas meneavam lentamente. E subitamente algo atravessou pela sua espinha acima, ela fechou os olhos e contorceu-se. Voltou a mirar Nico, agora ousada, mais ela. E lia os seus pensamentos.

 

Sin ti … No hay clemencia en mi dolor … La esperanza de mi amor … Te la llevas al fin…”

Não o percas de vista, porque é ao teu domínio e sedução que o homem se submeterá. Ele é a tua presa e tu, a razão da masculinidade que ele quer manifestar dentro de ti. Mas disso ele ainda não sabe e é essa a magia do teu domínio. Bolero é carne e beleza sublime. Bolero és tu, mulher.

“Sin ti… Es inútil vivir… Como inútil será… El quererte olvidar… “

Era áspera a sua palma, quando segurou na sua débil mão esquerda. A outra mão, pousou-a a meio das suas costas e conduziu-a. Marilu deixou-se levar, ignorando o domínio que Nico lhe atribuía, apertou-se junto desse homem que lhe dava um sentido tão diferente de se sentir mulher.

E ele murmurava para o ouvido dela “chi…ca….pom-pom… chi…ca…”, marcando o compasso “lon-go… curto-curto… lon-go…” do mais básico do bolero.

Para Nico, era estranho ver o seu corpo junto de uma mulher, que podia ser a sua filha, levando-a até onde as emoções o permitiam fazer. Força desconhecida essa que o fazia mover e pela primeira vez, sem Benita, sem Pilar, Johnny, avó Consuelo, La Tropicana, jagunços, noite, e tantos outros fantasmas que sempre o acompanharam. Todavia, na sua mente corria a imagem duma criança num descampado em terra batida que ele conhecia bem. Era Niquito que acabara de receber da avó um papagaio de papel, quando fez oito anos.  Como estava feliz nesse dia. Ele aí sorriu largamente, como também havia muitos anos que não fazia.

Nessa noite, quando ela chegou à casa, não foi rente ao chuveiro. Parou antes diante do seu espelho vertical e desnudou-se. Voltou a tirar os óculos. Inclinou a sua cabeça ligeiramente para baixo e olhou-se. Sorriu e, mantendo estáveis os seus ombros, as ancas voltaram a menear, quando a sua mente reproduzia uma melodia.

 “Chi…ca… Pom-pom…. Chi…ca… Pom-pom…” – riu-se desbragadamente.

Admirava agora o que via ao espelho. Uma magriça de pele alva, cabelos escuros soltos, pequenos seios, ancas pouco salientes, agora porém, de olhar penetrante, desafiadora, que se movia com a ousadia de quem ganhou algo e para sempre. Marilu continuava a não primar em beleza, mas achou em si a mulher que a leveza da liberdade lhe trouxe essa noite. Não tinha ainda plena consciência de que tudo mudara nela, mas achou belo o que vira no espelho. Queria reter aquele bocado de felicidade. Era real e era disso que andara à espera, vida toda.

Nessa noite, não dormiu. A sua cama, transformou-se antes em recinto onde concentrara toda a roupa “apropriada”, para ser jogada fora ou doada. Com ela seguiriam pares de sapatos comprados por mera conveniência. Num ápice, esvaziou o guarda-fato. Todos os quadros com frases inspiradoras foram para o lixo, assim como aí pararam os livros de auto-ajuda. Quem se encontra e se aceita, não precisa de modelos, nem paradigmas de felicidade. Os santos também saíram da parede. Quem tem fé, não precisa de mais estímulo divino. Por fim, lançou para o cesto de descartáveis o seu aparelho dentário. Que aturem a minha dentuça, bradou para si!

Na manhã seguinte, passou pelo Cheok Chai Un(11) e parou na tenda do chu-cheong fan(12) e pediu a dose grande. A dona do estaminé, Chan Si Lai, não a reconheceu no início, nem ela a cumprimentou logo. Aí estava nervosa, sem saber da reacção dos seus conhecidos. Mas, rapidamente a dona desfez-se em alarido.

“Menina! És tu! Oh como estás diferente!  Quando foi a última vez que vieste? Há dois dias!…”

Marilu estava agora à espera da sua sentença. A Chan Si Lai, uma bela mulher dos seus quarenta anos, era conhecida na vizinhança pelo seu deslinguado. Não fosse ela exímia na sua arte de preparar uma bela massa enrolada, já teria a sua tenda ido para o fogo, pela ira que causara a alguns incautos.

Estás linda…a sério, sem óculos, cabelos soltos. Eras tão acanhada, o que te deu?”. As suas faces coraram, mas não disse nada, esboçou apenas um sorriso. “Ah, já entendi, agora és mulher! Já era sem tempo! Ouve, nós as mulheres também temos que gozar. E ele é bonito?”. Marilu declinou mais uma vez a responder. Chan Si Lai, encolheu os ombros e o seu sábio sorriso não se fez esperar “Pela tua cara, sei que tiveste uma noite bem trabalhada. Hehe… hoje não pagas nada. És mulher! Ha-ha-ha!”

Marilu não sabia o que lhe dizer, pois ela não entenderia. No entanto, passou pelo seu remoque e teve a certeza de que fora aprovada no exame. Quantos crivos mais teria de passar, não lhe interessava no momento. Queria desfrutar a sua despreocupação o melhor possível. E desceu pela Rua do Campo abaixo. A sua miopia pesava no passeio, mas sabia bem andar em plena rua sem o peso nos olhos. Passou pelas vitrinas, por onde podia ver-se. E todas as vezes que aí via uma figura magricela encurvada, endireitava as suas costas, puxava os seus ombros para trás, enquanto retesava o seu peito. Deu-se depois a olhar o espelho da vitrina do lado para onde atravessaria, abrandou a marcha só para divisar como andava. Pela primeira vez observara com acuidade, o passo de outras mulheres e imitou. Chegou à porta do edifício do seu serviço. Respirou fundo, mais um grande exame à vista.

Chegou à casa no fim do dia. Por várias vezes quis direccionar-se ao Beco do Musgo, mas hesitou. Sentiu que precisava de mais um tempo para se preparar para o grande momento. Observou novamente pelo espelho  a menina em plena transformação. O seu novo penteado menos volumoso, a sua camisa branca comprida de seda, ganga azul ajustada às suas ancas e pernas alongadas. O único óbice eram os olhos avermelhados por ainda não se terem habituado às lentes de contacto. Mesmo assim sorriu, para se assustar depois: no dia anterior, era outra a pessoa que aparecia no reflexo e que sempre a acompanhara.

Na cama pensou em Nico e o coração bateu forte. Era a barreira mais importante que tinha de ultrapassar.

VII

“Ah-Ngao, isto não melhorou.” (13)

Nico escutava mudo o diagnóstico do mestre-china(14) Lam Tat Cho que estudava a palpitação do seu pulso com os seus argutos dedos. Não que falasse muito chinês, mas foi o mesmo sujeito quem o livrara de muitas mazelas do passado, curara-o de reumatismos, gripes, espinhela caída, eczemas, diarreias e cólicas, de quem aprendeu os curativos mais básicos para se cuidar quando for necessário. Como um cubano se pôde dar com um chinês, numa língua que é apenas franca para ambos, só o milagre de Macau pode explicar. O certo é que aquele nunca mais confiara na medicina dos hospitais. Não havia bisturí, nem estetoscópio mais certeiro que o dedilhar do curandeiro.

“E agora?

“Quanto tempo queres viver, toureiro?”

Boa pergunta. Havia dias em que queria despertar em algo etéreo, porém noutros sentia haver ainda algo por fazer e que por isso ainda não era hora de partir. Estava nessa última situação, achou.

“Por ora não quero pensar nisso”. Mas pensou em Marilu que já não vira havia quase uma semana.

“Pois, entendo.”

O mestre-china sempre sereno e impávido, com quem Nico nunca conseguira ter o que pudesse designar-se por conversa, pegou no seu pincel rabiscou a receita numa artística caligrafia. Olhou Nico nos olhos e pela primeira vez denunciou reserva.

“Toureiro, o que te receito é coisa mais forte do que o habitual, vais precisar dele. Não gosto da tua cara, mas enquanto a tua urina não escurecer, está tudo controlado. ”

Mas eu… mou-chin(16)!”

O mestre Lam sorriu, como também raramente fazia. “Não te preocupes. O teu coração é bom e tens ainda algo inacabado, disso o mestre Lam sabe.”

Não entendeu essa última frase, que mais lhe soou a uma despedida. Mais uma.

De facto, já esteve noutras situações parecidas, em que a vida lhe corria sobre um fio.

A caminho da farmácia onde iria buscar as ervas medicinais, lembrou-se dos dias seguintes à conversa que teve com Johnny Arroyo. Estava-se perto de Natal, o céu nublava-se a condizer com o rosto dos transeuntes e do norte soprava o vento hibernal da época, relativamente seco, mas ainda suficientemente húmido para levar o frio até os ossos.

Fez uma lista de visitas a fazer, mas as portas fecharam-se-lhe tão rapidamente como a queda das pedras do dominó. Os tais amigos da noite e de peito despacharam-no a eito, jurando a pés juntos nunca na vida o terem conhecido, que ele não passava de um impostor e que merecia, era, uma surra das grandes. Não conseguia andar com a destreza de outrora, mas mantinha a sua bela figura, embora o desmazelo tenha já tomado conta do seu penteado e da indumentária. Não tinha, na verdade, condições para estar melhor, sobretudo quando foi ter com Maggie, a abastada filha de um magnata da marinha mercante, a oferecer-lhe serviço como tantas vezes fizera no passado, de quem recebera tanta prenda e nota. De todas, Maggie era a que mais o adorara, tanto foi o prazer que o touro lhe dera que até rogava por mais. Não se importaria, decerto, com a sua apresentação. Pelo menos, foi essa a ideia com que galgara a subida pela Mid-Levels. Abriu-lhe, então, a porta um sujeito de feições asiáticas, possante, musculoso e sorumbático. Nos outros tempos, ele exigiria uma explicação, mas agora era ele quem teria de explicar a razão da visita.

“Quem é?” ouvia-se a voz dengosa da Maggie do interior.

“Um camafeu que pergunta pela senhora. Quer que corra com ele?”

Maggie apareceu em robe de inverno a cobrir a sua nudez e hesitou quando o viu. Nico avançou logo à primeira oportunidade, abraçando a antiga amante como se nada tivesse acontecido na sua vida, ignorando o mastodonte aparentemente enciumado.

“Oh meu coraçãozinho, como preciso de ti. Sinto-me tão desamparado e indefeso sem ti. Tenho pensado nos dias em que passaremos nas Caraíbas…”

Nicky…” ela interrompeu-o afastando-se dos seus abusivos lábios. Era visível a sua repulsa, contra o intenso odor corporal do cubano.“As coisas já mudaram. Esse jogo de eu ser a boneca a teu mando já terminou. Já encontrei um novo companheiro, lamento. Vamos já resolver isso, duma vez por todas”. Fez sinal ao seu empregado para lhe trazer a carteira.

Cinquenta dólares de Hong Kong, uma bofetada e mais sevícias, foram com que descera até Central, sem noção donde seria o seu poiso para o resto do dia. E a fome, essa inoportuna companheira da desgraça, não tardaria a acotovelá-lo. A caminhada foi-lhe particularmente penosa, com o seu pé amordaçado, obrigando-o a repousar, para depois seguir o seu trilho com destino sempre adiado. Todavia, acordou com dois indivíduos a vasculharem os seus bolsos. Nico ainda tentou debalde segurar o dinheiro. Levou dois murros que o pôs prono no chão. Um deles até soltou os atacadores dos seus sapatos, arrancando-os dos seus pés.

Nos dias seguintes passara por tudo, embrulhando os seus pés com saco de plástico, atando-os com qualquer corda ou guita que pudesse encontrar pelo caminho. Doíam-lhe sobremaneira, de tanto andar e de tanto ser corrido dos sítios já ocupados por outros da mesma condição. Era miséria que encontrara nesse submundo da fausta cidade, onde cada canto era uma cama e tudo que andasse sobre quatro patas era comestível. O impensável duma dita auto-suficiente cidade ocorria-lhe à vista, onde vivia gente à margem de qualquer noção de dignidade humana. Bem mais feliz era o tempo da pobreza extrema em Havana, onde o povo, ao menos, se divertia à custa da própria desgraça, alimentando-se da música e dos ritmos fortes, ofuscando o cru de uma vida sem futuro. Bem mais triste era ser invisível, numa cidade onde o cimento se confundia com o lúgubre estampado nos rostos dos indigentes.

O que estava mais à espera, dizia para si, junto de uma das docas de North Point. Lembrou-se de Benita nessa hora que pressentia ser de despedida. Teria tanto para lhe dar e contar, encher-lhe-ia de conselhos, seria o seu confidente. Mimá-la-ia com tantas prendas de Natal ou de outras ocasiões. Dançaria com ela, faria dela a melhor bailarina da turma para a inveja das suas colegas. Seria um Pai.

Porém o seu coração arrefeceu de seguida e seus olhos semi-cerraram. Benita não quereria um trapo humano como pai, não mereceria a infâmia que ele lhe causara, nem a vergonha com que teria de crescer. Não, ela teria de ter um curso de vida sem ele. Resignou-se e apagou-se-lhe, então, a luz. O seu pé daria o último passo para o gélido mar de Dezembro.

“Isso não. E se Benita não se importasse com a tua desgraça e viesse um dia à tua procura? E porque não esperar por esse dia?”  Era a voz da sua consciência, como se tivesse ganho vida própria naquele derradeiro segundo, para reclamar a sua própria sobrevivência. Ele agachou-se e se encolheu como uma concha e chorou. Sabia que tudo não passava de falta de coragem para pôr fim à sua própria existência. Quer ele morra naquele momento, quer viva como um leproso pelo resto da sua vida, não haveria retorno. Benita não voltaria. Desfaleceu.

Acordou no leito de um centro missionário católico de solidariedade a desabrigados, trazido por uns estivadores da doca. Aí permaneceu durante dois meses, onde se recuperou em toda a sua extensão. O centro não tinha condições para o albergar por tempo indeterminado, quando ele manifestou o interesse em apoiar a acção social a troco apenas de comida e dormida. Nisso, alguém sugeriu-lhe que fosse a Macau para prestar auxílio a um grupo de jesuítas espanhóis, no apoio aos refugiados vietnamitas.

 

A campainha tocou e Nico mal se recompunha das suas recordações. Arrastou-se até à porta e quando abriu-a deu um pulo de espanto.

Marilu encolheu-se embaraçada.

“Estou …mesmo horrível, não estou?”

“Caramba …!” Viu uma moça delgada de cabelos soltos mais curtos, mas finos, sem óculos, nem dentuça, de camisa branca, desabotoada por onde se divisava uma peça ajustada cobrindo os seus seios pequenos, de saia acima dos joelhos, calçando saltos médios. Diante de si estava uma moça tímida, mas descomprometida do seu passado, pronta para uma nova vida.

 “Qué bella!”. Sorriu genuinamente.

Marilu respirou de alívio e apenas apertou-o nos seus braços. Não lhe interessava as considerações que outros lhe teceriam sobre o seu novo visual. O importante era que Nico a aprovasse e aceitasse a nova Marilu que emergia dentro de si. Muitas vezes interrogava se amava esse homem. A resposta era sempre positiva. Mas, escutava também o que a sua voz “de anjo” lhe segredava. Ela lhe contava como Nico se situaria numa dimensão bem acima da de um mero amante. Era isso que alimentava a sua devoção por essa estranha pessoa, escutando-o e confiando-lhe o seu impenetrável mundo de anseios, esperanças e desejos, desnudando-se de preconceitos que a atormentaram toda a sua vida.

O jantar que houve nessa noite pareceu no início ser entre pessoas que mal se conheciam, mas com suficiente empatia de se darem bem num ápice. Não obstante, Nico não falar muito de si, Marilu contou tudo o que se passou durante a semana, a reacção das pessoas, dos vizinhos, dos colegas quando a viram. Riram-se muito, partilharam o rum e até ela sorveu um trago da cigarrilha.

“Ensina-me, Nico”, desafiou-o por fim.

Ele sorriu e concordou. Nos dias e meses que se seguiram, passaram, pela rumba, pelo samba, merengue,  son, calipso. Marilu experimentava a sensualidade à flor da pele. Vira que afinal os grandes movimentos e as coreografias do Mr. Hung não faziam sentido. Compreendera que a dança não tinha de se sobrepor à música, porque ambas são faces da mesma moeda, assim como o é o vinho e as delícias da boa mesa. Sentir a música e exprimi-la através do seu corpo, amparando-se no seu homem que a corteje a cada passo, seria a isso que apelaria toda a dança. Bolero era isso tudo.

Ao concentrar-se na sua pupila, Nico renascia paulatinamente. A postura do corpo, o alinhamento dos ombros, a flexibilidade das ancas, a leveza de cada passo em contraste com o contrapasso, acima de tudo a capacidade de se moldar ao movimento do seu par, eram lições que exigiam de Marilu uma incondicional atenção, e dele uma revivência dum passado enclausurado nas profundezas da sua memória.

Apesar da fraqueza de um dos pés, Nico recuperava lentamente a destreza que o caracterizara nos tempos áureos, animado pelo prazer que tinha o condão de criar. Gradualmente, voltava a sentir algo havia muito arredado das suas sensações, o touro, agora amadurecido e não obstante, a querer desenvencilhar-se do grilhão com que ele próprio o prendera. Inquietante este pensamento, não fosse o resquício da charanga da avó Consuelo que também começava a entoar no tardoz da sua consciência.

Cuando estoy entre tus brazos corazón … Me quema la pasión y el fuego de tu piel… “ (16)

A sua mão direita posicionava-se a meio da coluna de Marilu, os dedos pressionavam-na consoante as nuances do ritmo, enquanto ele gingava suavemente, levando-a a rodopiar. De olhos cerrados ela inebriava-se com esse carrossel, segurando-se nele, sem se importar com o tempo. Sentia a segurança e a confiança nesse homem que passou a ser a sua referência.

“…Déjame quererte con ternura adolescente para poder concebir …”

Ela abriu de seguida os olhos e mirou Nico pela forma como foi ensinada. Este então sentiu as mãos delgadas da pupila a corresponder a pressão dos seus dedos masculinos. Puxava agora por ele, incitava-o a mais, pelo instinto que a dança atiçava no seu magro corpo, o feitiço do bolero que a soltara dos demónios que a amedrontaram no passado.

“… Quiero estar bajo el embrujo de tus besos y en tus labios conocer… “

Movia-se agora livremente dentro do compasso, criando pormenores, coreografando a sua dança, deixando Nico surpreendido com o seu serpenteio que adquirira num espaço de tempo tão curto. E naturalmente os papéis inverteram-se: ela passou a comandar a dança, desafiando o seu touro, provocando mais arrojo nele, mais sangue nas suas entranhas, mais desejo de posse, a que ela só corresponderia, como e quando quisesse. Nico viu nisso nela, excitou-se e sorriu. Agora sim, ela dançava. Apertou-a mais junto do seu também renovado corpo, moveram-se em todo o espaço que a sala permitia, como que num único corpo, com um único propósito, o de acenderem em cada um, uma chama, há muito arredada da vida dele, mas fundamental para que a dela fizesse sentido. A paixão de querer, de possuir e de fazer.

Por fim, suportando o leve corpo da pupila com a mão no seu dorso, inclina-se sobre ela. Ele lia o seu desejo e sabia que bastava um pequeno gesto para se consumar o que a lascívia lhes trazia. Porém, não era isso que ele pretendia, não queria ser causador de algo, cuja consistência não estava em condições de garantir. Não iria comprometer um futuro desta inocente moça que medrava em beleza e se fortalecia como pessoa. Queria sim transmitir-lhe algo, deixar-lhe algo com sentido de decência. Algo que não lograria fazer com Benita.

Ele inclinou-se e beijou-a na testa.

Marilu esboçou um sorriso. Também leu algo no rosto magro de Nico, vincado pela angústia de muitos anos. Entendeu que o desejo por ele teria de ser mais do que o estímulo carnal pudesse causar. Ele transcendia  o simples homem com quem poderia partilhar uma cama. Ela iria encontrar muitos homens na sua vida, casaria quantas vezes que entendesse, mas voltaria sempre junto de Nico. Cerrou os olhos e aconchegou-se nos braços do touro, dormitou com a segurança que se deve ter num berço.

“Como fué… no sé decirte como fué …”.

IX

A brisa húmida soprava essa manhã do início de Setembro, trazendo um trecho de temperatura amena para suavizar o calor típico dessa altura do ano. Era o prenúncio de mudança de estação, as libelinhas já pairavam no ar, anunciando o começo das aulas, pondo os garotos aprumados com novos uniformes e malas. O dia começou bem cedo no Beco do Musgo. Nico já estava acordado e apreensivo. Queria que o dia fosse como o planeado e que nada o fizesse mudar de ideias. Faltou à consulta ao mestre Lam, não queria que este dissesse algo que o desencorajasse para o que vinha a cogitar nos dias anteriores.

Marcavam um pouco mais de nove horas e ele sairia, mas deu com a Marilu à porta. Tinha uma folga e resolveu aproveitá-la, fazendo a visita de costume.

“Bom dia, vais para algum lado?”

Ele acenou a cabeça, diante dos olhos perscrutantes da pupila.

“E… posso saber aonde?”

“Voy a Hong Kong.”

Ela não quis insistir nas razões da ida, como instintivamente se aconselhara.

“Que tal eu ir também?”

“Muy bien… se así quieres!”. Não planeara ir com ninguém, mas também não queria contrária-la. No fundo seria uma boa ideia ela ir também com ele, podendo com ela partilhar os estados de alma.

O silêncio reinou a viagem, sem ela saber ao certo qual o itinerário do passeio, embora já o pressentisse. Sem surpresa o metro parou na estação de Wanchai. Consultou o mapa e deambularam pelas ruas adentro. E pararam diante dum centro comercial. Nico olhou à sua volta para se certificar do sítio.

“Tens a certeza de que este é o sítio que procuras?”

Confirmou.

“Antigamente, éso era La Tropicana, dónde io era uno dançante muy importante!”. Embora o recinto se tenha convertido em algo completamente diferente da sua origem os traços se mantiveram. Onde era o acesso aos elevadores, transformaram-se em armazém de artigos. Reconheceu o lugar onde teria sido o palco, na zona onde passou a ser a loja da bijutaria e a imensa e fausta pista de dança deu lugar a vários corredores com inúmeras lojas de tamanho diminuto, de comércio variado, desde cosméticos, brinquedos sexuais a cabeleiras falsas. Nico ria-se, lembrando-se das suas fãs, no auge da sua carreira, da grande banda de Johnny Arroyo e os exímios dançarinos da plateia, que exibiam a sua arte durante os intervalos dos Rumbéros. Ria-se também, lembrando-se das escapadelas com algumas das fãs que o namoravam por trás do palco. Descreveu a Marilu todo o velho recinto com todos os pormenores de que pudesse lembrar.

Ao voltar para o exterior do edifício, ficou mais taciturno, quando lhe veio à memória a última conversa com Johnny. O sentimento de culpa ardia-lhe o peito, ao recordar a mão que este lhe dera em Miami, a protecção que lhe assistia e toda uma projecção para ribalta que lhe proporcionara. Johnny não merecia o que ele lhe tinha feito. Marilu limitou-se a observá-lo a fechar os olhos e a rezar.

Depois de ter feito uma ligeira vénia, prosseguiu o seu caminho, com Marilu no encalço. Andaram cerca de quinze minutos e depararam-se com um prédio habitacional, de uma decrepitude evidente, a acusar falta de pintura, sujidade generalizada, residentes com um aspecto duvidoso. Marilu tentou debalde demovê-lo do intento de nele entrar, para depois subir com ele ao oitavo piso, num elevador imundo, com escarro no chão e odor nauseabundo.

“Nico, porque estamos aqui?

Desta vez Nico não retorquiu. Absorto nos seus pensamentos e ante a impossibilidade de entrar em nenhum dos apartamentos, virou-se em direcção a um deles e ajoelhou-se para o pasmo de Marilu. Baixou a cabeça e aí se manteve durante um minuto, antes de dizer algo.

“Perdónenme, ustedes… perdónenme!”

Marilu, então, entendeu porquê se encontraram nesses locais, afagou-lhe as costas enquanto ele murmurava palavras inaudíveis. Por sorte, ninguém saiu das respectivas casas, caso em que não só se frustraria o seu propósito, como teria de se lhe dar uma explicação incómoda. Para Nico, era indiferente que alguém se sentisse importunado, pois estava aí para ficar o tempo que fosse necessário. A sua mente era um carrossel de imagens que se rodavam ininterruptamente. Mas, todas se fixavam em Benita, a menina de cabelos encaracolados e de covinhas pronunciadas. A menina que perdera por um seu devaneio carnal. Soubesse ela da saudade doentia que tinha dela.

Na volta a Macau, também a calada imperou. Contudo, Nico quis quebra-la.

“Perdóname también, Marilu”.

“Tinhas que vir um dia e fazer o que fizeste, Nico, não tens que te lamentar”.

“Estoy en paz, chica. Ahora, puedo retornar a casa. Muchas gracias, Marilu”.

Ela encostou a sua cabeça no seu ombro e embalou-se no sono até chegarem ao Porto Exterior, enquanto o escarlate do céu acompanhava a descida do sol por trás da montanha.

A ida a Hong Kong tornou Nico mais feliz e jovial, como que tivesse libertado de si um grande fardo. Estava sempre pronto para onde ela lhe sugerisse fossem. Até por várias vezes acompanhara-a às aulas do Mister Hung, o qual, consciente da melhor técnica que a sua pretensa aluna adquirira, decerto não dele, nomeou-a sua assistente, com a função de demonstrar aos outros alunos os passos de dança, talvez a forma mais inteligente de poupar a sua autoridade de professor de dança.

Nico observava de longe com orgulho e admiração a sua pupila, agora exímia executante da rumba, do cha-cha-cha e do calipso, tão diferente daquela desgraçada que encontrara deitada na rua, um ano atrás. Era agora uma mulher com voz própria e sonante, mais espontânea. Era por isso, bela. Uma vez, por insistência dela, ele viu-se no embaraço de pisar o centro do salão, onde dançou com ela. Se no início recusara dar um único passo, música acabara por o seduzir o suficiente para a conduzir, numa rumba para o deleite de todos. Ressabia-lhe os tempos mágicos de La Tropicana, em que dançava para uma plateia de admiradoras, estava delirado. Havia muito que não sentia tanto sossego e paz, esquecendo-se de tudo o que vinha adiando.

Lembrou-se de que estava perto o dia dos seus anos, que coincidia com a de Benita. Porém, recordou também que tinha o encontro com o seu mestre-china no dia seguinte.

“Ah-Ngao, isto está mau”, a voz do mestre-china não deixava dúvida.

A sua cara já vinha adquirindo uma tonalidade acinzentada, amarelada. A sua urina um tom acastanhado, ele estava mais magro. Por mais que Marilu lhe perguntasse, respondia-lhe sempre que estava bem e se sentia robusto. Na realidade, porém, tossia com mais frequência, as dores de barriga tornaram-se mais frequentes.

“Preciso de mais tempo…” avançou ele ante a reserva mais pesada do mestre-china. Contudo este não respondeu logo, ademais, que mais poderia dizer?

“Meus amigo… o que tinhas por realizar já o fizeste, segundo me contaste. Para nós chineses, o favor divino já te foi concedido, pois nem todos podem partir com o trabalho feito. Não é correcto pretender mais”.

“Eu preciso de passar os anos dela … com dignidade”.

“Ngao… Ela não é a tua mulher, nem tua amante, por quê te importas?”

Nico ficou mudo, mas a súplica no seu amarelado olhar falou mais alto.

O mestre Lam Tat Cho foi perspicaz. Não sendo uma coisa, nem outra, a menina tornara a vida do cubano, macerada de culpa e de angústia, em algo renascido. Há valores que justificam levar a vida até o extremo, ainda que fossem  incompreensíveis até para os deuses. Ele faria tudo para estar em condições nesse dia. O mestre também, se estivesse no lugar dele.

“Muito bem, como deves saber, a tua hora chegará quando menos esperares”, rabiscava o curandeiro a receita da sua medicação.

“Há muito que ando à espera desse dia”.

“Isso é mentira que todos contam, quando lhes falta coragem para encarar o seu fim”. sorriu o mestre Lam, consciente de que aquela seria a sua última sessão.

E que te importa, nisso tudo?”

“A inocência da moça que acredita na tua imortalidade!”


Camisa com motivos floreados, calças de cor beige, sapatos a preto e branco impecavelmente engraxados e suspensórios. Esse era dia de festa e, mais um ano,  Nico iria celebrá-lo como todos os anos fazia, desta vez com algo muito real.

Escolhera o restaurante onde houvesse música ao vivo. E havia um em que tocava um trio filipino músicas dos Trio Los Panchos e outros agrupamentos mexicanos. O responsável do restaurante perguntou se precisava de preparar algo especial, ao que respondera que precisava apenas de um bolo de anos, champanha e vinho.

A ocasião reuniu todos os pormenores como bela estava Marilu, vestida de um conjunto branco de blusa com alça fina e saia curta com folho, sapatos altos pretos luzidios, pendente fino com cruz de prata. Os saltos imprimiam um andar mais lento, que por sua vez denunciava um corpo frágil mas segura. Essa confiança conferia-lhe elegância e sedução. Ele riu-se de vaidade sabendo que fora responsável por essa sublime transformação.

“Hoy mi playa se viste de amargura … Porque tu barca tiene que partir…”(17)

O trio filipino esmerou-se de paixão nesse bolero de Roberto Cantoral, convencidos de que cantavam para dois namorados, embora fosse evidente a diferença de idade. Nico fez a vénia e deu-lhe a mão. Marilu aceitou-a, deixando-o iniciar a dança, como tão bem ela aprendera. O seu esguio corpo de sereia e as mãos de dedos longos roçavam-se no ainda másculo corpo do touro, os pés pareciam mais pequenos e eram agora de pena que deslizavam sobre o chão como se não o tocassem, acompanhavam com mestria as voltas e rodopios que ele lhe induzia. Mas nada disso valia, não fizessem os olhos parte desta cumplicidade. Bolero era ela e ele apenas a tornava mais mulher.

Ouviram-se palmas quando voltaram ao seu lugar. Marilu sabia que estava admirável essa noite.

“Tengo un regalo para ti”.

“Ui, que noite maravilhosa, há jantar, champanhe, vinho, dança e presente!”, aplaudiu levemente, segurando o pequeno embrulho contendo algo fôfo.

Nico atentava com expectativa a reacção da pupila. Com cuidado, Marilu abriu o embrulho sem o rasgar e viu uma boneca branquinha. Os olhos eram de vidro, lábios vermelhos, a boneca foi obra ele.

“No sabia lo que querías y…”

“Não queria nada, estar contigo aqui já é um grande presente”. Marilu apertou a bonequinha contra seu peito e sorriu largamente, sabendo do significado disso. Os seus olhos humedeceram.

Muito obrigada por esta noite, Nico”.

La cena está magnifica”.

Marilu manteve-se calada por uns segundos.

Não é deste jantar, Nico. Falo de ti, do que fizeste por mim, do que ainda fazes. Salvaste-me e deste-me a dignidade de ser como devo ser”. Nico retorquiu com o seu sorriso. “Sei do esforço que fazes por esta noite”, continuou.

Nico olhou-a com algum espanto.

Não queria vir” prosseguiu Marilu “pois sei que não estás bem. A tua cara, tua pele e teu olhar, não me enganam”.

“Qué estás hablando, mujer?”, brincou.

“Nico … o sr. Lam Tat Cho, também o conheci”.

Ficou hirto, enquanto ela prosseguia.

 “Numa das escondidas que me fazias, segui-te sem saberes e foste para o seu consultório. E foste várias vezes nestes últimos tempos. Estou a par da tua situação. Tenho poucos amigos, mas ainda falo com alguém no hospital. Sei da doença que tens há muitos anos e não há meio de a tratar. Falei com o médico que esteve com o teu processo. Chorei muito, fiquei muito revoltada por não quereres saber de ti, mas tive que manter a minha cara de serena. Não é fácil, quando sei … que é terminal. Toda a minha vida foi um mar de incertezas, de auto-flagelo, mas recriaste a minha coragem de ser eu própria, de me encarar e de ter a ousadia de dizer estas coisas. Esta noite não devia eu estar a celebrar coisa alguma, quando sei que … quando sei que não te terei outra vez. Mas, mais do que isto sei que este dia é importante para ti. Irias celebrá-lo ainda que estivesses paralisado.

“Chica, basta… hoy no és para hablar de cosas tristes …”

“Não são. Estou feliz por esta noite e sei que estás também. Hoje é dia da Benita, soubesse ela quanto gostarias de dançar com ela, como toda a tua vida sonhaste. Não calculas a inveja que tenho dela e quero viver o que ela nunca viverá! Viver o significado que tudo isso tem para ti. Tenho aprendido a ser indiferente ao porvir e viver todos os dias. Em cada um vi coisas lindas contigo, e hoje é provavelmente o mais feliz da minha vida”, pegou na mão de Nico e sorriu “Não são coisas tristes”.

No tengo nada para ti, pero nadie me trató como tu. Qué és lo que vês en mi, chica?”

“Um homem bom, Nico. Um homem muito bom”.

Ela levantou-se e puxou-o para a dança. Ele apertou-a nos seus braços e não se mexeu, enquanto a música continuava.

Cuando vuelva a tu lado… no me niegues tu besos…”

 

A saúde piorava de dia para dia. O apetite, os prazeres do charuto e  do rum esvaíam-se com o peso e o tom amarelado da sua pele acentuou-se. A tosse e as convulsões passaram a ser gradualmente mais frequentes, e a partir do dia em que o sabor a sangue tornou-se evidente, tornaram-se dolorosas, violentas.

Marilu chamou uma ambulância, um dia quando chegou à casa do Beco do Musgo, e deu por Nico caído no chão da casa de banho com a sanita de vermelho.

O Dr. Mendonça não ficou surpreendido quando voltou a ver o seu velho doente anos após ter desistido dos cuidados do hospital.  Foi peremptório em pouco se poder fazer, perante um historial feio que se vinha a agravar nos últimos tempos. O cancro do fígado que avançava, provocara varizes esofágicas e metastizara. O máximo que se podia alcançar era constatar o estado da doença, antevendo-se desde logo estar já na derradeira fase.

Ficou por três dias internado na Unidade dos Cuidados Intensivos. Sedado, dormia profundamente, enquanto tubos ligavam o seu corpo a aparelhos de medição, ao soro e a outro tratamento que mitigava o seu sofrimento. Marilu estava a seu lado, observando serenamente a sua respiração, como já o fazia havia duas semanas, quando passou a dar-lhe ansiolítico para o induzir ao sono. 

Onde estaria ele nesse momento? Com o quê estaria a sonhar? Interrogara-se ainda sobre o que teria passado pela cabeça dele, na noite em que ela acabara desfalecida na sua casa, como teria sido a sua preocupação em livrá-la de uma possível pneumonia ou mal maior. Ele teria feito tudo, apesar do seu feitio de então e do facto de não a conhecer de parte alguma. Porém, ela via-se agora impotente em fazer, fosse o que fosse por ele. Guardava um rancor especial por não poder mudar inelutabilidade das coisas, por ter chegado tarde demais para travar um fim de um homem que passou a ser a sua estrela. Se calhar era a sua hora que chegara, contra a qual não haveria retorno possível. Já a adiara por diversas vezes, quer por circunstâncias alheias à sua vontade, quer por deliberação própria. Alguém quis que a sua vida se cruzasse com a dela, mas para quê? Seja para o que fosse, ela deu-lhe uma razão para se manter vivo e completar o que a sua alma demandava fizesse. De súbito, viu-o a esboçar um sorriso. Podia ter sido um reflexo, mas ela desejaria tanto que ele tivesse visto a imagem da avó Consuelo, que ele lhe pintara com tanto pormenor e paixão.

A enfermeira de serviço interrompeu os seus pensamentos, ao informá-la que Nico passaria para um quarto normal, uma vez que a sua condição se estabilizou. Marilu disse que não. Caso fosse possível, ele iria para casa.

“Nem pensar, Maria Lúcia. Ele não está em condições para voltar à casa”, negou Dr. Mendonça com toda a veemência, o pedido de Marilu.

“Se você pudesse escolher entre morrer numa cama do hospital ou na da sua casa, qual seria a sua opção Dr. Mendonça?”

A volta à casa pareceu a Nico o regresso de uma viagem longa, e que todos lhe davam as boas vindas. Tito Puente com a gargalhada estampada na cara, Celia Cruz e Omara Portuondo, de braços abertos. E, claro, Beny Moré, piscava-lhe o olho maroto. Marilu conduziu-o para a sua cama e cobriu-o com uma manta. Foi à cozinha preparar uma canja que ele lhe ensinara a fazer.

Era reconfortante o cheiro a canja chinesa com ovos pretos e carne de porco, a qual passou a ser a sua refeição nos próximos três dias. Marilu dava-lhe de comer com pontualidade, arrumava a sua cadeira e assegurava o seu conforto nela. Numa destas vezes, resolveu brincar, rodopiando a colher pelo ar antes de chegar à boca de Nico. Este riu-se com esforço, mas fez questão em corresponder à paródia.

“Regresso a la casa es siempre bueno. Es aquí que quiero quedarme para lo todo siempre”.

“Sim, é a tua casa”, Marilu beijou-lhe a testa “Agora descansa um bocado”.

Mergulhou-se rapidamente no sono. Era visível a sua fraqueza. Mas, despertou sobressaltado.

“És tan triste cuando nadie acompaña a nuestro ataúd, no?”, balbuciou.

“Estarei sempre contigo, Nico. Sempre.”

Seus olhos fitavam-na. Lia-se neles reconforto de que tanto precisava.

“Vou te buscar um copo de água.”

Todavia marejado, o seu olhar transparecia a certeza de que tinha reconciliado com o seu norte. Era pena que não pudesse demorar um pouco mais. Contudo, era esse seu destino, implacável como aliás fora todo o seu percurso, e condescendeu. Lembrou-se novamente da noite em que estava à mercê do jagunço pronto para o apunhalar. Recordou ainda do dia em que podia ter saltado da doca para o mar gelado. Em ambas as alturas, algo decidira que ainda teria muito que viver e sofrer por isso. Que fez ele de tão hediondo que merecesse tudo o que foi na sua vida? Sorriu e encolheu os ombros. Encostou a sua face sobre a almofada e seguiu os passos da Marilu até ela chegar à cozinha. Não a queria perder de vista.

Voltou a pensar em Benita interrogando sobre o que estaria a fazer, contudo, a sua imagem turvava-se na memória, como um boneco de cinza a desintegrar-se ao sopro do vento. De súbito, a menina de cabelos encaracolados e covinha salientes, não passava de um registo ténue no tempo, como um mero retrato na parede que, graças à teimosia do seu dono, se manteve aí incólume às intempéries da vida. Deixou de fazer sentido a adoração por aquilo que agora tinha a certeza de que era uma miragem. Porém, Marilu era real, quiçá, a recompensa de tanto ano de redenção, a pessoa que a final lhe permitiu compreender a razão de ser da sua existência. E estava aí a seu lado, acompanhando-o à espera do combóio que o levaria para a eternidade.

Quando ela retornou, os seus olhos já não mexiam, abertos, mas sem mira. Ela entendeu e estava pronta. Foi à secretária e abriu a gaveta, donde retirou a fotografia de Benita para a colocar sobre o seu peito. 

“Nico… Nico.” – chamou por ele suavemente. Seus olhos ainda responderam, concentraram-se nela. Beijou no retrato, mas deixou-o deslizar-se para o chão. Puxou-a perto de si. Ela cedeu e encostou o seu ouvido junto da sua boca, quando seus lábios trémulos principiaram a pronunciar uma palavra. Fechou os olhos quando Nico se calou e beijou-lhe longamente a mão que se arrefecia. Murmurou-lhe, então, em cântico.

“Como fué, Nico. No sé decirte como fué…no se explicarte qué pasó….pero de ti me encanté… Muchas gracias Niquito!”

E ficaram assim conversando em silêncio, cada um querendo reter a imagem do outro na hora do adeus.

 

Era domingo quando o corpo de Nico recebeu as últimas bençãos, na capela do Cemitério de S. Miguel. Muito pequena era a assistência, algo que Marilu já esperava. Não obstante, fez questão em cumprir todas as regras sociais, participando à imprensa o óbito e a data das exéquias, tanto em português, como em chinês. Fez o melhor ao seu alcance para que fosse identificado, mencionando as suas alcunhas e até características físicas. Nico fora sempre muito solitário e uma limitada assembleia não surpreenderia.

Pediu ao padre que lhe permitisse a por a tocar uma música durante a missa, num momento de pausa nas preces. Ficou combinado que o fosse apenas por um minuto e meio.

Queria tanto concentrar-se na homilia, sentir as palavras, quando o padre dizia maquinalmente que o finado jamais morreria se tivesse fé em Cristo. Porém, não logrou fazê-lo. Nico estava bem presente na sua mente e ainda que não tivesse tido fé alguma, nunca morreria dentro dela. Enquanto o padre rezava a missa ela percorria a sua memória, como se vasculhasse livros de uma biblioteca. E reviu todos os momentos mais significativos da sua relação com um homem que nunca sonharia encontrar. Evocou a memória de se ver ao espelho com ele atrás, por onde aprendeu a aceitar-se e se convencer da sua beleza apesar dos padrões convencionais, viu-se mulher de paixões fortes enaltecidas por uma dança que lhe restituiu a dignidade que ela própria menosprezou.

Sentada, os seus pés sapateavam suavemente, ao ritmo de Beny Moré, das maracas, congas, bongos e guiros, no momento combinado para a música. Ocorria-lhe a imagem da charanga da avó Consuelo, que ele tanto contava. Fantasiou conversar com Benita de mãos dadas.

No momento em que o caixão descia para a cova, uma borboleta pousou no seu ombro. Quem sabe se não era ele sob outra forma a dizer-lhe adeus, pensou Marilu. A saudade era imensa, mas não estava triste. Talvez chorasse quando chegasse à casa, mas naquele momento queria estar a seu lado até o fim, como prometera, com a determinação a que se habituara com ele. Pensou na sua própria mãe e nos seus meio-irmãos e depois no seu pai português da Marinha Grande, e encolheu os ombros. Quem seriam eles para ela, não soube responder. E que importava naquele momento? Mas sabia o que Nico era para ela.

A caminho da saída, chamou por ela um padre, com acentuada pronúncia castelhana.

“Perdoe-me, vi a senhora todo o tempo junto do falecido, achei que devia ter sido uma pessoa muito chegada a ele. Queria lhe dizer que o senhor Nicolás D’Aragón foi um grande homem. Uma mão muito importante para os refugiados de Vietnam, juntou famílias dispersas, construiu carros de madeira para os meninos, bonecas de pano para as meninas. A nossa congregação deve-lhe muito e para perpetuar a nossa gratidão, você pode ficar a viver  na sua casa pelo tempo que quiser, tal como o fez o senhor Nicolás em vida.”

Marilu apenas acenou agradecida com a cabeça, mas não respondeu. E continuou o sacerdote, com uma caneta sobre um bloco de notas:

“Para registo apenas, posso saber o seu nome e a sua relação com o Sr. Nicolás?”

“Maria Lúcia …”

Não prosseguiu mais, quando o bolero começou a soar na sua mente, com a imagem dele lhe entregando a bela muñequita na noite dos seus anos. Não era de cabelos de ouro, nem lábios de rubi. Era delgada e na saia estava inscrito o seu nome. Foi para ela a boneca. Só para ela, sem ter de compartilhar com ninguém. Entendeu.

Olhou então para o seu interlocutor e sorriu.

Mi nómbre és Marilu D’Aragón. Soy su hija.”

 

Macau, 17 de Janeiro de 2020, sexta-feira

 

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(1) Da canção “Mucho Corazón” (Emma E. Valdemar)

NOITE DE BABALÚA

Ela sabe o que pensamos, como dizem.

Já no início da nossa existência, paira no alto do céu e nos observa em silêncio, com um ostensivo brilho que sempre nos intrigou. Não tão fulgurante como o seu parente durante o dia, ela permanece discreta na noite, marcando com a sua mudez uma presença indelével. Dizem que conversa connosco também, sussurrando-nos sobre o que o destino nos reserva. Ou então, somos nós que privamos com ela, confiamos-lhe o nosso imo, como se nossa confidente fosse. A ela dirigimos as nossas preces e súplicas e com ela explicamos os estados da alma, desde a euforia de um namoro bem sucedido ao devaneio de uma perda irreparável. Dedicamos-lhe a música, os nomes, o dia da semana e comemorações.

No entanto, o que mais fascina nela são as histórias que conta através da nossa imaginação. 

A Lua não escolhe nem o enredo, nem o desenlace do herói, mas no seu silêncio luminoso no cimo do firmamento, comove-nos e alimenta o imaginário que vai ganhando vida e sentido nas nossas mentes.

Histórias que não ocorrem ao Diabo, como esta que se diz ter passado no velho e emblemático bairro de S. Lourenço, em Macau.

Havia um tempo em que o nobre bairro de tradições seculares, albergara a fina nata da comunidade portuguesa macaense. Fora eleito para poiso dos mais altos dignitários da velha administração portuguesa, tão belo e enigmático que até os então governadores da Província de Macau relutavam em dele sair, para visitar outros locais, como  demandava o seu ofício. 

Tendo como referência central a Igreja de S. Lourenço, o bairro abarcava em toda a extensão desde a Praia Grande à Praia do Manduco, passando pelo barroco Seminário de S. José, desbravando-se pelo Lilau(2) fora até ao Templo de A-Má. 

De calçada portuguesa, as suas estreitas e sinuosas ruas desenhavam-se sobre  o desnivelado relevo da colina encimada pela Ermida da Penha. Não era fácil para quem tinha de as percorrer a pé todos os dias, num infindável subir e descer, sobretudo nos dias de chuva ou na época da densa humidade, em que ventos quentes do Mar do Sul se esbarram contra o ar ainda fresco do fim do Inverno.  

Chegava-se a ele quer pela Praia Grande, quer pela Rua Central, que outrora ligava a Igreja à Sé Catedral, mas que fora cortada a meio com a construção da Avenida de Almeida Ribeiro, no início do século XX. Mas, também se lhe acedia, subindo do bairro chinês da Praia do Manduco através da Rua Inácio Baptista, ou pelo emaranhado de ruelas da zona do Seminário.

Do casario dominante, com um máximo de três pisos, havia as portentosas mansões das grandes famílias chinesas e macaenses, ao estilo emprestado da art deco, com amplas varandas que serviam de alpendre para o piso térreo, havia também as moradias mais pequenas e modestas, habitadas pela classe média, funcionários públicos, polícias, gente mais humilde, estas porventura as mais graciosas que se desfilavam pelo bairro todo, estreitas com porta de madeira, duas janelas com veneziana.

O bairro era pacato, onde se ouviam as horas badaladas nos sinos da Igreja, os pregões que se sucediam suavemente durante o dia e noite, desde o cântico desafinado do amolador de facas e tesouras, ao chôro do velho vendedor de catupá(3). As bicicletas, motas e lambretas eram rainhas que transitavam alternadamente, ritmo que se completava com percussão do tim-tim, que chamava pelos despojos das famílias a troco de uns avos.

Havia também baldio, casas abandonadas e terrenos apenas aproveitados para entulho de obras vizinhas, onde crescia a vegetação selvagem. Escuros à noite, eram ideais para as escapadelas, namoricos não autorizados e outras coisas mais ousadas, numa altura em que o pudor, a decência e os bons costumes primavam em ser temas fervorosos da devoção católica no púlpito da Igreja. Também nestes locais, a juventude se juntava para fumar, longe da vigilância dos pais, para cantar, para fazer toda a espécie de dislate.

Esse estado de abandono ganhava outra mística, nas noites em que a Lua resolvia dar uma espreitadela. O pessoal da noite ganharia outro alento que de outro modo aturaria o lúgubre da má iluminação, ao som do repicar dos sinos.

Babalúa, babalúa (3)
Lúmi di iou-sa coraçám
Quando vos-tem na rua
Iou nádi tem pensám (4)

Eis uma possível lenga-lenga que se soltaria da boca de gente antiga de Macau, sob o lânguido olhar da majestosa Lua Cheia, nas noites do seu maior fulgor, em que destinos se mudam, vidas se transformam e opções se alteram. 

E assim foi numa das noites de babalúa no S. Lourenço, numa das histórias que passo a contar.

A noite caía depressa e não tardaria muito que a malta o viesse buscar.

No seu recanto ele se aprumava, enquanto na sala havia música, gargalhada, tilintar de copos, talheres e pratos. Era mais uma daquelas enfadonhas festas que se davam em casa, de que não tirava outro proveito que testar a sua paciência. De quando em vez, alguém entraria para pousar um casaco, uma mala. Cumprimentavam-no efusivamente. Para ele, contudo era uma constante irritação, um convite para sair daí de vez.

“Onde está a privacidade?!”- bradava em silêncio.

Durante horas de paramento, limpava o seu bigode fininho, ensaiava vezes sem conta a sua pose, esticava os seus membros, as suas costas, para se manter intacta a sua flexibilidade. Ao espelho mirava-se treinando o olhar de lince, letal numa noite de luar como essa.

Certificou-se de que a hora chegara. Sentiu-se limpo, esguio e luzidio.  O seu trabalhado olhar deu mais uma mirada ao espelho. Aproximou-se da janela ansiosamente. Estava elegante, tinha estilo, estava pronto.

Sentia o nervosinho. Iria ser a noite em que ele provaria ser gente, crivo por que passariam todos como ele. Teria que fazer algo de extraordinário que o acaso definisse, que só a heróis correspondia. Ainda sentia a dor que vinha das costas. Resquícios de uma briga ocorrida havia duas noites. Saiu-se bem, foi bravo e aguentou os golpes do adversário. O grupo até aplaudiu o feito, todavia não valia para o que se preparava. O que uma luta por mais arranhada fosse podia mostrar? Que áurea podia ganhar? Era mais uma entre muitas outras rixas que encontraria no futuro. Sem glória, nem memória. Nada valia. 

Até porque Daisy não estava presente. 

Curvou-se sobre o parapeito da janela, de queixo sobre as mãos, e concentrou a mente nessa beldade. Lembrara-se da primeira vez que a vira e começara a admirá-la. O seu coração bateu mais depressa, quando evocava imagens do seu pachorrento e sedutor andar. Ela sabia dos famigerados olhares que todos lhe lançavam, ciente do silêncio que ela causava ao passar por todos, caminhava propositadamente com mais pausa, meneando as suas ancas, rebolando o seu traseiro, as suas pernas cada uma cruzando sobre a marcha da outra. Sabia da lascívia que causava àquelas mentes famintas de amor. Por fim pousaria o seu leve corpo de deusa, ladeada de suas amigas intimas, observando todos, sorrindo com desdém. Ninguém no bairro mexera com a alma de todos e despertara tanta cobiça como aquela endiabrada. Daria tudo para chamar a sua atenção, brigaria com qualquer um para cair num segundo que seja na sua consideração. Lutar por ela faria todo o sentido. Ganhá-la seria afirmação da masculinidade. Eis a almejada áurea. 

E não havia meio de a malta chegar.

A noite avançava, mais uma hora se tinha passado. Lá fora a Lua subia altiva, lançando sobre ele o feixe luminoso, urgindo a que saísse da casa, onde nada aconteceria. Até porque não se conteve em pensar na possibilidade deles se terem esquecido dele, tal o frémito que Daisy e o seu séquito de boas amigas, causava à rapaziada.

Sorrateiramente, pressionou a alavanca da janela que de seguida se abriu o suficiente para que o seu corpo fino pudesse passar. Não a fechou para garantir o seu regresso. Deu um salto de mestre, mas os seus pés foram ter com uma lata de conserva abandonada. O ruído da queda no entanto não incomodou. Estava fora, enxergou lá para cima, havia luzes. A festa não tinha terminado e prometia prolongar-se pela noite fora.

Ainda que caísse o céu, estava já na rua. E ninguém o deteria  a venerar Daisy dos seus sonhos, que nem um doente. O luar não fazia mais nada do que criar desejos, nessa noite de babalúa em que a dona subia cheia, inspirando loucos e apaixonados. 

Seguia por caminhos  habituais e é nesses trajectos que encontrava os compinchas. Seriam tantos que a vizinhança não tardaria muito em lançar água, sapatos e outros objectos para a sua dispersão.

Porém esta noite, algo de diferente sentiu. Onde estão eles?

Nem um único indício da sua presença habitual. A rua estava deserta e ele caminhava sózinho e pela primeira vez sentiu um calafrio.

“Não me digam que já estão com a Daisy. Safados. Só podia ser!” O galante Pompim do muro do Palácio, o esfomeado Puchini do capelão italiano e o arguto Giga-Magica da loja de aluar, estes não deixariam as oportunidades passar.

“Sacanas, isto não vale, é jogo sujo”- falava para os seus pés.

À medida que pensamentos de revolta cresciam, mais impaciente ele se revelava. Mas algo estranho acontecia. Chico-Bucha, o mais pesado que preferiria estar à chuva a correr, também não estava.

“Psssssssttt” alguém interrompera os seus pensamentos. “Para aqui, já!” Era o Seco-Mirado, o solitário esquelético do bairro, com quem ninguém queria coisa alguma.

Encolheu os ombros. “Mas, o que se passa?”

“Cala-te e vem já para aqui”

“Que é dos outros?”

Seco-Mirado não vai de modas, sai do seu esconderijo e empurra-o para o abrigo. Nunca de motu proprio  fez algo semelhante, mas o instinto de salvar alguém marcou o timbre.

“Explica-me o que se está a passar!”

“Estão todos presos. Não na cadeia, mas presos nas grades. Pegaram-nos um a um e estão num grande armário metálico por trás da casa da loja do aluar.

“E o Giga?”

“O Giga coitado tentou reagir. Resistiu como um valentão. Mas a força do gigante é imensa, pegou-o pelo pescoço e quase o esganou. Meteu-o na jaula, já inconsciente.”

“E… viste a Daisy?”

Seco pausou. “Ohh… a miss…! Meteu-a numa outra jaula com as suas amiguinhas. 

“E tu? Como conseguiste safar-te?”

“Achas que alguém se dará ao trabalho de me fazer mal?”, ripostou com sarcasmo. “Mesmo assim, tive que me esconder.” 

“Por que razão haveria alguém de fazer uma coisa destas? Só a polícia pode fazer isso, não?”

“Sei lá, acho que tem a ver com o chinfrim que vocês têm feito nestes últimos tempos. Há muita gente nova a morar aqui e nem todos acham piada aos vossos urros e uivos pela noite fora. E agora que se juntam também as gajas, tás a ver a festa! Bom, portanto já sabes, é melhor pirares-te daqui.”

“Seco, leva-me até onde se encontram. Eles precisam de mim.”

Seco interrompeu a sua marcha e esboçou um sorriso cáustico.

“Jafa, aquela catrefada de brilhantes não precisa de ninguém, precisa é de ser queimada viva. Sempre se julgaram senhores do bairro, punham e dispunham de todos que não gramavam”.

Jafarel arrepiou-se com o tom recalcado que vinha daquela boca. 

“Via-te com eles e isso só me metia dó” continuou Seco. “Mais, um pateta que se junta a uma cambada de inúteis, falava disso para as minhas unhas, sempre que te via cegamente enfileirado naquela corja de gente.”

“Então porque me estás a avisar do perigo?” – retorquiu Jafarel, impaciente com a conversa que só lhe estava a roubar tempo.

“Porque apesar desse ar de camafeu que queres ter, és uma pessoa de bem. Por várias vezes evitaste que eu levasse um enxerto de porrada. Seco-Mirado não se esquece dos que lhe querem bem”. 

Ocorreu-lhe a imagem de Seco com a face enlameada e os olhos arrancados de horror ao tentar flutuar numa poça de dejecto, tragando goles de impureza, enquanto todos se gargalhavam à custa desse espectáculo deprimente de luta pela vida. Soube-se que ele ficara muito doente com intoxicação e só por sorte não virou cadáver.

“Por favor, diz-me onde eles estão. Viste a Daisy, como ela está?”

“Hi hi” contorcia-se Seco de gozo. “Ah… Já percebi. Querias lá saber deles! Pretendes é saber onde está a Daisy!… ahaha… Podias ter-me poupado este discurso todo…”

“Seco!” – sentiu que a sua voz rasgava o silêncio que era preciso manter  e ambos se retraíram. Segundos depois, certificando-se que não houve consequências de maior voltou a inquirir. “Vais me dizer?”

Seco ficou sério. Os seus olhos apontaram para a direcção onde todos foram parar.  Meneou a cabeça com pena.

“A partir daqui, dou a língua às minhas mãos e estamos quites. Não te devo mais nada.” Desapareceu num ápice.

Jafarel seguiu a direcção indicada. Cautelosamente como lince à espreita da sua presa, introduziu-se na pequena mata que havia ali formada de muita vegetação e arbusto. A Lua subia e iluminava o caminho que doutro modo seria negro como breu.

O seu passo abrandava, à medida que avançava pela ramada que se adensava. Era leve e silencioso, que até permitia ouvir o cântico dos grilos e de outros bichos que pela mesma razão eram chamados pelo luar.

Por fim deu com o ruído abafado no fundo do mesmo caminho.

“Jafa… ! Qui!”

Mesmo sem conseguir enxergar, reconheceu a voz de Puchini. A escuridão nunca lhe fora um estorvo, todavia havia algo que lhe impedia uma melhor visibilidade. Adiantou mais uns passos.

“Tá quieto, puto” advertiu Pompim. “À tua frente está uma rede armada. Se avançares mais ficas lixado como nós!”

Jafarel, manteve-se imóvel por um instante e suavemente aproximou-se da rede. Era fina mas rija e cobria uma superfície várias vezes o seu tamanho. Não admirava que qualquer incauto cairia na malha. Olhou à sua volta e reparou que a mesma estava presa em ambos os lados a arbustos, aparentemente,  frágeis. Por fim localizou a jaula colocada por cima de um plano rochoso, a uma considerável altura.

 “Estão bem?!” procurou saber, ao mesmo tempo estudando a forma de contornar a rede.

“Não podemos mexer. O Giga está ferido. Levou com o pau nas ventas e está ainda a sonhar …”

“Vamos morrer todos!” choramingou Chico Bucha.

“Pôfa, Chico, mete o teu focinho noutro lado ou ficas sem ele!” vociferou Pompim.  

“Estávamos todos à esquina dos Salesianos, à espera do Giga, quando ouvimos o seu grito. Apressámos o passo e num instante estávamos aqui. Vimo-lo inconsciente deitado ali no chão. Ficámos preocupados pois ele não se mexia. Seguidamente veio o som dum petardo e depois outro. Assustámo-nos e corremos em direcção oposta e  demo-nos com esta rede. Que cilada!”.

“Mas, faz bastante tempo que a polícia não fazia este trabalho.”

“Pois, cos’altro ci accadrà?!” Puchini meneava a cabeça de desespero.

“Pucho… pára lá com esse patuá de esparguete pode ser??” ripostou Pompim.

“Não sairemos vivos da porrada! Já levaram cinco antes e nós somos a seguir” Chico Bucha já gemia de ansiedade, qual condenado à câmara de gás.

“Temos que sair daqui!” Jafarel sabia que não convencia, mas precisava de dizer algo para pôr o seu raciocínio a funcionar a todo o vapor. “Precisamos de ajuda”.

“É só chegar ao topo desta jaula e puxar a vareta de correr. Já vi abrir coisas assim. Não conseguimos por aqui dentro, tem de ser feito por fora. Ma sei solo…! ” 

Da sombra sai a figura franzina e sombria de Seco-Mirado.

“Seco!”, entusiamou-se Jafarel.

Puchini repara nele põe as mãos à cabeça. “Jafa… Perchè?? A cosa ti serve un eunuco como lui?”

Seco engoliu a humilhação sem pestanejar, mirando impávido  para os seus patrícios no desespero da sua clausura. Era a alcunha que mantinha aberta a ferida no seu ego. Sem saber como lhe aconteceu, dum dia para outro acordou sem os testículos. Sofrera sempre muito com isso.

“Pára Pucho, não fosse ele, estaria eu longe daqui”

“Já nem sinto os meus tomates! Vou morrer sem ver a minha mãe!”, o desalento de Chico Bucha tornava-se contagiante.

“Ahhh…Eu tenho é dores de cabeça. Ai…!” Giga retomava consciência com as mãos à cabeça, “o sacana tem cá uma força! Só me lembro de ter voado contra aquela árvore. Sacrista o gajo!”

“Giga! Acordaste finalmente. Pensámos que patinaste de vez, porra!”, exclamou Pompim ao ver o seu amigo recuperar a alma. 

“E a Daisy? Onde elas estão?” Jafarel não escondia a sua aflição.

“Ahh ma ora capisco perchè… estás cá com aquele eunuco não por nossa causa!” Puchini picou com sarcasmo. “Bastardo. Eu devia tê-la mangiato!”

Antes que Jafarel pudesse responder, sussurrou Seco do alto da árvore “Jafa, por aqui!  Há uma brecha por onde podes introduzir-te, sem problema algum. 

Não leu a razão da sua mudança de ideias, mas naquele momento, Seco era no momento um auxílio irrenunciável. Seguiu as suas instruções, e rapidamente estava no topo da árvore, mesmo em cima da jaula e tinha ultrapassado a rede meticulosamente montada, a qual cairia sobre qualquer coisa que a tocasse.

Podia observar os outros em baixo, lutando com a falta de espaço. Todos olhavam-no atentos, com a esperança de serem libertados. Todavia, Jafarel queria saber de Daisy.

Seco indicou o local, que ficava uns cinco metros do sítio onde todos se encontravam.

Jafarel então moveu-se ao sítio indicado, sob protestos da malta. Não queria saber. A sede por Daisy era a prioridade a satisfazer.

“Jafa… vieste!”

A sua voz de veludo, com tons nasais pronunciados, era simplesmente irresistível. Mesmo naquela situação de aflição ela teve o condão de o entesar. 

“Daisy, estão seguras aqui e por enquanto nada de mal vos acontecerá. Mas, neste momento a malta lá em baixo precisa mais de mim. Volto já, prometo.”

Não esperava que Jafarel a relegasse para o segundo plano, mas nem por isso ficou aborrecida. Isso mostrava personalidade que curiosamente ela apreciava muito num macho.

Jafarel de volta pousou sobre o topo da jaula estudando a maneira de abrir a jaula, pelo topo. 

“Despacha-te Jafa…não tarda muito voltarem”

“Estou a pensar, estou a pensar…”

“Não penses tanto. O amor não está lá em baixo!” O sarcasmo de Seco não se fez esperar.

Jafarel, reparou que uma trava de bambu fechava a portinhola no topo da jaula, o qual por sua vez era ligeiramente convexa, o que tornava difícil deslizar o bambu, quer para diante, quer para trás. Para se soltar, era mister pressionar-se essa parte para baixo.

“Isto está impossível”.

“Estás a perder tempo!”, Seco avisava.

“Jafa não queres saber de nós?”, gritava Daisy do outro lado, acompanhada dos sussurros das amigas.

“Pompim, Chico e Pucho, preciso do vosso peso para que essa portinhola se abaixe. Temos de fazer ao mesmo tempo. Vou contar, e à terceira empoleirem-se na grade enquanto que eu salto por cima e vamos ver se conseguirei soltar a trava.”

Todos acharam estúpida a ideia, mas não lhes custava nada tentar.  Sem perder mais tempo Jafarel contou:

“Um, dois e … três!” nada. 

“Um, dois e…três!”, em vão. 

“Um dois e … três!”, grito de suspiro.

Já lá ia a décima quinta vez que Jafarel pulava sobre o local em questão, sincronizando-se com os três feitos macacos, sem que concretizar o seu desiderato. No desespero – até porque Daisy já estava a reclamar da falta de atenção – contou pela última vez…

“Um, dois, três…que sa f………” com todo o seu peso caiu sobre a jaula. Desta vez, também Seco emprestou o quanto valia de peso a sua esquelética carcaça, atirando-se também sobre ela. A violência do embate causou um balanço da jaula para a frente. Todos gritaram quando a jaula rolou para a frente e tombou. Pompim estava debaixo de Puchini que acabou de levar uma bofetada despropositada de Giga. Chico-Bucha enviesado desequilibrou de tontura indo por cima de todos. Grande gritaria.

No entanto a jaula abriu-se, para o espanto de todos. Um a um saíram, mas tiveram dificuldade em libertarem o obeso Chico, admirando de seguida como ele foi lá metido.

Num ápice desapareceram todos. Jafarel retornou ao sítio donde saltara, para depois ir ter com a Daisy. No entanto ouviu passos de alguém a chegar. Escondeu-se sem no entanto assinalar Daisy e amigas para se manterem em silêncio.

O homem foi rente à jaula onde supostamente a malta estava. Jafarel aproveitou-se para tentar o mesmo que fizera antes, derrubando a da Daisy. Não conseguiu, pois o homem descobrindo que os “bandidos”se tinham libertado voltou para verificar se a outra ainda se encontrava intacta.

Estava visivelmente furioso. Abriu a jaula e pegou em Daisy bruscamente. E ela gritava. Jafarel tremia de medo, mas não podia ficar impávido e sereno perante a situação. Tinha razões para temer. Perante um gigante havia pouca margem para mais arrojo. Daisy não parava de gritar de pânico, nem ele tinha outra solução que enfrentar o gigante. E mostrou-se.

“Com que então seu camafeu, soltaste os teus compinchas e agora voltaste para proteger a donzela, hein?”

Jafarel engoliu seco e não respondeu.

“Muito bem e que tal assistir a pequena ficar sem ar?” começou a apertar a garganta da Daisy que esperneava de pavor. “Que espectáculo, né. É esperar mais um pouco e ver como gente da vossa laia deve acabar” E virou-se para a apavorada Daisy e apertou ainda mais.

O que não esperava foi dar com a cara de Jafarel ao voltar a mirá-lo. Este esmurrou, mordeu, arranhou, fez uso de tudo ao seu dispor para salvar a donzela das garras deste gigante. Um dos golpes atingiu mesmo a cara do homem, ferindo-lhe um dos olhos. Por sorte não lhe afectou a visão mas foi o suficiente para soltar Daisy. As suas amigas aproveitando-se da situação saíram espavoridas da jaula.

Jafarel apressou Daisy para o único atalho que no momento atentou, para darem depois com uma betesga, quando o homem já recomposto voltou à carga.

“Mas  estás a brincar com quem?!”, avança com um pau enorme, pronto para desancar. 

Jafarel olha para Daisy e assegurou-lhe. “Ninguém te fará mal! Juro!” e cobre a donzela com o seu corpo esguio esperando a pancada que se seguiria.

No momento em que o homem levantava o seu braço para a paulada, Pompim, Giga e Puchini, lançaram-se sobre ele. A força dele era imensa e pegou em Puchini e lançou-o a metros de distância. Havia que se livrar dos outros dois que não o largavam. Mas os três não cessavam a sova que infligia ao monstro. Atacavam-no com uma ferocidade invulgar.

“Jafa… pisga-te agora!”, era a voz de comando Pompim, antes de voltar à carga do desgraçado.

Jafarel encheu-se de orgulho. De mero atalaia do grupo, passara a ser membro de pleno direito, merecendo a solidariedade dos outros, sem necessitar de mais provas de bravura. Demonstrara o bastante e ganhara estatuto.

Tinha de colocar a Daisy em local mais seguro. Mas, fugir não estava nos seus planos. O ímpeto da noite inspirava-lhe mais arrojo, mais determinação na afirmação da sua singularidade que todo o bravo mereceria.

“Ficas aqui. Vou ver onde estão as tuas amigas.”

Os três companheiros de luta gritavam de fúria, mas o gigante parecia invencível. Por fim conseguiu desenvencilhar-se de dois e pegou novamente em Puchini pronto para lhe virar a cabeça.

Jafarel gritou:

“Seco!! “

Nem fora necessário. O eunuco já se tinha lançado do alto da árvore sobre o gigante no momento do brado, desferindo-lhe mais golpes no pescoço. Decididamente queria também ser gente e era essa a oportunidade. O monstro, atordoado, tapou a zona afectada, libertando involuntariamente o italiano. E quando recuperou a atenção, vira dois cristalinos mirones de pupilas dilatas, de alguém que se arremessara para a sua cara, com argumentos para disputar o momento. E sucessivamente, recebe uma, duas e três naifadas executadas com precisão. Era o mesmo sujeito que teria feito o mesmo momentos atrás, mas que agora, como que tivesse detectado o seu ponto fraco, repetia a façanha com melhor destreza, mais certeira, mais letal. O gigante recuou e perdeu balanço, tocou na rede que caiu sobre ele.  

Desta vez o odor a sangue fez-se sentir nas narinas de todos. Jafarel arfava, com adrenalina à tona, estava pronto para a nova investida. E assistiu o mastodonte confuso, indo de encontro ora de uma árvore, ora de uma rocha, procurando sofregamente recuperar o seu tino e voltar para a luta.

Pompim, Puchini e Giga-Magica não escondiam o embaraço e surpresa que Seco lhes causara. Mas, a admiração pelo puto que se tornara adulto, marcou para sempre nessa noite de babalúa. Todos estavam prontos para o momento derradeiro, quando o monstro deu um urro de sofrimento, saindo do recinto com cara tapada, visivelmente derrotado.

Gritos de alegria ouviram-se no bairro, que até provocaram o latir de cães. Mas, foi por muito pouco, por deliberação dos três. 

“Temos o herói da noite. Merece o silêncio e discrição”, todos desviaram o seu olhar para um mesmo ponto e sorriram com manifesta cumplicidade.

“Obrigado malta, mas bravura temos todos, cada um no seu papel”. 

“Todos menos eu…” ouvia-se do escuro em tom mais baixo.

“Chico, pô… és um de nós!” consolava-o, Giga.

“Eu sei, mas gostaria de ter feito melhor”

“Estamos juntos, Chico”, Jafarel assegurou-lhe afagando-lhe o ombro.

“Ok turma, vamos deixar o nosso campeão jantar em paz!” –  risos de ironia.

“Jafa, aceito restos! Estou com tanta fome!”, Chico rematou, o que provocou mais risada. 

“Vamos todos … Pucho?”, interrogava Pompim.

Aspetta… ainda falta um” – todos viraram-se para Puchini, quando este chama para o escuro. “Seco?”

Não se ouviu som algum, mas sabiam que ele aí estava a observar e a escutar, como sempre fazia em todas as ocasiões da confusão.

“Estamos à tua espera, Seco … tempo di mangiare”.

 A folhagem então produziu som de movimento. Era intenso o seu olhar em Puchini. Não pestanejava porque sabia que também provara ter sido alguém nessa noite.

Graze!” 

Havia muito tempo que não sorria de coração, Seco olhou para a Lua e sussurou-lhe algo. Crê-se que, à sua maneira, agradeceu-lhe também.

Jafarel suspirava de alívio, ainda mal alcançando o real significado dessa noite para ele. Mas soube bem ter feito algo  com a malta. Soube ainda melhor ter sido o seu esforço reconhecido. Era altura de desfruir o seu momento.  

Daisy estava deitada no canto resguardado da vegetação. Sorriu quando Jafarel se aproximara.

“És o meu herói”. A cabeça dela roçou no seu pescoço. 

Lutou por esta noite, por este resultado, mas não acreditava que tinha o seu precioso troféu entre as mãos. E agora? Estremeceu de súbito ante esse pensamento. Ela aí estava toda para ele, derretida nos seus braços, à mercê da sua vontade, rendida à sua bravura. O que um herói faria de seguida? 

Hirto, Jafarel tremia por recear que qualquer movimento pudesse estragar a noite, que sabia ser dele. Deveria beijá-la já, por a mão no seu ombro? Encostar o seu nariz à sua face? Não podia ser assim, ele não fora educado para ser rude, um reles do bairro, ele era da família de gente boa, educada, com maneiras. As meninas são preciosidades que os meninos deveriam aprender a respeitar, há regras para tudo e até para o namoro. E …

“Jafa… estás à espera de quê?” ria-se dele que ainda cogitava a melhor forma de se aproximar dela. Por fim, não encontrava a solução com aquilo que aprendera. A memória não dava para tudo, e era impotente numa situação de emergência. Mas aprendera também do velho Leôncio dos lados do Seminário: “Quem está à rasca, ou vai ou racha!”

Virou-se para Daisy que ainda o mirava com olhos de pupilas dilatadas, e não foi de modas. Saltou por cima dela e antes que ela pudesse recuperar-se da surpresa, prendeu-a por baixo de si e ajeitou-se instintivamente.  Ela não mais podia mexer. Vulnerável ela exibia o seu corpo em total rendição, sem vontade alguma de se proteger. Ela queria o seu herói, que arriscou a sua vida e lutou por ela conquistou o direito de a possuir. Jafarel correspondeu. Num golpe penetrou-a. E há muito que o Lilau não ouvia tamanho uivo.

Por fim, feliz ela virou-se para ele, sorriu perante um Jafarel de olhos bem cerrados, tremelicando de espasmo. Sabia que o tinha também conquistado. O novo herói do bairro, o eleito para ser o pai da sua prole. Sentiu-o beijando-o e lambendo o seu esguio pescoço, enquanto ele se recusava a sair dela. 

“Vou-te ver de novo, amor?Sempre, a toda a hora, coladinho a mim? Não te quererei longe.”

“Mas tenho casa para voltar e…”

“Eu também, mas onde estou há lugar para ti e … para os nossos. Ai faremos tantos.”

“Daisy… falas a sério?”

“Nunca fui tão séria. Vi muito e muitos. Sem saber, andei à tua espera há muito tempo e chegaste. Não te largarei, nunca mais. Sou tua.”

Ele mirava-a seriamente. “E tu és meu!” acrescentou. Jafarel não sabia o que dizer ante a mulher do sonho de todos, que aí estava diante de si rendida à sua vontade. Porque algo arrepiante atravessou o seu esguio dorsal. Não vislumbrava o quê, mas algo inquietante o espreitava. Esta noite provou a sua valentia, já não era o moço do bairro como no dia anterior, deixara de ser o aprendiz que bebia sem fim os ensinamentos dos mais velhos. Ele virou gente com fibra e os seus pés pisavam solo próprio, sem condescendência de ninguém. Esta noite conquistara a dama do bairro que aí estava a seu belo prazer. Os tempos de limitação terminaram e agora os horizontes vão para além do que todos os dias podia pela sua janela. Janela essa que também se lhe abria agora para outras aventuras que jamais teria imaginado para si. Não podia, nem queria voltar para trás. Descobriu a sua natureza em toda a sua plenitude, um ser livre que só a morte pararia o seu ímpeto.

“Vou para a minha casa.”

“Então vou contigo”, ela espantou-se com a falta de reacção de Jafarel. “Já percebi, fui uma conquista e agora já sou passado. Porque todos são assim?!”

“Daisy” hesitava a prosseguir ante o anúncio de um pranto. “Não faço parte destes “todos”. Apenas despertei para um novo mundo onde tanto me espera ver. Eu quero vê-lo com olhos de ver, sem amarras”. 

“Não podes ver esse mundo comigo?”

“Daisy… peço que me perdoes, não nasci para ser egoísta, mas neste caminho tenho de andar e tropeçar por mim. Entendes?”

“Mas somos um do outro!”

“Tu és tua, Daisy e … eu sou meu”.

Ninguém deu conta de que entrara em casa, por onde saira.  D. Gertrudes lavava os pratos, despejava o resto de comida no caixote de lixo. O jantar foi rico e pesado como de costume, regado a vinho do melhor. Capela, mínchi, galinha chau-chau parida a rematar com um arroz-doce e baba de camelo.

– Isto vai ser uma jantarada para a malta! – Falava alto para os seus botões, ao arrumar cozinha referindo-se satisfeita de ter mais uma vez recebido bem. Era motivo de orgulho, a fartura de comida e o receber bem. Não se importava com o que se desperdiçava, o que interessava era que todos voltassem para as suas casas a lembrarem-se dos bons jantares da D. Gertrudes.

Cantarolava satisfeita que ele passou pela cozinha.

– Olha, onde andaste metido meu maroto? Agora deu-te numa de andares às escondidas? Ai… Como cresceste! – Sorriu docilmente e fez-lhe a festinha na sua cabeça, indo de seguida para a sala de estar. Passou pelo gira-discos e pôs a agulha a deslizar sobre o vinil sonoro. Sentou-se no sofá e a voz de Bobby Vinton entoou “Blue Velvet”.

Subiu ao regaço da D. Gertrudes. As suas mãos macias de mãe deslizaram suavemente no seu macio pelo castanho dourado. As suas orelhas em riste captava sons que não compreendia mas que lhe eram tão enternecedores. Até a cauda serpenteva ao som da música.

– Então o menino gosta desta música? Era a música que o Armindo adorava – sorria D. Gertrudes no conforto do seu habitual sofá. As suas mãos passaram pela sua perna e Maxi encolheu-se. 

– Que te aconteceu? Andaste às zaragatas? – brincava. – Ó Maxi!

Era a palavra a que se habituara a ouvir, quando a D. Gertrudes se lhe dirigia, calculou que fosse o nome que essa mamã lhe dera. 

– Não faz mal, mamã vai cuidar de ti.

Como ele adorava estar nesse regaço onde existia um calor inigualável que lhe aquecia a alma e lhe dava a certeza de segurança. Mas, essa noite ele deixou de ser o menino de olhos felinos da D. Gertrudes. 

A campainha tocou. Era o Boaventura, zelador da Câmara do Leal Senado, uma figura austera de cerca de dois metros de altura que, nas horas vagas e para proveito próprio, fazia biscates para os moradores do bairro. A sua arte consistia em afugentar a bicharada selvagem que pululava pela vizinhança. Cães rafeiros, gatos vadios, ratos, cobras e lagartos, nada escapava à sua mão exímia. Os seus favores eram muito apreciados, especialmente em noites de lua cheia, em que, segundo se contava, até os loucos ficavam mais silenciosos, tal a lenda que o Boaventura criara. 

– Boa noite, D. Gertrudes. Foi só para lhe dizer que vou para casa e é tudo por esta noite. Acho que não vai haver barulho, corri com eles todos.

– Muito obrigada Boaventura, você é tão trabalhador. Venha, vou-lhe oferecer uma cerveja… Olhe, quer jantar? Posso aquecer a comida. Tenho mínchi e…

– Agradeço imenso, mas estou cansado. É melhor ir para casa.

Boaventura era pessoa de poucas falas e um frio executor de tarefas que lhe eram incumbidas. D. Gertrudes reparou que ele arqueava e depois de o observar melhor, viu um arranhão enorme que lhe atravessava a face já de si rugosa e outras escoriações pelo pescoço, orelhas, no antebraço direito, vestígios inequívocos de luta séria.

– Abrenúncio, você está ferido! Nossa Senhora, deve ter lutado com um tigre!

– Era um bicho enorme com umas garras como nunca tinha visto. Safado o bicho, atirou-se a mim como se eu lhe tivesse roubado a dama!

A pintura que na mente da D. Gertrudes se formava era a de uma pantera em transformação num leão esfomeado, ante os pormenores que o arranhado zelador alimentava.

– Coitado. Espero que tenha corrido com ele – abriu a sua bolsa e retirou de lá umas notas, dinheiro da sua contribuição. 

– Dei-lhe uma sova grande, pode ter a certeza. Nem passe pela sua cabeça voltar, que logo o reconhecerei e assarei vivo!

Maxi contorcia-se, o seu pêlo eriçava-se.

– Credo, Maxi –  apertava-o com ternura.  

– Ó pequerrucho, tá quieto, não é contigo! – zombava Boaventura, enquanto sorvia o copo de água fresca.

– Você é uma jóia de pessoa, Boaventura. A sua esposa deve ser muito orgulhosa de si. 

– Sou um homem feliz ao serviço de todos!

Boaventura ria-se de orgulho, que sabia ser aparente nessa noite. Quanto mais se gabava, mais quilos ganhava a sua consciência, sobretudo, ante o olhar discreto mas penetrante do franzino Maxi ao colo da D. Gertrudes. 

O sino de S. Lourenço repicava horas, quando já na rua, contava o dinheiro que recebera nessa noite. Parou e levantou a cabeça. Quanto mais atentava para a Lua, mais esta contundia a ferida no olho. 

Lembrou-se então de Maxi. Ia jurar que já o vira algures. Mas, depois meneou a cabeça. 

– Nah, coisa mais parva, essa! 

Até porque nunca compreenderia que pudesse usar o nome Jafarel.

(1) Zona antiga dentro do bairro de S. Lourenço, onde se dizia existir uma fonte cuja água faria o seu bebedor retornar a Macau.

(2) Guloseima chinês, confeccionado com arroz glutinoso, com carne seca e ovo salmoirado, embrulhado em folha de lótus e servida por alturas da festa de Duanwu (端午節), no quinto dia do quinto mês lunar do calendário chinês.

(3) Lua cheia, em crioulo macaense.

(4) Poema do autor. “Lua cheia, lua cheia/ luz do meu coração/ sempre que estejas cá fora/ não terei mais preocupação.

Macau, 25 de Outubro de 2019, Sexta Feira.

@Miguel de Senna Fernandes

UM CONTO DE CAPA VERMELHA

A BRISA descia suavemente pelo vale trazendo a fragrância do pinhal e da flora conífera, naquela manhã de Outono. O odor a terra e do folhado ainda por secar do orvalho da noite passada, bem presente nessa manhã de tempo fresco e seco. Em casa, Alba preparava-se para a caminhada.

Já não fazia isso havia três anos, por se ter decidido ser melhor para os cuidados de que necessitava. Não é fácil para quem tenha nascido com pigmentação cutânea praticamente inexistente, com as deficiências conexas. As alergias, o estrabismo, as câimbras abdominais carecem de cuidados constantes, que uma vida isolada no campo ou floresta não proporciona.  Mal grado, se a cidade potencialmente tem tudo, falta-lhe o natural, que os jardins públicos, os canteiros e floreiras das varandas não substituem.

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Deu-se mal.

Até porque era diferente de outras crianças, que ao menos … tinham cor. Uma vez perguntara a mãe porque ela se chamava Alba. Fazendo festinhas na sua testa, respondeu-lhe “porque caíste numa tina de leite e te transformaste na menina branquinha de caracóis louros mais linda deste mundo que amo tanto”. Sempre achou pateta essa explicação, mas vinha de sua mãe que lhe derretia o coração, que imaginava gélido como a sua pele sugeria. Foram, não obstante, três anos depressivos e não havia outro modo que apanhar o comboio rumando à casa. As alergias do campo, passaram a ser um problema secundário. Preferia tê-las a estar no burgo, onde domina o artificial. Fez treze anos e decidiu que tinha de voltar. Ao seu verdadeiro lar.

Precisava de ar fresco, de correr pelo vale, rolar-se pela grama do jardim natural, mesmo à porta da sua casa. Precisava de encher os seus pulmões, absorvendo tudo o que a natureza lhe pudesse proporcionar cada vez que inalava o perfume que a aragem outonal lhe trazia.

Retomaria nesse dia o hábito de visitar a sua avó, que morava no lado oeste da sua casa e que se recusava terminantemente a deixar a sua vida solitária, numa altura em que já levava sobre os ombros setenta e tantos anos. Para Alba, ainda bem que fosse assim. As suas visitas não eram mais do que um pretexto para percorrer a floresta. Preparou com esmero tudo o que era necessário levar. Cantil, saco para os primeiros socorros, cremes para alergias, repelente e alguns artigos de caça, como a sua fisga e seixos.

A temperatura ameaçava baixar. A mãe aconselhou-a a agasalhar-se, não fosse o vento piorar a tosse, que já trazia da cidade.

– Que é da minha capa? – Perguntou à mãe que de início não entendia – Aquela cinzento-esverdeada.

– Ah, despachei-a há dias. Estava muito gasta e cresceste. Mas, comprei-te outra, vais adorar!

Alba ficou chocada quando a viu. Era de vermelho vivo.

– Ó mãe, o que foste fazer! – Protestou.

– Mas, esta cor é lindíssima!

– O que vou fazer feita uma arara numa floresta como a nossa?!

Não havia escolha, porém. Ou envergaria a capa ou seria indefinidamente adiada a caminhada. Num gesto brusco de revolta, enfiou a repugnante vestimenta, seguindo-se a mochila, zarpou da casa sem qualquer despedida.

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Conhecia a folhagem, o perfume da caruma, a gradação dos verdes, dos castanhos que se alaranjavam primeiro nessa altura do ano. Escutava o murmurejar da floresta ao sabor dos ventos, maravilhava-se com a miríade de cores que a luz do sol criava ao penetrar por entre as árvores. Conhecia a toca dos pequenos esquilos e de outros roedores que saltitavam pelos troncos e ramos, os coelhos do bosque e as lebres, reconhecia as nuances do caminho pelo coaxar dos sapos, o grasnar das aves do rio, chegaria perto do daquele troço com água corrente com o crocitar dos corvos. Sabia dos caracóis, dos lagartos e centopeias. Dos melros e rouxinóis que mudariam de melodia consoante o temperamento do céu. Céu este ostentando-se azul, palco do majestoso vôo das águias, falcões e outras aves de rapina.

No temporal, ela transformar-se-ia numa gigante caixa percussão, com a batida das gotas de chuva, fazendo-se acompanhar do ribombo da trovoada, e de mais outros sons dos animais saudando a água que lhes é benta.

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A noite era para outros inquilinos, que se manifestavam sob a forma de pios, arrulhos, zumbidos, sibilos, ora prolongados, ora ritmados, e de outros sons que a escuridão tornava mais audíveis, melopeia que acompanharia o cricrilar dos grilos e a dança dos pirilampos, sob os auspícios das estrelas ou da Lua, que regularmente prendava com uma visita casamenteira.

A floresta viu-a crescer. Sorriu-lhe desde o dia do seu primeiro piquenique com a mãe junto ao rio, quando deu os primeiros passos, despertando a curiosidade dos pequenos peluches. Nesse dia o canto da passarada ouviu-se como uma sinfonia, donde se surpreendiam camadas de chilreio, cada uma com o seu motivo e ritmo, mas todas fazendo parte de um todo harmónico, talvez pelo vislumbre por aquela criatura humana tão frágil, tão à mercê de tudo à sua volta, tão branquinha a que a floresta se iria habituar.

Não poucas vezes, as árvores escutaram os seus lamentos, pensamentos em alto, os seus desejos, conversaram com ela nos seus sonhos. A sua condição de ser diferente do próximo aproximou-a do seu meio. Aí todos os animais eram diferentes e ninguém se importaria com a diversidade que a natureza para cada um determinou.

Todos pareciam entendê-la, pela linguagem que ela emanava, ao passar suavemente por eles. Criava nomes para alguns que encontrava, inspirados das fábulas e contos mágicos que devorava avidamente. Havia então a aranha Myriam, a gazela Mahalia, o cágado Kapo, os irmãos texugos Saxo e Phonix, e tantos outros que lhe eram especiais. Visitava-os constantemente no seu meio, falava-lhes. Desde novinha sabia que deitada no chão eles se aproximariam, talvez porque assim a considerariam à sua altura. Eles eram o seu próximo, algo que sentido algum faria na vida da cidade.

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A floresta foi a sua escola, onde aprendeu a subir pelas árvores, proteger-se das intempéries do tempo, a fabricar utensílios de defesa, lançar dardos, fazer uso das rochas para fins mais diversos. Compreendeu tão simplesmente que a vida era para se manter até o último reduto das nossas forças. Quem isso menosprezasse não contaria jamais para  a Natureza. Deixaria pura e simplesmente de existir.

Contudo algo mudou, não viu mais ninguém conhecido. Não ficou triste, todos eles têm o seu tempo de vida, é natural, pensou. Mas, havia sons diferentes. Eram de tensão, de desespero, gritos de fuga. Ouviam-se também os estampidos que vinham do outro lado rio, mas ecoavam pela floresta adentro, algo pouco frequente nos outros tempos. O quê teria causado estes estouros repetidos? Reflectia a menina alva de capa vermelha pelo mundo verde à sua volta.

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Por entre a ramagem densa do bosque, duas pupilas amarelo-esverdeadas fixavam-na, estudando a sua compleição física, a sua agilidade e conhecimento do terreno, registando todos os seus movimentos, seguindo o seu trajecto. Alba tinha razões para se irritar com o escarlate da sua capa.

Kika não arfava, pelo contrário reduziu a intensidade da sua respiração, retesou os seus músculos, prontificando-se, ora para dar o salto sobre o seu alvo, ora para se escapulir em caso de necessidade extrema. Calculava a energia para um ataque bem sucedido. Não seria fácil estando só, longe da sua alcateia. Ademais, estava ferida, consequências de uma derrota na disputa por uma carcaça de um pequeno javali.

Não comia havia cinco dias e uma das suas quatro crias morreu e levado por um milhafre para alimentar os seus. A caça popular e desenfreada a certos animais do outro lado de vale, provocou uma procissão de atiradores e a subsequente a maciça imigração dos lobos, os quais já começavam a ameaçar a zona outrora pacífica para onde se dirigia Alba.

Kika seguia a menina com a mestria que a natureza lhe dera, os seus passos eram pausados, por entre os arbustos, pousando as patas com a instintiva certeza de que não estorvaria o silêncio. A certa altura pausou. Observava atentamente Alba, a qual também pausou para tirar algo da sua mochila. Podia ter atacado nesse momento, mas hesitou. Queria saber que mais a menina tinha para lhe surpreender.

Da mochila saía uma rede de arremesso ladeada de pesos, que ela tinha criado anos atrás para caçar perdizes e codornizes. Ainda se lembrava da técnica que certos pescadores do rio lhe tinham ensinado e que consistia em lançá-la por forma a que os pesos se dispersassem em direcções diferentes, abrindo-a sobre a presa.

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E estava uma perdiz ao alcance, debicando os grãos de milho que previamente ela tinha lançado. Posicionou-se com a rede e esperava que a galinácea desse mais uns passos para a frente. Sem saber, fazia o mesmo a que Kika se preparava em relação a si. Sem saber ainda que as pupilas amarelo-esverdeadas focavam no seu pálido pescoço, vulnerável agora que ela se agachara à espera do assalto à perdiz, no perfeito ângulo de assalto.

A adrenalina disparou, enquanto os músculos peludos alimentavam-se de sangue, Kika salivava sem se conter. Bastaria derrubar a menina com todo o seu peso e num golpe maxilar os caninos perfurariam a traqueia. Contraiu os seus membros traseiros que lhe dariam a força para se lançar à menina de vermelho. Respirou fundo e o desfecho viria no segundo seguinte. Foi quando Alba arremessou a rede.

Deu urros de felicidade quando viu a confusa ave a querer, em vão, desenvencilhar-se da rede. Conseguira a prenda para a avó, seria um lindo guisado que prepararia. Segurou na ave, agradeceu-lhe e pediu-lhe perdão. Por fim, para que não sofresse mais, torceu-lhe o pescoço. Enquanto contemplava a sua presa, sentiu então o calafrio. A sua visão lateral abarcava o vulto de um ser possante e algo lhe disse para não reagir já.

Os gritos de sucesso de Alba, soaram a raiva de frustração a Kika. Rangia agora os dentes, tornando-os bem visíveis, as pupilas pareciam assumir o tom alaranjado. Era o tudo ou nada. Ela tinha que investir, apesar da dor que ferida se fazia sentir.

Alba olhou-a de frente, franziu as sobrancelhas de espanto.

– Kika?

A loba pôde ver os seus estrábicos olhos azuis de cristal, a sua pele alva, o loiro encaracolado da menina do bosque, a mesma que tempos já idos a acariciara e a levara de novo para a toca de onde se perdera. Sem ela se aperceber, ganhara o seu nome, porque a menina nomearia tudo por que se apaixonava. Rosnava, não obstante, de dor, de fome, de desespero de uma mãe com petizes para alimentar e ao mesmo tempo em contradição com a memória sobre alguém do passado que dela cuidara. Não obstante, de modo algum sairia do sítio sem algo nos dentes.

– És tu … Kika? Estás com fome?

Instintivamente Alba sabia o que devia fazer. Retirou da rede a perdiz inanimada e colocou-a entre elas duas, e recuou mais um metro. Kika mirava Alba que baixou os olhos, como se tentasse a reconstituir tanto quanto possível essa memória da menina. A suculenta perdiz, porém, foi mais eloquente. Assim, sem perder tempo, avançou e abocanhou a ave, retornando-se à sua posição inicial. No entanto, não saiu do lugar como se esperava. As suas orelhas deixaram de estar em riste e começou a arfar.

Alba fez um movimento de aproximação e Kika manteve-se imóvel.

– És mesmo tu, amiga. Estás tão grande e … estou a ver que já tens filhotes – sorriu.

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Então reparou na ferida. Tirou a capa, arregaçou a manga, desnudando assim o seu braço e, lentamente, estendeu-lhe a sua mão nua. Era um gesto de paz que aprendera a usar. No momento certo acariciou a cabeça peluda da loba, começando por dedilhar o pêlo farto do seu crânio, passando pela orelha. Por fim pousou a sua palma sobre a nuca ao mesmo tempo que Kika baixava completamente as orelhas. A loba ganiu de amuo, mas de afecto também.

– Vai doer um pouco, mas ficarás bem.

Esganiçou quando sentiu o desinfectante a derramar-se sobre a ferida. Rangia os dentes, mas não reagiu contra menina. Sabia que ela estava aí mais uma vez por ela e que mais uma vez ela se curaria. Alba tirou gaze da sua bolsa de socorros e enrolou-a à volta da sua perna traseira magoada. E afagou-lhe a cabeça e o focinho quando deu por fim o curativo.

– O que vieste cá fazer? – Aproximou-se do nariz da loba e deu-lhe uma lambidela, ao que esta retribuiu do mesmo jeito.

Ao longe ouviu-se mais um estampido de caçadeira, seguindo-se o uivo longo e melancólico. Desviou o seu olhar, levantou-se e tentou, em vão, localizar a sua proveniência. Quando retomou a atenção, Kika tinha já desaparecido.

Alba ficou feliz por este reencontro fortuito e pensou no que teria sido de Zorka, um lobo macho que também encontrara quando pequeno.

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No outro lado do vale, eram mais de duzentos, num tempo em que gerações de lobos se estabeleceram e procriaram. A fauna era abundante que daria a todos um espaço para a sua vida, num micro-clima onde as condições eram favoráveis a um modo relativamente sedentário de se estar, não obstante à migração sazonal das espécies. Era o local onde ninguém iria, uma espécie de santuário destes cães de uma inteligência especial, altamente organizados, letais quando o instinto obriga.

Tudo mudou quando se deu a conhecer que aquela parte do vale, o clima produziu animais com características naturais especiais, cuja carne seria bem mais benéfica para a saúde do homem do que qualquer coisa adquirida nos supermercados ou nos talhos da vila. Rumores ou meros golpes publicitários, o certo é que se gerou uma curiosidade doentia que passou a enriquecer lojas de venda de artigos de caça. Toda a gente passou a arvorar-se em ter estado nessa parte do vale. Fotografias da caçada passaram a exibir-se nas redes sociais, alimentando ainda mais o apetite, já aguçado pela inveja que se causava em uns e outros.

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Começaram a escassear coelhos, lebres, animais de maior porte como gamos, javalis, cujas cabeças acabaram embalsamados, para abrilhantarem paredes de muitas casas como troféus. Nalgumas lojas da vila começou-se a comercializar peles de linces, que diziam ser do vale, numa afirmação de orgulho pelos produtos naturais da localidade.

A procura do alimento causou rivalidades na alcateia. Vários machos emergiram com potencialidade de liderarem e luta pela liderança, instalou-se a disputa e ela tornou-se sangrenta. A fome não simpatizava nenhuma das facções, antes arrasou tudo e o vale registou mortandade entre os lobos. A fome empurrou vários para o fratricídio e canibalismo.

Zorka viu o seu semelhante dilacerado por outros lobos e a sua despedaçada carcaça ser também motivo  de outras lutas. Viu fêmeas e crias a serem o manjar de alguns. Brigou com outros por causa de uma pata de um companheiro de caça.

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Mas nada parecido com o que vira de outros animais que andavam empinados. Estes empunhavam algo, do qual saía um som aterrador e que provocava fogo. Foi numa altura em que os lobos resolveram atacar as povoações isoladas, contíguas ao seu território. O corpo desfeito de uma criança foi encontrado numa gruta com marcas evidentes do seu autor. A guerra homo-lupina não tardou a estalar.

E foi assim que o chefe do seu grupo morreu. Não por luta, pois não envolvia dentes, nem táctica. Não havia contacto físico. O seu chefe vencê-las-ia todas. Porém, desta vez  a sua glória terminou na rede que o tramou na fuga que o grupo um dia fez destes macacos pelados. Instalou-se o cerco, o chefe avançou sobre um dos caçadores, atraindo a atenção dos restantes. Zorka conseguiu, porém, desviar-se e levou o resto do grupo para um local mais seguro. E de longe observou como o chefe gania quando levou com o balázio de várias armas. Não fez barulho nenhum. Os seus olhos irradiavam a frieza de um sobrevivente que fazia questão em se manter vivo. Mirou os seus companheiros e todos entenderam que ninguém faria nada sem um sinal do novo chefe.

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Fez-se noite e então Zorka ululou, incitando outros a fazer o mesmo. Era o uivo de luto, mas de desafio também. Os pelados estes sabiam como caçá-los, por isso para sobreviverem teriam que ser mais rápidos que eles, mais fortes e organizados. Mais mortíferos.

Nessa mesma fuga sete lobos seguiram-no e ao longo de meses atacaram casas, levaram cães de guarda, galinhas, coelhos, cabras e mais animais de criação. No dia em que deu pela casa da idosa Adelaide, só lhe restaram dois companheiros, tendo uns sido mortos a tiro, outros capturados nas armadilhas metálicas espalhadas pela floresta.

Zorka e outros dois rondaram a casa por fora, certificando-se de que ninguém estava presente. Um deles subiu ao alpendre, dirigiu-se à porta de madeira. A sua pata pressionou e ela abriu-se, com o silêncio a que se habituara a usar, entrou. Mas não estava só.

– D. Adelaide, não pode viver assim. Perdoe-me a indelicadeza, mas a sua idade requer um cuidado pessoal. Esta casa está isolada e já não é segura.

– Bert, agradeço a tua atenção. Sempre cuidaste de mim depois do meu Lou ter partido. Mas estou bem, graças a  Deus. O vale foi me sempre bom e deu-me tudo o que preciso para viver – sorriu ternamente.

– Andámos a correr com os lobos e não há meio de os dizimar. Eles têm sido bastante aguerridos e arrasam tudo que mexa sobre patas.

Adelaide encolheu os ombros.

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– Faríamos o mesmo se nos tirassem o pão, não achas?

– Seja como for, D. Adelaide – suspirou – todo o cuidado é pouco. Eles atacam na calada e estão cada vez mais inteligentes. Lembram-se de muita coisa, o que é espantoso.

– Que mais podem querer com uma velhota como eu? – gargalhou.

– Não brinque. Você é uma das pessoas mais queridas aqui do vale! – Ripostou com um sorriso condescendente – em todo o caso já montei um sistema de alarme. Em caso de necessidade é só carregar no botão e estaremos prontamente aqui.

– Muito bem, Bert. Obrigada pela visita. Descansa que cumprirei à risca o que me recomendou.

– Não é uma recomendação, D. Adelaide. É uma ordem! – O lenhador deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Adelaide acompanhou-o à saída e ficou no alpendre até a carrinha desaparecer da sua vista. Porém, antes de regressar para o interior sentiu um calafrio.

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Dois lobos estavam atentos, um deles especialmente robusto e pardo, orelhas em riste. Num ápice fecha a porta da sua cozinha e inicia a trancar as janelas, quando o rugido que vinha dentro da sua casa a paralisou. Instintivamente segurou numa faca e virou a sua cara em direcção à origem do som. Não teve tempo para se horrorizar, o animal lançou-se sobre ela e ferrou-lhe no braço com os seus dentes pontiagudos. A dor teria sido lancinante, mas no momento a luta pela sobrevivência falava mais alto, sobretudo quando o predador estava em cima dela, os caninos rasgando a carne do seu membro.

Nunca imaginara que pudesse ver o último momento da sua vida sob uma besta que a devoraria de seguida. O lobo libertou então o seu braço sangrado, abriu a sua boca preparando-se para o golpe final. Adelaide nunca vira dentes tão aguçados e horrendos, nem nunca cheirara o bafo gutural de um animal. Mas decidiu que não seria carne para ninguém, muito menos para lobos. E no momento da última investida do esfomeado animal, Adelaide usou toda a força que tinha e golpeou o pescoço do atacante, repetiu outro na cara do animal que se soltou do corpo da idosa. A adrenalina que lhe restava ainda foi suficiente para desferir um derradeiro golpe que atingira na articulação do seu membro dianteiro, perfurando o coração. O lobo soltou o uivo pela vida que se esvaía naquele instante.

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Adelaide com custo conseguiu dar uns passos em direcção ao alarme e ouviu o estrondo de quem se tinha introduzido na sua casa. Preferiu esconder-se na despensa, fechando a porta o mais levemente possível. Sentia o coração a bater como que esguichando o sangue pela ferida que se abrira. Contudo, não podia fazer barulho, sobretudo quando escutou passos dentro da sua casa. Fechou os olhos e rezou.

Alba estranhou o silêncio quando entrou em casa da avó, estando as janelas abertas. Caminhou de surdina, para não surpreender fosse o que fosse. Não viu nada de anormal quando passou pelas salas de estar e de jantar, que se mantiveram arrumadas com todos os adornos no sítio, tal era a meticulosidade da D. Adelaide. O mesmo aconteceu no quarto de dormir. Dirigiu-se então para a cozinha e aí viu a porta traseira aberta, uma janela por fechar. Começou por reparar uma desarrumação fora de normal. Havia pratos e talheres no chão, a toalha de mesa fora da mesa, uma cadeira às avessas.

E por fim, sangue. Dedadas a vermelho nas bordas da mesa, no soalho, resquícios de luta, marcas de garra. E num canto, estava um animal peludo prostrado sem vida expelindo uma poça sangue.

– Avó! – Bradou aflita. Avó estás aí??

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A porta da despensa abriu-se e Adelaide apressou-se a avisar a neta do perigo. A sua mão sangrava ante o olhar horrorizado da menina. Dirigiram-se imediatamente à porta traseira, mas deram com os dois lobos barrando a saída, mostrando os dentes prontos para se usarem. O odor a sangue atiçou ainda mais a ferocidade dos dois que as cercaram. Adelaide, não obstante o desgaste físico a que se obrigara momentos antes, apertava o cabo do facalhão com mais força, protegendo Alba, enquanto esta sacava do seu bolso a sua fisga.

O olhar de Zorka era frio, no entanto lia-se nele a determinação de matar. Guardando a porta, fez sinal. O outro não se fez de rogado e rangeu os dentes, retesou os músculos e avançou. Não compreendeu o que a menina fazia com a fisga direccionada a si. Por isso, não viu, nem pôde ter esperado que um seixo fosse disparado e em menos de um segundo lhe perfurasse um dos olhos. O lobo pulou desorientado pela dor e pela visão ofuscada. Ainda assim não desistiu, os seus maxilares abriram-se em toda a sua extensão, prontos para abocanhar, projectando-se às duas, com um rugido hediondo, quando mais um seixo era catapultado, desta vez directamente para a sua garganta. Desequilibrou indo de encontro com as duas, mas sem as morder. A ferida tornou-lhe impossivel fazer uso da boca  como a Natureza previra para ele. Não uivou, produziu antes um som abafado de agonia, tossindo sofregamente sangue, antes de tombar no chão.

Aproveitou-se do hiato em que Alba se ajoelhou, tentando recuperar a fisga, caída no chão depois do embate anterior, e aproximou-se. Mas, não de frente. Quis ele dar-lhe a conhecer o seu porte, num gesto de intimidação. Moveu-se ante as duas num vai-vem sereno. Em modo frugal mirou os dois companheiros, surpreendentemente arredados da luta, mas sem dar mostras de alguma preocupação. Exibia o seu pêlo farto, escuro, orelhas em riste, peito robusto, a cauda virada para cima. Andava como se risse da situação de desespero das duas peladas que certamente tombarão a seus pés. Andava como um chefe que daria luta até o fim.

Alba sacudia-se de medo, mal imaginando ter tido a coragem de fazer uso da sua arma. Não obstante, estar desarmada pôs-se à dianteira apesar do protesto da avó e olhou frontalmente o lobo pardo.

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Este então sentiu que era altura para terminar com tudo, quando cruzaram o olhar. Porém, para surpesa da menina, não agiu logo.

Os seus olhos gélidos fixaram-se nos cristalinos de Alba, como se estivesse a lê-los. A ponta das orelhas tremelicava em contraste com o seu olhar imóvel e Alba teve a sensação de ter ouvido um curto amuo quase inaudível. E imagens começaram a inundar a cabeça do predador. Numa delas aparecia um animal de pele alva, olhos sem pupilas, de cabeça com cor doirada, que lhe dava festinhas no focinho, lhe lambia o nariz. Animal descolorado que brincava com ele e que num dia de temporal o  socorrera quando a chuva fez desabar terra sobre a sua toca.

– Zorka … – balbuciou Alba, sem ter a certeza do que estava a dizer.

Adelaide quase a desfalecer, levantou o braço com o cutelo na sua palma, interrompendo o breve momento de devaneio do lobo, encarrilando-o de novo no seu propósito assassino. Zorka baixou a cabeça ao mesmo nível do seu musculado dorso, apoiado nos seus robustos membros, arqueia as suas patas traseiras. Os músculos faciais contrairam-se, as gengivas visíveis e os caninos brilharam. Como ele salivava.

Alba entendeu, fechou os olhos e esperou pelo rugido final.

O que lhe soou, porém foi um uivo agoniante. Abriu os olhos e deparou com Zorka na acesa luta com outro animal que cravara os seus dentes no glúteo esquerdo e impedia a investida. O lobo pardo rodopiou, servindo-se do comprimento do seu corpo para alcançar o seu adversário. Mas este não era menos ágil e conseguiu evitar ser mordido. Alba aproveitou-se desse instante para soar o alarme e apanhar a sua fisga. Olhou para o intruso e reconheceu.

Kika manifestamente menor em tamanho, travava um duelo fratricida com o seu oponente, que a todo o custo queria livrar-se da dentada na sua carne. Sabendo da voracidade do lobo macho, ela meteu-se no encalço da menina e veio para a proteger. Para Alba, foi a única explicação plausível desse ataque.

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Zorka não suportou mais a dor e num momento de frouxidão dos maxilares, afastou a loba com uma patada. Sabia que a loba não daria gratuitamente por findo o duelo, teria que a imobilizar. Seguiu Kika para fora.

Ouviram-se ruídos de contacto físico, correrias, roncos ferozes, bramidos, ora claros, ora ofuscados, próprios dos momentos de luta com boca e dentes. Por fim um lamento longo de suplício, de quem fora atingido mortalmente. Seguiu-se um momento de calmia.

Alba tentou saber o que teria acontecido a Kika, mas Adelaide afastou essa possibilidade e ordenou que saíssem da cozinha por outro lado da casa. Era o que Zorka tinha também previsto. Esperou-as no fundo do corredor que daria acesso à sala de estar. Desta vez não hesitou e avançou com toda a pujança sobre elas. Poupou a avó que seguia à frente e foi rente à menina. Saltou e num ápice estava em cima de Alba, aprisionando-a com todo o seu peso. Alba inalou o forte hálito que vinha das suas entranhas, os dentes pontiagudos com resquícios de sangue, provavelmente da luta com Kika. Sabia o que lhe iria acontecer, um momento que vinha sendo adiado sucessivamente.

O lobo fixou novamente nos olhos vidrados de Alba. Escondeu as gengivas.

– Zorka … lembras-te de mim? – Sussurrou. O lobo não se mexeu, mas contemplava atentamente na menina. Alba não sentiu a agressividade esperada, porém não podia estar certa disso. Emitiu um som gutural agudo, a imitar um ganido. Fazia isto a cães, fez isso nos jogos que anos atrás teve com os dois lobos, rebolando-se pela grama. As pupilas do lobo ganharam cor.

Alba então arriscou. Fitando-o, fez um esforço e levantou a cabeça, ficando a centímetros do seu nariz. E antes que Zorka reagisse a essa acção, lambeu-lhe o focinho. E repetiu o acto, emitindo o mesmo ganido.

O lobo de repente levantou-se libertando Alba do seu peso. Manteve a sua cabeça junto à cara da menina, as orelhas baixaram, a cauda abanava-se lentamente. E lambeu o nariz incolor, a sua lingua subindo para as bochechas, permitiu que Alba afagasse a sua cara, a sua cabeça, sentisse a fartura do pêlo.

– Meu amigo. Lembras-te mesmo de mim, das nossas corridas, escondidas?

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Zorka arfava agora, como um cão ao reencontrar um amigo. Correspondeu com um ganido uivante longo. E repetiu-o como se cantasse um hino de saudade, por alguém que o entendia e que pertencia ao seu mundo. E soltou mais um. E outro.

E ao iniciar o seguinte, ouviu-se um estrondo de caçadeira. Zorka baixou as suas patas traseiras como se sentasse.  Alba confusa, contemplava o lobo sem entender o que lhe teria acontecido. O lobo ganiu pela última vez.

– Não!

Seguiu-se mais um estrépito e bala atingindo-lhe um dos maxilares, perfurando o seu crânio.

– Zorka!! – bradou Alba, manchada de sangue do animal que acabara de a reconhecer. O lobo não teve tempo de fechar os olhos, mas Alba teve a certeza que ele a reteve na sua memória que agora acabava de se apagar.

– Por pouco! – exclamou Bert.

Certificou-se que um lobo estava morto, engatou a sua arma e deu dois tiros na cabeça do segundo que ainda vivia sofregamente.

– Que sorte nossa. Ainda bem que o alarme funcionou. Tu és um anjo, Bert! – Adelaide felicitou o lenhador, dando-lhe um abraço.

– Como lhe disse todo o cuidado é pouco. Este vale já não é o que foi. Agora vamos levá-la para o centro médico, vai ter de ser vacinada contra a raiva.

Aproximou-se de Alba que ainda estava agarrada ao inanimado monstro.

– Menina estás bem? Terás que ir connosco também, para ver se estás em ordem. Tudo acabou, estão ambas livres do lobo mau.

Alba ignorou o lenhador e desatou-se a correr para fora de casa. Queria saber da Kika.

Encontrou-a deitada por trás de uma vegetação circundante. Era visível o rasgo do músculo da sua perna dianteira.

– Oh, amiga. Olha o trabalho que tiveste. Voltaste por mim – as lágrimas corriam-lhe copiosamente. Kika não respondia, apenas a enxergava impavidamente.

– Menina afaste-se, está a escurecer e vamos ter de acabar o trabalho – interrompeu Bert.

O lenhador enfia dois cartuchos na sua caçadeira e prepara-se para dar o golpe final a Kika já prostrada.

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Alba travou a sua marcha, deu uma passo à frente e barrou-lhe o caminho.

– Não, por favor, ela não! Ela tentou salvar-nos. Rogo-te que a poupes!

– Ó menina, ela é apenas um animal. E é perigosa!

– Não estaria a falar consigo se não fosse ela!

– Animais são animais! Quando têm fome atacam. Nesta zona, os lobos não entram, é o sinal que darei. As pessoas têm o direito de viver em paz na sua casa, na sua terra!

Alba não ripostou. Mas era visível a ira nos seus olhos cristalinos.

– Isto tudo era terra deles! – bramiu – Para onde eles irão? Para uma reserva como os índios?!

O lenhador emudeceu. Não havia, na verdade, mais nada a dizer, apenas cumprir o que supostamente lhe era destinado a fazer. Encolheu os ombros e suspirou.

Fitou a menina seriamente e desengatou a arma.

– Que não volte a aparecer-me pela frente! – pousou a caçadeira sobre os ombros e afastou-se em direcção à sua carrinha arrastando consigo Zorka, o orgulhoso lobo pardo, outrora o terror do outro lado do vale e agora reduzido a um monte de carne, a ser posteriormente incinerado.

Quando Alba voltou, Kika tinha desaparecido.

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Nessa noite de céu límpido, a lua crescia fulgurante. A secura do tempo tornava mais visível a sua textura de crateras, ranhuras e manchas. Seria naturalmente brindada com o mesmo coro de sons e ruídos, cânticos nocturnos de animais e insectos com zumbidos e silvos, rastejos e cricrilos. Foi assim sempre, desde o início dos tempos.

Alba interrogou-se a saber como tudo isso foi possível. Pensou em Kika e Zorka e no que teriam os seus olhos visto, no que lhe diriam se pudessem falar. Se teriam mesmo se lembrado dela e se realmente lhe pouparam de um fim crudelíssimo para o ser humano, mas de todo normal para eles. Não haverá maneira de responder, por muito que se labutasse nisso. Subsistiria apenas a crença de que nem Kika, nem Zorka queria que ela acabasse como um lobo ditaria, porque no momento da verdade viram nela como um dos seus. Era isso que preferiria.

Mas sabia que não era uma história de fadas, onde vencem os justos, os bons e perecem todos os que lhes sejam maus. No estado da natureza, não há céu, nem inferno e não se purga coisa alguma. Não há razão, nem dever-ser. Há apenas uma ordem imanente de se estar vivo, independentemente das mutações e do fortuito que ela comporte.

De longe ouvia-se um uivo longo. Desejou que fosse Kika a ecoar-lhe um adeus.

Fechou o livro de “Bambi” e desligou a luz.

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Macau, 6 de Setembro de 2019, sexta feira

© Miguel de Senna Fernandes

O CORRESPONDENTE SECRETO

Olá Ilda

A Professora Lúcia disse a todos que hoje seria o dia do correspondente secreto e eu deveria escrever a alguém da nossa escola, sem assinar o meu nome. E explicar porque te escolhi.Penso que não tenho razões porque escolher outra pessoa. Espero que tenhas a paciência de leres isto, pois sou “bafo-comprido”. Quando não olham para mim, claro.

Pois bem.

Quando te vi pela primeira vez no começo das aulas, achei que não devia falar contigo, porque não terias tempo para mim. As tuas amigas estão sempre contigo e tens sempre muito que fazer. Riem-se de tudo quanto veêm. Nunca olharam para mim. Sorte minha, pois não saberia onde me esconder. Por isso sei que não dás por mim. 

Notei que tens uns lindos olhos. Quando fugazmente eles se viram para mim, vejo quão claros e intensos eles são, que me fazem amolecer. Parecem que me dizem algo, mas também imagino muita coisa. 

Mas, confesso, tenho fraquezas e fico com a cara vermelha se me olharem muito tempo. Detesto isso!

Quando sei que estás por aí, fico feliz e imagino-te bem perto de mim, a conversar comigo, a olhar-me nos olhos, a responder milhares de perguntas que teria para te fazer, a ouvir música. Não a dançar, porque não tenho jeito para isso e não gosto imaginar-te a rires-te de mim. 

Não posso esquecer do dia do nosso passeio escolar a Hong Kong. Fiquei surpreendido ao ver-te de sapatilhas, ganga e camisola vermelha, algo tão invulgar em ti. Estavas tão bem. De certeza que todos tinham os olhos em cima de ti. Os meus estavam também, embora não gostaria que reparasses que tinhas toda a minha atenção. Cansa muito olhar assim, mas não tinha outro modo. Vi um lugar vago a teu lado,  não tive é coragem de ocupá-lo. As tuas amigas não me perdoariam. Não sobreviveria à zombaria daquela “fantocheira” Patrícia. No entanto, escolhi o assento mais próximo possível de ti, ainda que remoesse de pena, pois a cadeira a teu lado permaneceu vaga. No Museu da Ciência, por um momento, estavas perto quando o Professor Germano passou pela secção dos esqueletos dos animais. Enchi-me de coragem e pus-me a falar sobre isso aos meus colegas da turma. Talvez assim pudesses também aproximar-te. Tive a certeza de que não tinha falado alto de mais, mas mesmo assim arrependi-me. Foi ridículo isso de me destacar, quando nem se quer disso deste conta.

Gostaria tanto que soubesses o que vem na minha cabeça

Nunca experimentei isso que se chama de ciúmes. Achei sempre que isso seria coisa ridícula de menina, até o momento em que senti o aperto do coração, quando vi o Afonso Vaz a dançar contigo, no baile do Natal. É indescritível como é essa sensação de perda e de revolta. Mas, o mais grave é que não sou ninguém, para sentir fosse o que fosse, não tenho estatuto no teu coração.

A carta não logrou sequer sê-la porque não chegou ao seu destino, parou antes num caixote de lixo junto à entrada da turma 9B, à semelhança de tantos outros papéis, embrulhos, pacotes e objectos sem importância, que aí se lançam ao abandono, por razões que ninguém se daria ao trabalho de saber.

Tal como aí se encontrava também um sobrescrito côr-de-rosa, dirigida a um “Rafael Augusto”, nele se incluía uma folha onde se lia qualquer coisa como: 

 Bom dia,

Estás bom, Rafa? Espero que não leves a mal que te trate assim, tal como os teus amigos o fazem.

Estou a escrever-te porque a Professora Mónica da minha turma, disse a todos que enviassem uma carta à pessoa da livre escolha de cada um. Hoje é dia do correspondente secreto, acho que a tua professora também vos disse para fazer o mesmo. Não poderia revelar o meu nome, referiu, mas teria de explicar porque te escolhi.

Julgo que não tenho razões para escolher outra pessoa. Espero que tenhas a paciência de leres até o fim. Não sou boa a sintetizar ideias e se calhar serei chata. É que, não sei se terei coragem de te dizer à tua frente o que sairá agora da minha esferográfica. Estou tão nervosa, acredita.

Quando te vi pela primeira vez no começo das aulas, achei que eras diferente dos outros colegas. Estes apenas queriam chamar atenção e faziam disparates sem graça alguma, mas tu estavas num outro mundo. Tinhas outras coisas na tua cabeça, com certeza, não parecias ter paciência para ninguém. Eu tinha que olhar muito para ti para ao menos saber se olhavas para mim. As minhas amigas são umas parvas, riem-se de tudo, pois tal como os rapazes, também querem chamar atenção. Mas, não tenho jeito para estas coisas e por isso, sei que não reparas em mim.

Contudo, quando consigo que me olhes, vejo naqueles olhos castanhos uma pessoa dócil, pronto para me ouvir. Tens um olhar tão intenso.

Fico feliz quando estás no recreio, no entanto nunca quis dar-te a impressão de andar a perseguir-te. Assim, permaneci sempre longe de ti. Mas, imagino-me perto de ti, a ouvir-te, a responder às perguntas que terias de me fazer, se é que existiriam. Dançarias comigo, embora saiba que os rapazes não gostam de dançar. Dançaria contigo de qualquer modo.

Gostaria tanto que sentisses um fraquinho por mim, nem sei como tive a coragem de admitir isso.

Lembro-me tão bem do nosso passeio a Hong Kong. No Museu da Ciência, pude escutar-te a explicar sobre o esqueleto dos animais aos colegas. Estava como sempre afastada, mas a tua voz soava bem ao longe. Nunca pensei que soubesses tanto e que falasses, pois sempre te achei distante a pensar noutras coisas. Nesse dia, chateei-me com as minhas  amigas. Tínhamos combinado ir de macacão azul, sapatilhas, meias brancas, eu de camisola vermelha, elas de outras cores. Achei uma ideia boa, pois podia usar outro tipo de roupa diferente do usual e, quem sabe, talvez pudesse chamar a tua atenção. Qual não foi o meu choque e embaraço, fui a única que assim apareceu no cais. Senti-me atraiçoada, pois detesto ser o foco de tudo. E proibi que se sentassem ao meu lado. No fundo, confesso, alimentava também esperança de que pudesses sentar-te nessa cadeira vazia. Não faz mal, ficaste umas cadeiras mais perto, dei-me por satisfeita. Ainda bem que elas estavam longe de ti, pois algo me diz que a mais espalhafatosa de todas gosta de ti.

Não penses mal de mim, com esta carta tão atrevida. Precisava de desabafar e o que melhor do que escolher alguém que tem a ver com isso tudo, sem que ele saiba quem seja eu? 

Precisava que soubesses, ainda que em vão, que no baile do Natal, não queria dançar com ninguém. Antes, ter uma oportunidade para conversar contigo e dizer-te tudo o que vinha na alma. Nunca bebi nada de alcoólico, mas precisei dele para ganhar coragem. Um deles conseguiu trazer vodka e bebi. Andei a olhar para todos os cantos à tua procura. E o Afonso não parava de por mais bebida no meu copo. Se calhar já sabes, essas bebidas ora põem-te triste ou então bem alegre, e eu não resisti. Dancei com o Afonso e senti que ele se agarrava a mim. A minha cabeça dava voltas e vi muitas coisas. Não tive a certeza mas fiquei  com a impressão de que olhavas para mim, e era triste o teu olhar. E de repente acordei e parei de dançar. Mas já não estavas. 

Se calhar nunca estiveste.  Queria tanto que soubesses.

Nunca o mesmo caixote experimentara tamanha revolução, como nesse fim da tarde. Na verdade, para quê vasculhá-lo, e recuperar o quê? O que passou ao abandono, nunca retrocederia à sua condição anterior. Mas, vira Rafa a confusão de papéis à volta do receptáculo, como se fora obra de alguém que, tal qual ele, quisesse à força reaver o que lá pusera. E para ele era uma questão vida ou morte, morte de vergonha, uma espécie de calvário que se adivinharia enfrentar, se por um infortúnio, a sua missiva caísse em mãos dúbias. Ainda que anónima, eles adivinhariam quem teria sido o autor, a chacota de que seria alvo e a depressão que se lhe seguiria. Que ousadia, foi aquela? 

As suas mãos remexeram, escarafuncharam a seu mando. Mesmo sem ver o que continha o caixote, ao menos tactear os objectos com a esperança de apalpar o sobrescrito, cuja textura já conhecera, depois de tantas noites a decidir se o deveria enviar. Ao cabo de quinze minutos de frenético resgate, suspirou fundo. Encontrou-o. O alívio sabia bem melhor que uma positiva a Matemática. Puxou-o para si, desinteressando-se do resto que a sua mão ia tocando no seu trajecto para fora.

E o sobrescrito não era o dele. Era de côr-de-rosa, com a letra que não era dele. Corou e sentiu o ardor nas orelhas ao ler o seu nome. Mas sentiu que não estava só no corredor naquele fim da tarde. Não se atreveu logo a ver quem era, mas já sentia uns olhos castanhos e redondos fitando-o intensamente. Nas mãos, a menina segurava a carta que ele andava à procura. 

Ilda sorriu-lhe.

 

9 de Agosto de 2019, sexta feira 

© Miguel de Senna Fernandes

A VEZ DO NATAL

Era mais uma vez.

Como tantas vezes sem conta, ele se sentava diante dela, contando-lhe histórias sobre o seu dia, o trabalho, o chefe, o cão Sebastião, a mercearia Kong Kei que preferia a qualquer supermercado de Macau, entre outras coisas.

 

“Sabes, o Gonçalo já sabe ler as anedotas dos jornais! Aquele mesmo pequerrucho, já sabe ler! Juro, não acreditas, né? A Alzira escreveu e…”

 

Prosseguia por aí fora, especialmente quando se tratava deste, o seu neto mais novo de três anos.

“Exactamente! Ainda me recordo da Alzira no primeiro Natal que passámos na casa da Barra, a dizer que gostaria de ter uma prenda, e que essa prenda fosse um filho. E ele se chamaria Gonçalo! Tinha ela 6 anos” – ria-se.

“Nem pensar, filha, mulher de agora não se casa cedo!” dizias tu!, ai eu não me continha com essa!” – gargalhava tentando caricaturá-la.

E aí ficava Afonso a conversar com a mulher, durante a tarde de todas as tardes, numa viva cavaqueira em que ele encarnava ambos os interlocutores, ora fazendo-lhe perguntas e respondendo por ela, ora retorquindo ao que imaginava ser as suas interrogações. Empolgava-se e dramatizava as histórias que relatava, discutia e contra-argumentava, ante olhares de curiosos e de outros que já se habituaram ao “teatro do ngau sok”.

woman-e1544781002931.jpg– Sabes, finalmente me dei com o fogão que compraste e fiz o meu primeiro frango aí.  Oh! Lá estás tu, não está queimado não! Mais que saboroso! Vais gostar!

Todos os dias, conduzia-a ao seu canto ao lado da enfermaria e dava-lhe de comer. Não que isso fosse preciso, até porque o asilo tratava a sua mulher com todo o esmero. Mas, Afonso fazia questão de levar a canja de galinha à sua boca,  soprando meticulosamente quando estava quente, com o seu lenço pronto para qualquer descuido. Pó de talco sempre ao pé, não vá uma gota manchar o vestido de algodão de imaculado branco que ela sempre punha.

 

“Já mandei lavar aquele casaco de cabedal que adoras. Vou-to trazer na próxima vez. Nem sei porque gostas tanto dele!”  – meneava a cabeça, com ternura.

 

De Sio Ieng apenas recebia o olhar atento e intenso, de um corpo inerte prostrado numa cadeira de rodas. Não falava, não sorria. A boca, semiaberta, era a de uma espectadora atordoada, ante uma exibição artística que não compreendia. Afonso ignorava e dava-se por satisfeito. Tinha, no entanto, notado nos últimos meses que os mesmos olhos que o miravam, tinham-se tornado cada vez mais intensos, os músculos faciais já contraíam e se distendiam com maior frequência, até os dedos davam mais sinais de vida. Tudo isto era motivo de alegria, qual ovação de uma plateia cheia. Sentir a sua reacção era dádiva de Deus.

Havia vezes em que a jovialidade da conversa era mais amena.

“Estás tão linda. Mesmo depois de tantos anos” – sorria suavemente.

Afagava o rosto fino da mulher, deslizando a ponta dos dedos nas suas sobrancelhas, nas maçãs e lábios. Com eles desenhava os contornos de uma face por que se apaixonou,  onde traços de idade ainda mal se viam.

Recordava-se do dia em que  a vira pela primeira vez, na mercearia do Kong Kei, onde pararia todos os dias para uma cerveja com os seus colegas de trabalho. Num ápice sentiu que tinha de a conhecer, essa moça pequena, de movimentos suaves, de cabelos sedosos e negros como breu, a contrastar com uma pele alva, pouco usual entre chinesas que todos os dias via. Sao Ieng não se importunou, sabia quer era apreciada. Mas também não se fez de fácil. Retorquiu com um sorriso confiante e arguto. Ali, vira Afonso como aqueles olhos o faziam vergar.

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“O que me dirias se me pudesses falar?”

Perguntava-lhe naquelas vezes em que a melancolia lhe assaltava impiedosamente. Aí a conversa era menos efusiva e com mais pausas. As tardes, mais longas também. Não era a tristeza que o dominava nessas vezes, mas tão só momentos de saudade. Memórias da sua candura, nas noites de Inverno em que ela pousava a sua cabeça minúscula sobre o seu joelho. A sua voz murmurando uma canção naná que aprendera de sua mãe, quando embalava Alzira no seu berço de baloiço. Imagens dos mesmos olhos que o miravam enquanto ele lia as notícias que ela não entendia, ao cintilar dos reclames néon que vinham da rua. Registos da fragrância do seu cabelo preto, da sua fina nudez de marfim. Dos seus suspiros que diziam tudo, nas noites em que ela se lhe rendia completamente.

Amava-a, sem saber como se exprimir em chinês, amava-a sem poder saber o que ela realmente lhe diria, se falasse português.

Amava-a ainda mais, porque sabia que ela jamais seria a mesma.

“Quando é o fim disso tudo?”

Era a vez do Natal que chegava, a mais dolorosa que todos os anos Afonso experimentava. Completar-se-ia mais um ciclo, que se renovaria depois no ano seguinte, como acontecia durante quinze anos. Seria o seu equinócio da amargura, quando a solidão que o assola nas noites frias de Macau atingia o seu vértice, fazendo-lhe reviver a noite em que a viu deitada no chão inanimada.

Tinha chegado à casa depois de mais uma festa de Natal com os colegas. Não era primeira vez que voltava tocado. Nessa noite, a discussão tornou-se mais violenta, ela chamara-lhe todos os nomes que sabia em chinês e em português e ameaçara deixá-lo se a situação se mantivesse. A riposta foi um estalo. Pegou de seguida no seu casaco e fez-se à rua. “Farto” foi a palavra que se lembrou ter dito antes de bater com a porta.

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Disseram-lhe no hospital que Sao Ieng teria sofrido choque, seguido de um derrame cerebral que lhe provocara uma queda e, com isso, uma fractura na sua coluna vertebral. Nunca chegara ao seu alcance a verdadeira gravidade em que se encontrava a mulher.

Foi sempre assim durante estes anos todos. Mas desta vez a dor foi invulgarmente intensa. Talvez porque a idade começava finalmente a reclamar e a paciência, já ténue, fraquejava. Ou então, porque nada mais segurava a culpa que se forçava à tona.

“Não ligues para aquilo que vou dizer”suspirou.

“Se calhar nem sei se estou a dizer coisa com coisa.”

“Fui sempre um egoísta. Durante esse tempo todo, fiz de conta que estavas aí, pois a esperança de ter ver sã, faz-me doer menos e ajuda a vencer a minha saudade.”

“Sempre acreditei que me pudesses ouvir, mas mesmo que não, ao menos me convenci de que estava a fazer algo para me sentir melhor.”

“Não devia ter saído naquela noite, mas eu acreditava que precisava de respirar. Estava sufocado pelo nosso silêncio e perdido no fosso cada vez mais fundo entre nós. Não sabia como falar contigo.”

“Todos os natais que chegam, sei qual o meu presente. O teu silêncio e esse teu olhar que eu julgava saber ler. Sei que já faz tempo que andas à deriva. Queria fugir para não vir mais, pois nem disso darias conta” – pausou.

“Ao menos me pudesses dizer que não me perdoarias nunca mais. Sofreria muito menos!” – bradou.

Mas voltou em si.

“Mas, eu te amo e que mais poderei fazer?”lovehug

Ajoelhou-se, cerrou os olhos e escondeu a sua face no regaço da impávida Sao Ieng. Devia ter ficado assim por cerca de meia hora. Nunca o silêncio da tarde lhe fora tão sereno. O calor era estranhamente enternecedor, o coração dela palpitava com mais fulgor. Afonso não deu conta de que as mãos de Sao Ieng estavam mais trémulas, de que seus os débeis músculos retesavam-se, como antecipação de um movimento. Ele não tinha notado que a sua mão cerrada empunhava um objecto. Não entendia que ela queria livrar-se do mesmo.

crying-eyeAfonso levantou-se. Sao Ieng tinha os olhos bem fixos nele, as suas bochechas tremiam como trejeitos, o corpo agitava-se e os lábios estavam tensos. Não eram convulsões, porque as pupilas estavam maiores, e uma lágrima principiava a deslizar. Percebeu então que ensaiava um sorriso, como durante meses vinha notando.

Com esforço, Sao Ieng levantava o braço. Não era mero reflexo, era ostensivo. Afonso foi afagando o dorso da mão cerrada, suavizando a pressão dos dedos. Ela  por fim relaxou e pôde mostrar-lhe o objecto.

Afonso viu. Sentou-se.

Pôs as mãos à cara e chorou que nem um menino.

Havia muito tempo que o Natal lhe tinha sido a farsa que se resumia a uma troca vã de prendas e “boas festas”. Nunca imaginaria, porém, que desta vez ele fizesse a diferença e lhe trouxesse como presente, um velho e gasto boneco decorativo que pertencera a Alzira. Na mão de Sao Ieng estava um tosco pai natal em posição de descida, levando às costas um saco repleto de corações.

E vinha com os dizeres em chinês:

“Voltei!”

 

©Miguel de Senna Fernandes

Macau, 14 de Dezembro de 2018, sexta-feira.

 

 

NÃO MORRAS

Morri.

Tenho agora a certeza disso. Há um tempo que ando assim, sem substância, nem peso, numa inexorável leveza que me leva a pairar pela minha casa, olhando tudo à volta e de cima, numa existência volátil. Tudo é turvo, até o som das vozes é abafado. No início não ouvia a minha voz, a minha respiração, não me sentia.

Mas existo.

E sei disso porque vi um corpo inerte e dele me aproximei: tinha a cara que via todas as manhãs ao espelho. Nunca me vi de olhos fechados, mas vejo o que provavelmente o faz a Sara todas as manhãs quando acordava e me mirava com os seus olhos graciosos. Sim, tudo é turvo, pois é com esforço e determinação que me aproximo da minha mulher que já não me sente.

Já passei a fase de desespero, de desnorte, sem perceber porque não consigo reentrar nesse corpo inerte que eu sei ser meu e de me despertar nele como todas as manhãs, tomar o banho, fazer a barba, vestir-me, sair do quarto e ter o pequeno almoço à minha espera.6F630EB2-0939-4B43-B0D0-61AE1958CCD7-1798-000001C7631D7935

Porém, graças a um truque – chamemo-lhe de imaginação -, já consigo “ver-me” e assim, fazer de conta de que tenho membros, mãos, cabelo, etc. E sou do sexo masculino! Sim, porque uma vez ultrapassando a fase de aceitação da nossa condição etérea, as coisas tornam-se mais simples, vemo-nos e sentimo-nos com mais acuidade. Abstraímo-nos depois da nossa real situação e construimos um mundo e um físico à nossa volta! É assim aqui, julgo.

Não é fácil e já dei por outros como eu, que circulam por aí como presenças perdidas, uns tão confusos como eu no início, outros mais inteirados do seu estado e por sinal, mais resignados. Mas todos tristes neste purgatório, onde não se sabe se é céu, se já é inferno, nessa existência intermédia entre a vida mortal e a badalada eternidade, num vaguear errático sem fim, em busca de uma resposta à nossa condição de mero ente. À procura de quem nos possa ouvir. Estamos tão sós.

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Como eu queria falar com a Sara.

As horas não passam se é que se pode falar delas. Não consigo precisar a sequência dos eventos, o que veio primeiro ou o que passou a depois. A ausência de referências temporais torna difícil lembrar das coisas.

Numa das ocorrências, por exemplo, vejo muita gente a aparecer. Ora sós, ora acompanhados, fazendo vénias e salpicando a fotografia com água. Caras conhecidas mas tudo muito nublado. Sei quem são, e estão aí por causa da pessoa retratada. E mais uma vez me reconheço nessa fotografia. Lembro-me então que isso é funeral. O meu.

Mas o que me interessa é Sara. E ponho-me ao lado dela, sempre que a localizo, olhando todos os seus movimentos, seguindo-a de perto sem querer perdê-la de vista. Já desisti de chamar por ela, pois sei que não me ouve. Mas ao menos ter a esperança de que ela dê conta duma presença a seu lado, que o ar crie uma brisa com a minha passagem, para banhar a sua beleza.

O normal seria as pessoas ignorarem-me, ademais, nem dão por mim. Todavia, há uns que me enxergam, com aquele olhar que não deixa dúvidas de que existimos para eles, como aliás aconteceu, nessas que foram as minhas exéquias. No entanto, não consigo chegar-lhes a fala, não sou uma borboleta, nem bicho raro que sobrevoa o recinto nessas ocasiões. Não consigo pedir-lhes nada. Nada para os ouvidos da minha Sara.

Ghost-Hand-Hero-1500Estou a tentar lembrar-me do que aconteceu. Foi uma dor intensa no meu peito, julgo. Tenho a impressão de que estava em casa e li uma coisa qualquer, sem poder precisar, neste momento, que relevância isso tem.

Mas não consigo concentrar-me por ora, pois a Sara não pára de andar de um lado para o outro. Não quero perder-lhe o rasto.

Vejo-a sentada na cama. Deve estar cansada, pois o dia foi demasiado pesado, calculo. É obra ter de aturar tanta gente e suportar os abraços, beijos, palavras de conforto e de solidariedade, flores, tudo para resgatá-la do desgosto que, afinal, só ela compreende em toda a sua extensão. Suponho que tenha chorado, mas não tenho a certeza. A névoa não me permitiu presenciar isso, se calhar ainda bem. Mas aí está ela, sentada na borda da cama, cismando. Não sabia quando ela começou a fumar. Quando começou a beber. Os cigarros sucedem-se assim como os goles dessa bebida amarelo-bronzeada, que me lembro se chamar uísque.

whiskey-tasting-1-700x461 (1)Levanta-se e verte mais um pouco desse néctar no seu copo, servindo-se de um gole, enquanto despe o negro do seu corpo. Leva a bebida – e a garrafa, suponho – e entra na casa de banho, onde a água já jorra sobre a tina.

Nua, Sara sente-se na borda da tina com o copo renovado de bebida. Com a outra mão tapa a cara, enquanto franze a testa. Sei que soluça. Sorve-o uísque num trago e de seguida introduz-se na água, que calculo ser morna. Ela não se mexe, de quando em vez os seus dedos tacteiam os seus seios, o seu joelho, em gestos lentos e suaves, enquanto a água jorra sobre o dorso dos seus leves pés. E mais um gole atravessa a sua garganta, visível quando estica o seu esguio pescoço ao pousar a sua nuca sobre a borda da banheira.

Que saudades tenho desse corpo que me invoca tantas imagens, dos dias em que tinha mais tempo para ela, em que eu era um ninguém, sem os títulos executivos, sem as viagens prolongadas que tinha de fazer pelo mundo fora, em troco da fortuna imensa que fui fazendo. Dias de chau min com coca-cola, van tan min no velho Vai Kei, beijocada, marmelada e tanta cumplicidade marota ao escuro do CineTeatro.

Saudades da nossa cama, das unhas compridas a arranharem desenhos do imaginário no meu peito, das pupilas dilatadas desses seus olhos nos meus, quando por cima dela e encharcado de suor a possuía loucamente, desses dedos de pé que me faziam festinhas nas têmporas, enquanto se reafirmavam com ardor as nossas juras de amor.

sleeping bath2Mais um gole. E ela repõe o copo vazio com mais bebida. O seu olhar é cada vez mais vago, inerte, sem destino. De solidão, de derrota. De desintegração. Gostaria de penetrar na sua cabeça para saber o que sente, ao menos para aplacar o que pesa dentro dela. Ao menos para lhe dizer que sei o que é estar só.

Enche o copo mais uma vez. Mas desta vez acaba por não beber nada, porque deixa a bebida entornar-se no seu peito. Seus olhos semicerram e resta pouco para fecharem completamente. Pressinto que algo de mau está prestes a acontecer.

O seu corpo cede e começa a deslizar-se para dentro da água, sem que ela tenha noção disso. Ou será que tem?

Imagens do regresso da minha longa ida ao Brasil aparecem. E lembro-me da minha promessa – mais uma – de que a viagem seria a última do género e me dedicaria de futuro só a ela. Fiquei aí mais uma semana do que o previsto, por causa de uma reunião executiva de alto nível, marcada à última hora, “a que não podia faltar”. Vejo-me a entrar em casa e a estranhar o silêncio, enquanto pouso a bagagem. Dirijo-me ao quarto, impecavelmente arrumado. Solto a minha gravata e quando a coloco no armário deparo com a ausência do seu vestuário.

Sara agora não desperta, a sua cabeça imersa na água que não pára de encher a tina.

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Visões assaltam-me agora com mais persistência. Em casa deixa-se de haver rasto da minha mulher. Ligo para os telefones que conheço, mas nenhum dá sinal. Procuro a informação que me leve ao menos a calcular o seu paradeiro. Em vão.

E aparece-me um bilhete sobre a cabeceira, sobre o qual pousa o seu anel de casamento.

“Fernando,

Quando leres isto, estarei longe de ti. De vez. Perdoa-me a fraqueza, mas não aguento mais. Não posso viver assim. Custa-me a escrever isso, faltam-me palavras. Não vou desenvolver mais, pois não quero que me falte a coragem de dar este passo.

Encontrei outra pessoa.

Até sempre Fernando. Cuida-te.

Sara”

Bolhas saem do nariz da Sara que entra num estado de dormência debaixo da água a atingir a borda. Ela não tosse e não acorda.

Vejo-me andar de um lado para o outro em busca de uma explicação. Não podia, então, crer que a minha mulher me deixasse, quando acabei de voltar de  uma viagem coroada de sucesso, aquela que seria o ponto de viragem para as nossas vidas. Que ela saberia do quanto me custou subir na empresa? Todo o seu conforto na casa tem sangue e suor meu. Todas as viagens em primeira classe para as cidades mais conhecidas do mundo, são pagas com o quê?! E ela traiu-me enquanto lá fora me escravizava por uma vida melhor!

sleeping bathEstava furibundo, revoltado contra a crueldade da minha mulher, contra a sua leviandade e leveza do seu espírito. Contra a indecência da sua condição de mulher casada. Recorri-me a todos os pensamentos mais odiosos contra ela. Não podia admitir que ela gemesse com outro homem. O meu coração bombeava intensamente e carburava mais ódio. Mais ainda, quando enchi os pulmões e gritei-lhe todos os nomes mais horripilantes que o meu extenso vocabulário me permitia, atirando de seguida o meu anel contra a parede.

Tinha esgotado o meu arsenal de argumentos justificativos da minha ira. Arfava de nojo por ela. Olhei para o nosso quarto largo e todas as comodidades existentes, caprichos de um homem de sucesso e me interroguei, se essa imensa cama continuava a fazer sentido. O silêncio era absoluto, neste meu apartamento do quadragésimo quinto andar forrado de vidros duplos.

Porém, dei-me de súbito por me sentir mal, tal qual quando a consciência duvida da seriedade da nossa animosidade. Náuseas por um sentimento forte mas artificioso de que fazemos uso, quando nos falta a ousadia para enfrentar as nossas fraquezas. Mormente a verdade sobre a podridão que nos vai corroendo, à medida que nos vamos esquecendo da pureza dos primeiros anos do nosso ímpeto. Quanto a mim, um sentimento de cobardia, para encobrir um egoísmo atroz que afinal minara o que havia de bom e de belo entre nós dois.

originalSerá que cheguei tarde? Terei mais uma vez decidido unilateralmente o que era melhor para nós dois? E os filhos que andámos por planear? E a viagem de cruzeiro no  Mar Egeu que ficou na prateleira? E as tardes a fazer nada mais que encostados um ao outro a saborear o sol? E as noites a fazer amor para o deleite da Lua e as estrelas que a acompanham? E outras tantas promessas, possíveis e impossíveis de uma vida a dois, só para dois?

Apanhei o anel, repú-lo no meu dedo e deitei-me na cama.

Cheguei mesmo tarde. Fiz merda, não fiz?! O meu coração respondia à martelada.

Sara agora não respira. O meu desespero é incontável. Impotente em fazer fosse o que fosse e assistir o fim da minha amada. Não consigo tirá-la da água, pelo menos ainda não encontrei truques para o fazer. Ao mesmo tempo, revivo as imagens que voltam a tomar conta de mim. A respiração  a escassear e o meu corpo a transpirar, enquanto prostrado na cama abraçado à última carta da Sara. Indolência com formigueiro percorria em toda a extensão do meu braço.

Sara!”, brado alto, junto à superfície da água, que se mantém lisa, por mais esforço que faça para a agitar.

Ressinto a picada forte no meu coração, que me levou a arquear  as costas e levantar o peito. Faltou-me a respiração, a minha cabeça pressionou forte sobre o colchão, a minha mão machucava a carta, meus músculos faciais retesavam-se.

De súbito a dor pausou e recuperei a respiração. Estava encharcado de suor.

Mergulho na água, mas não senti densidade nenhuma, era como se ela não existisse. Olho para a Sara que não mexe mais, o corpo não reage, não leio sinais de animação.

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“Acorda, Sara, por favor….acorda! Tu não, não mereces isto. Não mereces fazer isto…por mim. Sara, suplico-te! Acor…”

Não termino a frase, porque a dor retorna e transporta-me de novo para cama, agarrado à carta. Revivo intensamente este momento como que duas vivências temporais se encontram acopladas numa só. O golpe desta vez foi mais forte, como uma lança a trespassar-me o peito, numa violência lancinante. O meu braço esquerdo, como que electrizado não movia.

“Saraaaaa!”

Mais uma investida no coração e não consegui enxergar mais.

Escuro. Mortalmente escuro.

Porém, lentamente a claridade foi aparecendo. Comecei a ver, olhando para todo o lado, sem norte. Sem cima, nem baixo. E tudo turvo.

Assisti o meu fim, como um filme que se revê.

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AAAHHHHH!” O suspiro não é meu. É finalmente da Sara.

“Estás?”

“Consegues ver-me?” Estou incrédulo.

Sara assente.

Nada é turvo agora. Vejo-a nitidamente, como se usasse óculos com graduação correcta, num dia límpido e solarengo. Todos os sinais da sua face, a pele fina do seu pescoço, os seus cabelos escuros com madeixas loiras, olhos castanho-claros. Em todo esse tempo, é a primeira vez que sorrio.

Mas depressa também me arrepio.

Os seus olhos não pestanejam, antes denunciando lágrimas e querem seguir todos os meus movimentos. Ela consegue ver e ouvir-me. Como o choro faz dela uma mulher tão adorável.

Abraço-a como há muito não fazia. Aperto-a com toda a força que conhecia.

“Desculpa, Fernando”. Balbucia.

“Não meu amor, não digas isto”.

“Deste-me a oportunidade de o dizer. E estiveste ao meu lado, depois que eu te deixei.”

“Quis ficar para te dizer que estou bem e que não te preocupes comigo. E mais …  perdoa-me por estes anos de abandono. Não tens culpa de nada. No teu lugar faria o mesmo”.

“Basta, Fernando. Estamos juntos é o que interessa.” 1_ShMcGMaSz-ZtQR_0ZWmpJQ

“Estamos, amor. Mas, isto não é lugar para ti, nem para mim. Não é para mim, pois aqui solidão é cruel e injusta. Não é para ti, porque não é assim que deves vir. Volta para trás enquanto puderes, que viverás mais feliz. Acredita, que estou bem e é isso que te peço, pelo amor que tenho por ti.”

Os cristalinos olhos da Sara tremem húmidos, num misto de compreensão e de gratidão. Mas de pena também, porque no fundo, querendo estar comigo, sabe que eu tenho razão.

Fernando…”. Tapei-lhe a boca.

Não morras, meu amor.”

Beijo longo, como teriam sido muitos outros no Mar Egeu, sob os auspícios da Lua e do seu séquito de estrelas. Os nossos olhos não fecham, para contarem tudo um ao outro, o que para tanto palavras não existem, nesta derradeira oportunidade. Até que a névoa volta a aparecer, turvando a minha visão da Sara, minha linda Sara.

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Desta vez encontro-me a sorrir de gratidão a quem deverá recebê-la.

Oiço o som abafado de quem está a tossir, a fazer lembrar dos tempos de miúdo das minhas aulas de natação, lutando para estar à tona e expelindo água que a inexperiência me fazia engolir.

Por fim, o mesmo suspiro prolongado.

Não me fui embora. Quis ter a certeza de que tudo esteja bem. Olho para a Sara e observo um semblante sereno. Dorme profundamente como consigo constatar pela sua respiração pausada. Noto uma leve curvatura para cima em cada canto dos seus lábios finos, como quem inicia um sorriso.

Não há nada mais fascinante que apreciar a nossa amada a dormir. A sua face é aquela que nada tem a esconder, sem defesas, sem pantomima, face que tão-só faz transluzir um estado de alguém completamente entregue às cores do seu imo. E se é bela, ela o é ainda mais, quando mergulhada na paz do seu sono. A minha Sara é isso.

Suspiro de saudade antecipada. Não há melancolia, porém. Apenas a certeza de que a amo. Eternamente.

E abre-se luz no meu caminho. Não estou só e agora sei para onde vou.

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É altura de partir.

 

19 de Outubro de 2018, sexta feira.

© Miguel de Senna Fernandes                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

BETSY, no último dia da sua vida

METICULOSAMENTE, o seu pincel deslizava sobre a borda da sua pálpebra esquerda. Aquele tom preto reluzente dava-lhe finalmente a satisfação que já não conhecia havia algum tempo, depois de tanto vasculhar por todas as casas de cosméticos do burgo. Agora sim, os seus olhos destacavam-se claramente. Como ele gostava deles.

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Mirou-se ao espelho. A sua nudez denunciava a leveza do seu corpo delgado, de pele alva amarfinada, de seios pequenos, braços esguios, dedos de fada, sobre pés de menina. Dava graças ao Divino que a aspereza da sua vida fora benevolente ao seu corpo elegante, que não carecia de veste alguma para se enaltecer.

Nessa última noite da sua vida, Betsy preparava-se religiosamente para o evento mais importante da sua existência. Dera tantas voltas e finalmente chegara o momento que tanto sonhara. Iria ser a noite. A maquilhagem, o cheong-sam (1), as unhas de rubro escuro, de comprimento conservador, o penteado clássico a Audrey Hepburn, os saltos, tudo previsto até ao pormenor. À medida que a  escovinha de rimmel levantava as pestanas, o coração batia a um ritmo que não conhecia, como se vivesse dentro de um corpo alheio. Uma ponta de saliva crescia no canto dos seus lábios por pintar. Lábios de malabarismos que tanto prazer lhe dera.

Sorriu, quando se lembrara da noite duas semanas volvidas, em que Terrence lhe dissera que era altura de a apresentar à sua mãe. Nessa noite, ele saiu da sua casa às duas da manhã, mas ela não dormiu. A adrenalina atingia níveis pouco usuais, o seu coração pulsava a ritmo mais forte.

Uma nova prova se avizinhava.

Recordara que no passado, por duas vezes tivera a experiência da noite decisiva. Dois homens que supostamente iriam pôr fim à sua vida sub-canina e sem sentido, não lograram cumprir o desiderato. Ricky empresário de sucesso de Hong Kong, viúvo de  sessenta e dois anos e sem filhos, depois de lhe ter oferecido um anel de diamante, morre de ataque cardíaco no momento em que lhe iria pedir a mão. Seguiu-se Jason que se arrogava de dono de uma sala VIP de um casino, que lhe levara a viajar pela Europa fora, a alojara em hotéis estrelados e a deliciou em restaurantes michelânicos. O casório teria acontecido se ele não tivesse que se pôr em debandada. Soube-se depois que afinal era mero “bate-fichas” e surripiara dinheiro do seu patrão, um sujeito que fazia tão bem as contas, quanto  resolvia os problemas de desvios a tiro e facada. E antes de se ir embora “por tempo que ele próprio não sabia quanto”, pediu-lhe o anel de diamante, para comprar o seu bilhete de avião.

Por duas vezes tivera de regressar à realidade depois de sonhar alto, por uma vida condigna, de civilidade, sem problemas de renda, cheiros hediondos de dejectos no corredor do seu prédio, gente sub-humana, camafeus, agiotas e pregos. Por duas vezes chorara pela sua sina de calvário e se revoltara contra a injustiça do Divino que recaíra sobre ela, pobre rapariga de quase trinta anos que apenas suspirava por um lugar ao sol.ladypop.jpg

Betsy nascera Pek Si. Os pais, oriundos de uma aldeia nos limítrofes de Foshan, Província de Cantão, entraram em Macau clandestinamente, onde se estabeleceram no “bairro de lata” então ainda existente na zona norte da cidade. Ele conseguiu um emprego na construção civil, transportando tijolos e ela como lava-loiças de vários estabelecimentos de comidas da zona. Já nessa altura os ilegais  estavam sob controlo apertado das autoridades policiais. Era usual verem os seus vizinhos serem caçados e recambiados para lá das Portas do Cerco. Mas, sem drama algum, pois ao cabo de um mês acabariam por se re-introduzirem em Macau de uma ou doutra forma. Ele não teve tanta sorte, porém, quando o mal se abatera sobre si num dia em que ele trepava pela estrutura de bambu, transportando os usuais quilos de tijolo acima. O assalto de pânico não distinguia vítimas e ele descontrolou-se, caindo do segundo piso. Não morreu, mas de maca saía escoltado de Macau, para nunca mais poder regressar.

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Pek Si, não frequentou a escola como as crianças normais de Macau, não envergou uniformes limpos passados a ferro, nem teve mãe para lhe fazer festinhas. Conheceu quatro paredes num cubículo de lata, onde se penduravam também utensílios vários, desde tesouras, panos de limpeza e canecas de lata para água e escovas de dentes. O papel de jornal era a coisa melhor que se podia ter, pois servia de tapa-buracos, toalha de mesa, limpa-vidros e reforço de cobertor em tempos de frio húmido e implacável do Inverno. O odor a almíscar, mesclado com o de gengibre e peixe da noite anterior, o ar quente que não circulava, era assim na cela que se chamava casa.

De nada lhe valeu a “Operação Dragão” (2) em 1990, destinada a reconhecer os imigrantes ilegais que o Governo de Macau na altura levara a cabo. Apesar de ter conseguido obter um documento de identificação, de ser já gente, as condições de vida não alteraram. A mãe continuou a lavar loiça e ela crescendo em paredes meias com a qualidade de vida, com a qual nunca comungara e sempre a fugir-lhe a meros centímetros de distância.

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Dinheiro passou a ser uma razão de ser, porventura a mais importante. Não compra a felicidade, estava enjoada de ouvir, mas era fundamental para a atingir. Preferiria estar doente sendo rica, a sadia sendo pindérica. É deprimente ser pobre, chorava para os botões.

Teria que dar um salto para um mundo fora do de Pek Si. De se chamar outra coisa. Betsy foi o que ouvira numa noite de devaneio, quando um bife a chamara no meio de copos, piropos e apalpadelas. Nunca mais respondera a quem pronunciasse o seu nome de origem. Deixou crescer o seu cabelo para além dos ombros, passou a usar roupa mais ajustada e saltos altos. Os seios eram pequenos, mas sabia como compensá-los com a flexibilidade das suas ancas. Aos dezasseis anos virou boneca da noite. Viu muito homem, na maioria estafermos e cretinos.

Só com Ricky Lam e Jason Chiu, pôde experimentar o que era uma vida de gente, de ser servida com amabilidades e deferências. Limpeza. Sofreu muito quando a sorte lhe fora travada por duas vezes a milímetros do seu alcance. Entrou em estado de luto por uma semana, e quando acordou ao sétimo dia, olhou para o sol, apontou-lhe o dedo e bradou:

“Ainda não acabou!”

De facto não seria assim que previra o seu fim. Por duas vezes a hora lhe fintara, para descobrir que afinal ainda não chegara. Esboçou um sorriso, ajeitou os seus sedosos cabelos lisos, arrebitou os seios e, meneando as suas ancas experientes, caminhou para a frente em antecipado desafio à sorte  ainda por vir.

E conheceu Terrence.

Com trinta e três, era filho único de uma família distinta de Macau e Hong Kong. Aluno de Harvard, com brilhante mestrado em gestão de empresas, fino nos modos, voz mansa e de trato fácil. Houve uma altura em que até se sentia inferiorizada a seu lado, porque achava não ter a sua categoria e que só lhe faria figura triste. Mas, docilmente ele aplacava os seus temores e lhe dizia que não se importunasse com questões falsas.

Foi num caraóque com amigos, aos quais se juntaram outros amigos, reunindo-se todos numa única sala de canto. Ele destacava-se, não por falar muito ou de ser o  engraçado da turma, mas pela simplicidade de um homem que atraía respeito. Não cantaram. Falaram é muito no meio da barulheira e da desafinação descarada dos comparsas. E continuaram a falar depois sentados à beira do mural da Meia Laranja, cada um com a sua lata de cerveja, sobre tudo o que trivialmente vinha à cabeça.

As horas batiam três, ele levou-a de carro até a casa. Aí pôde ver que não era um bora-botas. O automóvel era lindo, a cheirar cabedal novo. Nunca esteve num Bentley, mas sabia que era muito mais distinto que um Mercedes ou BMW. Pela primeira vez não esperou que ele subisse. O seu trato era tão reconfortante que preferiu voltar a vê-lo no dia seguinte. E mais dias seguintes vieram. love

Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente.

Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno.

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Mas nessa noite, a última da sua vida, iria passar pelo teste da sua existência. Ela sabia que não seriam favas contadas, não se casaria com Terrence sem mais nem menos. Toda a sua vida foi construída de provações e era mais uma por onde passaria. Malgrado, não sabia que era a mais importante.

Iria encontrar-se com a pessoa de uma importância gigante para Terrence.

A mãe era uma mulher de maneiras aprumadas, com “postura imperial” como alguns conhecidos seus diziam. Naturalmente graciosa, Mabel fazia questão em se vestir bem. Mesmo nas situações mais triviais ela escolheria roupa que, sem destoar a informalidade da ocasião, evidenciaria a elegância que encarnava. wang-jila-lady.jpgTodas as semanas estaria no seu cabeleireiro, para manter o seu penteado enformado. Não era muito conversadora, mas o sorriso era garantido para todos com quem se relacionava. De estatura média, delgada de pele muito clara e lisa, aos sessenta, as suas faces mantinham o rosado jovem, duma senhora delicada, à qual os anos passaram à ilharga. Uma ou outra ruga, no canto dos seus olhos, não alteravam a jovialidade da sua aparência. Continuava “bela como nos tempos de ouro”, como suspiravam nostálgicos os cavalheiros que a conheceram jovem.

Apreciava a serenidade nas pessoas e o sentido de oportunidade de cada um. “Sem nos trairmos, somos todos circunstanciais”, dizia amiúde. Uma mulher de personalidade ferro, que nunca precisou de levantar a voz, Mabel tinha um jeito sedutor de manifestar a sua autoridade e desagrado, e atingia o alvo com pontaria de alfinete, mantendo intacta a sua calma e timbre.

Haveria que saber interpretar as suas pausas descompassadas, acompanhadas do seu olhar fixo e enigmático sorriso.

Não se abria com facilidade, mas Terrence lembrava-se de tantas ocasiões, mesmo já homem feito, em que se deleitava nos braços da mãe que lhe fazia festinhas na testa, cantarolando-lhe “Yeh Loi Heong…Yeh Loi Heong” (4) uma melodia de Xangai que aprendera em miúda, ao som do piano na telefonia.

Betsy ouviu tudo isso como uma criança diante de um conto de embalar e apaixonou-se por essa figura que por sinal também lhe será importante um dia. Dias a fio, tomou notas e memorizou tudo o que era preciso saber sobre Mabel. Até, sem querer, já ensaiava poses de elegância, tentando reproduzir a sua mulher de referência.

Nessa derradeira noite da sua vida, estava pronta. Olhou para o espelho e pôde constatar a sua postura de classe com que ela vestira. Tudo ao pormenor estudado com dias de antecedência. Não era ela, mas gostou do que vira e a vontade de ser o que estava diante dos seus olhos crescia. Suspirou, tinha que ter calma.

O seu coração ribombava. Terrence segurou-lhe a mão, mas ela recusou. Ainda não era altura.

cheongsamMabel conversava com o gerente do restaurante, sorvendo o seu chá. Estava de  cheong sam verde com tons de jade. Seus olhos abriram-se ante o deslumbramento que Betsy lhe causara, percorreram por todos os cantos da sua aparência. Terrence encontrara uma modelo, dizia para si.

Os gestos da Betsy eram brandos e pausados, sem pressa alguma. Evitou gesticular  em demasia as suas mãos, mas apenas o necessário para realçar essa ou aquela ideia. Ombros sempre rectos acompanhando a sinuosidade do seu dorso. Tinha iniciativa de conversa, mas sempre a propósito dos comentários que Terrence fazia. Betsy estava tão à-vontade que até se esquecera de que estava sob escrutínio. O olhar de Mabel brilhava a todos os detalhes que ela lhe dava. Terrence estava feliz, ao presenciar a intensidade da interacção entre estas duas mulheres mais importantes da sua vida.

O jantar decorreu conforme o previsto, sem falhas. Cumprira com mestria tudo o que foi combinado. A mãe, todo o tempo muito cordial, mas reservada. Sempre preferiu ouvir a falar. De olho atento, o seu sorriso era doce e meigo, os seus gestos limitavam-se ao mínimo como um menear da cabeça, um franzir da testa, um trejeito leve dos seus lábios, em reacção deste ou daquele comentário que se fazia ao longo da conversa amena da noite.

“Estou muito feliz por ter esta oportunidade de a conhecer. O Terrence fala-me tanto de si e consigo agora perceber a razão por que ele tem a grande admiração pela senhora.” Betsy ensaiou com timidez um cumprimento.

Terrence conhece muito bem a sua mãe”. Riram-se todos, e Terrence aproveitou a boa disposição e pousou a sua palma sobre a mão débil de Betsy. Conhece tão bem, que sabe do que gosto. Cresceu atencioso para as coisas da mãe até ao ínfimo pormenor. Coitado dele, pelos inúmeros sermões que aturou de mim.” Mais uma ronda de risada e a noite prometia. Betsy ria de coração, agora liberta de tensão. Via em Mabel a dignidade de uma mulher simples e afável. Era isso que ela gostaria de ser.

“Há alguma coisa que ele não saiba de si?” aventurou-se Betsy, apoiada agora do sorriso confiante de Terrence.

Mabel sorriu para o vácuo. De repente, tudo parou, nem música de fundo se ouvia.

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“Claro.” Pausou e depois prosseguiu. “Não sabe que a sua mãe também pode ter várias faces, fruto de muitas vidas que teve. Não sabe que a sua mãe vê o que anda a tramar e a combinar com outros para lhe agradar. Oh, como amo o meu filho, que quer sempre a sua mãe feliz. Só que muitas vezes isso tem um preço, que é o de estar preso por algo que afinal não é bom para si. Eu, como mãe, naturalmente sofrerei.”

“Não entendo o que está a dizer” sorriu Betsy ainda na onda da boa disposição reinante.

“Entendes sim, e muito. Tens uma escola de invejar, fizeste tudo com fina arte. Mas falhaste num pormenor. Foste perfeita demais.”

“Mãe… o que se passa?!”. Mabel ignorou o filho e fixou-se em Betsy.

“Estudaste muito bem a lição e deste todos os passos até ao ínfimo pormenor. É a tua experiência da vida que falta a muita gente. Confesso que gostei do teu profissionalismo, fizeste tudo do agrado de qualquer pessoa. Mas, menina … não é assim que se conquista. O meu filho não é um troféu e eu não sou parva.”

“Mas … Deve haver um equívoco. Que mal fiz eu?” . Estava atónita.

Mabel retorquiu com um sorriso. Não deixava dúvida de que algo de mal se seguia.

“Escolheste vestir a roupa que não é tua. Foste tudo menos tu própria. Não tenho tempo para estas coisas. Se queres roubar, é na rua e não na minha cara. Betsy, volta para casa e aprende melhor a lição. Tiveste a sorte de o Terrence ser meigo e inexperiente. Mas o azar teu é teres de enfrentar uma mãe-galinha como eu.

Levantou-se. “O jantar foi bom e a companhia agradável. Mas, não desejo repeti-lo. Terrence telefona ao Ah-Seng para vir buscar-me”. Saiu do restaurante.

Terrence largou logo a mão de Betsy. Era visível a sua aflição perante a situação com que não contava. Doía-lhe presenciar a rejeição da mãe. Nunca lhe tinha acontecido isso.

“Peço desculpa, isto não devia acontecer. Volto daqui a pouco, juro!” E desapareceu.

Ainda ficou por mais dez minutos. Sem fala. Por fim, saiu do restaurante, sem saber se Terrence voltara como prometera. Que importava mais, se estava tudo dito? Nunca ligou para essas coisas do destino, mas começara por acreditar que era esse o seu. Não estava com raiva, o seu coração até palpitava normalmente. Sentiu era o vazio que sugava para si a sua existência, a sua razão de ser. O vazio que vinha da desilusão, da fraqueza de Terrence perante o seu próprio destino. Da sua condição de dependência dessa rocha que ela pensava que fosse. Ele foi a primeira pessoa por quem lutaria mesmo que fosse pobre.

Bridge.jpgRespirava tenuemente enquanto caminhava pelas ruas húmidas, ante olhares de curiosos ou de indiferentes. Na Meia Laranja, tirou os saltos e lançou-os para longe. Não tinha forças para gritar como gostaria. Mas não havia mais nada por que gritar, nem revolta, nem nojo de si. Recordou as palavras de Mabel e concordara com elas: andou a cobrir-se com a roupa dos outros, como andou sobre saltos dos outros. Nada sobre o seu corpo era dela. Ela própria era um enfeite para o deleite de olhos alheios.

Lançou os brincos para o lago. Queria fazer o mesmo com o seu penteado, com as suas unhas, com a sua maquilhagem.

Surpreendeu-se quando deu por si a chorar, não de tristeza, mas de desespero de quem se quer livrar dum emplastro agarrado ao corpo. Betsy era uma invenção, uma via que se transformou num beco. Toda a sua vida fora uma miragem sem contornos. Não podia continuar a viver, porque nunca devia ter nascido. E essa fora a última noite da boneca que vestira tudo para estar junto à vitrina.denude

E prosseguiu a sua caminhada, mergulhando-se no escuro da madrugada.

No dia seguinte, transeuntes encontraram um cheong sam, uma pulseira, no mural enquanto pousavam uns saltos, um aqui outro acolá, sobre as rochas existentes no lago. Ninguém soube decifrar esse enigma, nem tão pouco dizer quem os usara. Quem se importaria?

Nunca mais se ouvira falar de Betsy.

Onze meses passaram. Os seus dedos continuavam delicados e lindos, assim como as unhas, agora mais curtas e sem verniz. Pressionavam os botões da caixa de registo das compras que se sucediam peça por peça, ante o olhar enfadado e impaciente dos clientes enfileirados. Com o seu cabelo negro segurado dentro dum boné, ela executava a tarefa maquinalmente, sem pestanejar, sem abrandar ritmo. Apenas falava quando lhe perguntavam algo ou quando tinha de usar o intercomunicador. Quem a conheceu não mais a reconheceria, se não fossem os seus olhos grandes e despertos que continuavam a irradiar algo excitante, apesar da nova vida radicalmente oposta à que levara. As faces apresentavam agora um rosado sobre as maçãs. Sem qualquer pintura, os olhos eram mais meigos, que espelhavam vulnerabilidade, mas sempre determinantes. Os seus lábios ganharam mais escarlate e destacavam-se nesse seu novo semblante, mesmo sem batom. De ganga e sapatilhas era esse o seu visual diário com que um novo universo de gente a identificava. E “Ah Pek”, o seu nome de guerra. No seu íntimo, resignara-se de que a tal hora sua não chegará jamais, pois afinal nunca teria sido sua. Malgrado, de modo algum aceitaria sair de Macau de maca. Aqui passou a ser a sua terra.

“Pek Si!”, o chamamento quebrou-lhe o fio do pensamento. Não era de homem que a conhecia, ademais, ninguém se lhe referiria nesse nome. Quis ignorar, mas traiu-a a sua cabeça quando lentamente girou para reconhecer a origem. E ficou tensa. A fila do seu balcão não parava de crescer e a pessoa não parava de a olhar. Não teve outra solução que chamar a sua colega para a substituir por um momento, para poder atendê-la.

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O silêncio manteve-se durante alguns segundos.

“Custou-me a encontrar-te, mas há meses que soube onde trabalhavas. Não vim antes, quis observar mais.” Pek Si manteve-se muda, atenta ao que se lhe seguiria. Já se tinha habituado a isso, esse tempo todo.

“Terrence não sabe que estou aqui. Aliás, há muito que não falamos. Peço apenas que me escutes até o fim. Prometo que não me verás nunca mais”.

Concordou. Mabel não quis olhá-la quando principiou.

“A minha vida nem sempre foi de sol. Conheci bem o cheiro da rua, pois vim de lá. Isso, também o Terrence não sabe.”

Pek Si de olhos fixos, não esperava isso dela.

Sei o que é fome e das manhas que temos de engendrar para sacar mais. Sei da memória que temos de conservar boa para mantermos a peta para o dia de amanhã e outros mais que lhe seguirão” sorriu. “Gastamos o tempo a escolher a nossa roupa, para nos despirmos num ápice, porque ele está com pressa. Fazemos o beicinho no momento certo e fingimos tão bem o prazer que eles nos dão. Bem sabendo que na cama ninguém nos vence, temos de saber ser frágeis e estar à mercê. No entanto, ninguém tem culpa da nossa condição, a escolha foi nossa.

Tive sorte porque consegui uma passagem para a ribalta. Não sei se amei o pai do Terrence, nem sei se devia ter-lhe agradecido por aquilo que me deu, mas eu fiz o meu trabalho e ele compensou-me. Fui uma mulher à altura dele ou pelo menos como ele esperava de mim. Deixei intacta a dignidade da sua família, mesmo depois da sua morte. Fi-lo sentir-se marido honrado, apesar das fragilidades que também teve. Podia sentir-me realizada. Todavia, o que me perturba, é que não devia viver disso, da mentira. Embora me seja tão difícil largar mão daquilo que me custou a vida a conseguir, o meu começo estava errado.

Com Terrence, pude novamente escolher. E assim, dei-lhe o que de melhor soube dar. Decência e razoabilidade. Não iria alimentar mais um estafermo, pois estafermos fazem nascer mulheres como nós, que criamos outros estafermos. É um ciclo vicioso, sabes? Quis fazer dele um homem. E um homem não deve querer mulheres como nós.

Todavia, o amor não tem razão. Ele venda-nos os olhos e nos atira para o abismo abaixo.

Como ele te adora. A sua apatia perante tudo não me deixa dúvidas.

Quando eu te vi, julgava saber com quem estava a lidar. Achei-te artista que não me iludirias. É que somos da mesma gente, menina, exalamos rua. Não queria que ele sofresse com a mentira dos outros. Estava tão certa de que irias destruí-lo. É coisa de mãe, Pek Si. E os filhos são a nossa fraqueza.

Mas, o tempo tem destas coisas, contraria as nossas certezas. Ele deu-me a conhecer que o meu filho terá de sofrer por si, pela escolha que fizer. Ele quis amar-te. E o tempo também me disse que estava errada a teu respeito. Escolheste sem troco romper com o passado e renasceste. Isto é garra que muita mulher não tem. A minha foi-se-me, depois de tantas decisões desacertadas que achei correctas.

Um dia serás mãe e verás …”

“Um dia serei como você, minha senhora”. Pek Si interrompera sem a desafiar, embora não tinha nada mais a perder em se sentir à altura de Mabel. “Lutarei para poder escolher. E os meus filhos conhecerão o preço da dignidade. Porém, sem as minhas garras. Eles terão que escolher por si. Enterrei Betsy, mas não me envergonho dela. Faz parte de mim, foi a minha vida e aprendi a viver com ela.

Mabel assentiu.

“Obrigado. Morrerei infeliz se não pudesse dizer isso tudo. Não te vou maçar nunca mais” Olhou fixamente nos olhos de menina de Pek Si e afagou-lhe o ombro. “Que linda que estás. Como o Terrence gostaria de voltar a ver-te. Eu também.”

Não respondeu logo. Mas os mesmos olhos comprimiram ao esboçar um sorriso, como há muito não fazia. De facto, o seu semblante desnudado de qualquer maquilhagem, faziam-na mais bela. Mais ela.

Vou pensar”.

“Acho uma bela escolha.” Sorriu também Mabel antes de entrar no automóvel que estava à sua espera.

Macau, 5 de Outubro de 2018, sexta-feira

© Miguel de Senna Fernandes

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(1) Cabaia chinesa.

(2) Operação do Governo de Macau, em Março de 1990. destinada inicialmente a resolver o problema de pais indocumentados de cerca de 4000 crianças e que resultou em verdadeira amnistia a todos que se apresentassem a registo.

(3) 腐乳 tofu fermentado e depois embebido numa solução de sal, vinho de arroz, vinagre, com uma mistura de malagueta picada. Servido em cubos, é um condimento muito apreciado em pratos fortes de inverno, como carneiro cozido.

(4) Ye Lai Xiang (夜來香), o jasmim da noite. Título de uma canção chinesa muito em voga dos anos quarenta do século passado, metáfora que exprime a saudade por um amor perdido.

O Homem do Amanhã

“É hoje!”

A resolução não podia ter tom mais determinante nesse dia.

É hoje que vai ser!”

O coração bombeava o sangue para o cérebro, inundando-o de uma invulgar vontade de realização.

É hoje! Ou vai ou racha!” bradava em silêncio marcando indelevelmente a sua consciência, como se escrevesse a giz e em palavras gordas o quadro da sua memória.

Era o dia que decidira ser o ponto de viragem na sua vida.

“Tem de ser!”. Estava assim na cama depois de o despertador cumpridor do seu dever mecânico ter arrancado, uma hora atrás. Antes que hesitasse como tantas vezes fizera, saltou da cama, ante o olhar pachorrento, mas surpreendido, do felpudo persa Rufus.

A caminho da sala, passou pelo espelho da casa-de-banho e viu um indivíduo cansado, bolsas por baixo dos olhos, barriga de bebida, ombros caídos. Decadência em pessoa. Mas hoje rejuvenescido de esperança. Sorriu foi direito à sua secretária onde se encontrava uma única folha de papel com os dizeres a vermelho berrante: “MASTER LIST”.

IMG_6753O rol de coisas que teria de fazer para o dia, a única coisa que interessava, a única que teria de captar a sua atenção nesse momento, não obstante o entulho de jornais, postais, embalagens vazias de paracetamol, canetas sem tinta, fios de iphone, moedas, foto de passe, enfim habituais inquilinos da sua secretária, que ele tratou de colocar em tudo quanto era sítio. A sua mesa tinha de estar imaculada. Só  a lista-mor teria legitimidade de pousar aí.

Dormiu bem e acordou nessa manhã cheio de ímpeto. Rapidamente, foi aí dar uma olhada, como quem inaugura um frigorífico com um livro de instruções.

  1. Fazer o depósito da renda
  2. Telefonar à Bel para combinar a tarde com os filhos
  3. Buscar os fatos à lavandaria
  4. Arrumar a estante de livros;
  5. Despejar as garrafas de cerveja;
  6. Despejar a  pilha de cartas abertas e por abrir que estão na secretária;

A lista continuava, era longa, ambiciosa. “Seja comedido. Não queira mudar o mundo num só dia!”.  Lia-se no artigo que passara a ser lei naquele dia. De facto, olhando agora para o que planeara, fora levado em demasia pelo entusiasmo. A autora do artigo, escreve muito bem, pensou. Ela já tinha publicado outro sobre os benefícios de açaí. E outro ainda sobre a meditação

“Não, pára!” gritou para si quando dera nota de que já estava a vasculhar a internet sobre a articulista. Teve no entanto uma ideia melhor: iria tomar um banho primeiro. Nada melhor que um jacto quente de água sobre o corpo ainda sonolento que o despertaria para o resto do dia.

A água que se soltou tinha a temperatura ideal, mas não como o jacto que previra. Reparou então que um fio de água jorrava por um canto da mangueira. Desenroscou-a e verificou que a anilha já gasta exigia substituição. Lembrou-se de que, para o efeito, tinha comprado umas novas, que deixara na sua caixa de ferramentas, havia dois meses.

Foi direito àquela caixa, onde rapidamente as localizou, no meio de parafusos, porcas, fios eléctricos, pilhas enferrujadas, chaveiro. Como também viu, a multifuncional faca suiça, aquela que fora prenda de anos da sua ex-namorada, adquirida em Gongbei e que se soltava com facilidade, por causa de um defeito num dos eixos. E sabia como apertar o parafuso, pois comprou a chave para o efeito.

Encolheu os ombros. “Não custa nada!” e pegou na chave e pôs-se a apertar o malfadado eixo que, não obstante, teimava em não ceder. Afinal a chave não era bem aquela que devia servir, concluiu. Mas que importava, pensou, se era a única do género para o efeito? E com isso passaram-se dez minutos. Até o persa Rufus não resistiu à curiosidade de interrogar que raio estava o seu dono a fazer, de cócoras e nu.

Não conseguira afinal apertar a porcaria do parafuso, pois decidira que isso exigiria uma chave apropriada e ele não a tinha.

“Fica para manhã!” , sentença óbvia com fundamento bastante, achou.

Sentiu os seus pés ainda húmidos e lembrou-se de que tinha deixado o seu banho matinal por começar. Levou a anilha consigo. Mas esta, embora de tamanho apropriado, apresentava um orifício mais pequeno. Não obstante, atarraxou a cabeça do chuveiro na mangueira e rodou cuidadosamente a torneira. O jacto continuou frouxo e por isso aumentou a pressão. “Ahh!”, suspirava agora de prazer com o impacto da água no seu corpo mole. “Isto sim, isto é que é…” Mas nem terminou a sua cogitação, quando a cabeça do duche rompeu com a pressão acumulada no extremo da mangueira. A água esguichava para tudo quanto era sítio, qual fonte desamparada, atingindo o que estava ao seu alcance, desde o tampo da sanita ao espelho por cima da bacia, dela nem escapando o candeeiro omnipresente do céu da casa de banho. Rufus, completamente desfigurado pelo súbito banho que não pedira, atentava agora o dono como um leão esfomeado diante de um jovem antílope.

Mais uma hora tinha passado  e a lista-mór continuava ociosa na secretária. Olhou para a casa de banho, meneou a cabeça, enquanto secava o pelo do persa. Resignadamente, não lhe ocorrera melhor ideia que um “fica para amanhã”. Mas, rematou com um veemente “A sério!” para calar a sua consciência que lhe bradava todos os impropérios.

Fazer o depósito da renda, como item prioritário da sua lista, implicaria sair de casa, pois nem ele, nem o senhorio entendiam o que era isso  de “online banking”. O mesmo seria ir à lavandaria ou jogar as garrafas vazias para o lixo. Olhou para fora da janela, o sol raiava pleno, não obstante uma nuvem preta se formava no horizonte. Decidira que a chuva era iminente. A consciência voltou a dar coices fortes, mas ele calara-a com um “não quero aquela gripe estúpida, que apanhei naquele dia só porque achei que não iria chover. Ia morrendo, lembras-te?!”

Tão convincente foi o argumento que a consciência assentira em ficar em casa nessa manhã, para dar início à odisseia do dia.

As lições da senhora do artigo, foram peremptórias: começar de imediato com a tarefa menos interessante, custe o que custar, pois será pior fazê-lo no fim do dia. Pegou assim no seu telefone. As suas mãos suavam, o coração batia, começava a antever a conversa e antecipava a percepção da voz enfadada de alto timbre da Isabel. Pressionou para ligar e nada mais o faria voltar atrás. Enquanto tocava a chamada, o “Não” da Isabel enformava no seu íntimo, mas para ele o acto era já heróico e estava  para cumprir até ao fim. Quando finalmente soou a voz mecânica do outro lado da chamada, de que o destinatário não estava disponível, teve a sensação de que acertara na lotaria. Alento para mais um sonante: “fica para amanhã!”

lettersMirou de seguida para a pilha de cartas e artigos de correio para despachar. Outra tarefa difícil. Mas iria enfrentá-la, peneirando desde já a espúria do essencial. Ao cabo de dez minutos, exalou: tudo era importante. Desta vez não queria deixar para amanhã, iria resolver isso depois do almoço. E começou por pensar onde iria comer. Italiano, Mac, ou novo tailandês ao lado da FerreiraExpress? “Não, não, já estou a perder-me. Despachar cartas já!”. Retomou a tarefa das cartas, limitando-se a transferir a pilha de um lado para outro.

No meio da papelada já poeirenta, topou um sobrescrito. Uma carta de alguns meses. Reconhecera a letra redonda de menina da Ti Aurora. Prometera tantas vezes a si próprio que iria visitá-la. Sentia pena dela, depois do falecimento do Tio Eugénio. Mas a vontade escapava-se-lhe à última da hora, sempre que decidia dar-lhe uma olhada. Abriu e retirou dele um cartão de aniversário.

“Querido A-Pi, desejo-te um dia muito feliz, neste que celebras os teus anos. Contes muitos mais e que tenhas um ano de muito sucesso.Da tua tia que tem muitas saudades tuas.”

Sorriu. Era a mesma mensagem de aniversário que se repetia durante mais de quinze anos. Ela nunca se esquecia dele. Não que o importunasse – ela até nem lhe telefonava -, mas as suas cartas anuais causavam-lhe uma nostalgia e um sentimento de culpa de que devia prestar-lhe mais atenção. Não obstante, a visita à Ti Aurora ia sendo adiada, com a ideia de que esta não se importaria. De facto, nunca lhe fora dirigido nenhum queixume, ao invés, ano após ano, lá acontecia receber um cartão de anos, com os mesmos dizeres.

Prestes a despachá-la, quando reparou que havia mais qualquer coisa dentro do envelope. Ajeitou-o e retirou daí uma folha bem fina, daquelas que se usavam para cartas. Ti Aurora guardava tudo que pudesse ser reusado, mesmo as resmas de papel que o tempo tratou de amarelar.

“Querido A-Pi,

Estou a escrever-te, enquanto me lembro de ti. Não sei se o mesmo acontecerá se algum dia me vieres visitar. Por favor, não é para te sentires mal, acredita. Sei que a tua vida tem sido confusa, nestes últimos anos. É evidente que não tens tempo. Mas prometi à tua mãe que cuidarei de ti como se fosses o filho que eu nunca pude ter e assim terei de fazer o papel de chata. Já estou a sentir a ciumeira do Eugénio, mas ele também gostava mesmo muito de ti.

Como tu estás?”

IMG_6749Fez-se um profundo silêncio na sua alma. Algo das suas entranhas irrompia à rédea solta, pela espinha acima, desenvencilhando-se das amarras que ele tão cuidadosamente montara ao longo do tempo. A carta simplesmente o surpreendera, nesse que seria o tal dia. Esvaziou-lhe o propósito e encheu-lhe de remorso. Não dava mais para amanhã, era para já ou nunca mais.

Esqueceu-se da lista-mor, de Rufus, de tudo. Vestiu-se e em dez minutos estava de saída. Mas antes de se lançar à rua, arrasta consigo o grande saco de plástico repleto de garrafas de cerveja, rumo à lixeira.

Na rua, ligara para o asilo, mas a linha estava ocupada. A meio do seu caminho, deu-se com a lavandaria. Hesitou, mas rapidamente encolheu os ombros e lá entrou. Já no autocarro, tentava equilibrar-se, com o saco dos fatos apertado na axila, prosseguiu a leitura da carta, onde a voz da Ti Aurora soava pela sua letra de miúda, mais alto que o ruído circundante.

“Fiquei muito feliz quando te casaste. Achei que tinha cumprido a promessa à Emília, que o seu pequerrucho tinha crescido bem, se fez homem e agora iria constituir família. Estava mesmo a ver o sorriso da minha mana. Como são parecidos.”

Sorriu, lembrando-se também de como estava lindo de felicidade nesse dia, pois para além da bela moça que desposara, o semblante da Ti Aurora resplandecia de felicidade. Queria que ela presenciasse essa etapa importante da sua vida. Se mãe é única para muitos, ele tinha duas. E ela-a de verdade.

Saiu do autocarro e chuviscava. Com as mãos ocupadas, outra solução não teve que se abrigar num sítio, onde houvesse toldo. Estava a dois passos do asilo e, sem notar, à porta de um banco. Chovia agora copiosamente.

Enquanto esperava pela sua vez na fila do depósito, lia as palavras da tia.

“Que alegria me deste quando vieram os teus pequenos. Eram como se netos fossem. Mas a tristeza também chegou cedo quando as coisas correram mal. A Bel mal te fala e levou os meus pequenos. Bem. ela é mãe o que se há-de fazer?”

Sorriu novamente, quando a imagem dos seus gémeos Ernesto e Júlio lhe apareceu na memória. Tão lindos eram eles, com as covinhas da mãe, branquinhos com um tom rosado nas suas bochechas, de olhos entusiásticos fixos nele, como se dissessem “pai, que giro!” .Identical twin boys

Mas a amargura não tardou a sobrepôr-se, quando no idílico quadro que se formara na sua mente apareceram cenas de discussões violentas em casa, os gémeos em pranto, Bel aos gritos e ele próprio prostrado no sofá mirando a TV refugiando-se no silêncio, com o pavor de enfrentar a realidade. O coração apertou-se quando reviu a cena dos gémeos com os olhos fixos nele, não já de entusiasmo, mas de despedida que eles não entendiam, no dia em que Bel os levou para fora da casa.

Finalmente chegou ao asilo e subiu ao segundo andar. Mas Ti Aurora já não estava no quarto. A enfermeira informou-lhe que tinham mudado todos os idosos com necessidades especiais para uma outra zona, devido ao surto de gripe a que estariam mais sensíveis. Por um segundo temeu o pior, mas suspirou de alívio. “Dona Aurora, deve estar lá em baixo a descansar”.

E lá em baixo viu a Ti Aurora, estava sentada e de costas para ele. Ele hesitou e rapidamente pensou em várias frases por onde pudesse pedir convincentemente desculpas. 956px-Elderly_Woman,_B&W_image_by_Chalmers_ButterfieldMas antes que ele pudesse balbuciar algo, uma enfermeira interrompeu. Vinha com comprimidos e um copo de água. Mas notara que Ti Aurora, não dizia nada, o seu olhar era vago, como se estivesse a navegar em sonho, sem se fixar em algo real.

“Passa-se algo com ela?”

“A condição da Dona Aurora está a  piorar. Era uma senhora tão simpática quando cá entrou e tão rapidamente ela está a desaparecer”. A enfermeira fez uma pausa. “Você … sabia que ela está com Alzheimer em estado galopante, não sabia?”

Não respondeu e lembrou-se das outras cartas empilhadas ainda por abrir, a ganhar poeira algures perto da sua secretária. A partir daí o seu mundo se reduzira àquela senhora serena de olhar vago, sentada a seu lado, que tempos já idos costumava abraçá-lo, beijar a sua testa, cortar o seu cabelo, dar-lhe ombro para choro, fazer-lhe festinhas nas costas, sussurrar-lhe lenga-lengas de nanar, a quem ele ia comunicar as boas notas em matemática, o prémio de distinção na escola, a notícia de que fora aceite na faculdade, que acabara o mestrado com distinção, que casara com a mulher mais bela do planeta. A senhora a quem chamava de mãe.

“Cheguei, Ti”. Apertou nos seus braços a serena e frágil senhora, confusa e sem noção do que se passava. “Desculpa, Ti. Desculpa.” Foi o que soube dizer, sem ter de fazer apelo à consciência, pois o coração foi mais eloquenteMas pela primeira vez, desde há muito tempo, sentiu saudades antecipadas, porque a enfermeira não tardaria a voltar e lhe pediria que voltasse noutro dia, pois a enfermidade da Ti Aurora não permitia momentos efusivos prolongados.

old eyes

Deambulou pela cidade fora, sem querer ir para casa. O vazio nunca fora tão pesado, avassalador. Olhou para outro lado da rua e um novo estabelecimento de sopa de fitas inaugurava, no meio da estrondosa alegria, com muita gente a falar e a gargalhar ao mesmo tempo. Devia ser negócio de família, pensou. E ele caminhava, lembrando-se das últimas palavras da carta.

“Ando preocupada contigo. Não preciso que te dês com ela, pois dessas coisas de marido e mulher, cada um melhor saberá. Mas preciso que estejas bem, conformado contigo próprio, que te aceites, ainda que passes o resto dos teus dias sózinho. Mas sabes, é muito triste viver só num barco sem porto à vista.”

Parou e pegou no telefone. Doutro lado tocava e desta vez foi atendida a chamada.

“Bel… “

“Que queres agora?”. Era audível o tom ríspido da sua voz.

“Apenas queria que me desses um minuto para eu dizer o que tenho aqui dentro e prometo não telefonar mais. Sei que tenho sido um lorpa, a minha vida foi um caos, um autêntico monstro, um egoísta inveterado. “

“Deste-me a esperança de ser uma pessoa melhor, deste-me dois filhos que qualquer pai se orgulharia de ter, deste-me um lar que um marido pode ter de melhor. Mas nunca soube assumir a nossa família, fui um ingrato contigo e com os filhos.”

“Inicialmente liguei para combinar o dia com eles, mas preferi utilizar este tempo que me permites para te dizer isso, sem querer que me queiras de volta, mas apenas que saibas que estou triste comigo mesmo. Nem à Ti Aurora pude ser filho como ela merece. Não quero que te esqueças da merda que fui, mas apenas me perdoes o mal que vos fiz, para eu me reencontrar e me regenerar.”

Do outro lado Isabel não disse nada, a pausa foi dolorosa e por fim ela desligou. Sabia que ela não lhe diria nada. Mais nada restava, na verdade. No entanto, sentiu-se bem, mais leve ainda que continuasse a sangrar o seu coração. Sentiu um novo alento, uma nova perspectiva de vida.APC_0005-hdr

Iria estar só mas conformado consigo mesmo. Passou pelo Petshop e comprou novos biscoitos e paté para Rufus.

Duas semanas passaram. Em casa despejou as cartas fora, todas sem excepção. Contactou o canalizador e encomendou nova toca para o persa. Era noite ele saboreava um prego e um sumo ante o olhar sereno do felpudo Rufus. Via-se que estava mais reconciliado com o seu dono.

Faltava recolocar os livros na sua estante quando a campainha toca. Deve ser a mulher de limpeza do automóvel. Embora em bom rigor aquela limpeza não se justificaria, pois o carro não saíra do lugar durante o mês todo. Não obstante, empunhava o dinheiro quando abriu a porta.

Dois pares de olhos entusiásticos, miravam-no de baixo para cima, com sorrisos que vincavam mais as covinhas idênticas. Seguiu-se uma voz feminina mais serena, branda e esperançosa.

“Podemos entrar?”

Macau, 24 de Agosto de 2018, sexta feira.

© Miguel de Senna Fernandes