O SAPATEIRO DA TRAVESSA

1.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

O seu martelo golpeava a bigorna pequena e produzia o timbre metálico e sonante na Travessa do Paiva. A serenidade dessa via que liga a Rua Central à Praia Grande, permitia que a sua martelada fosse bem audível, desde o posto da Polícia Militar do Palácio da Praia Grande até ao edifício da Imprensa Nacional.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Se outros atraíam com a voz, o seu pregão era a batida aguda com compasso que começava lenta para depois acabar abruptamente. Todos os dias à tarde, montava a sua banca, junto à extensa parede do Palácio, essa figura de cabelos grisalhos, pele seca e morena, franzina e frágil de Lam Kong, que tinha por hábito agachar-se, sentando-se sobre o seu banco de madeira, de cigarro no canto da boca, ficando à espera da clientela que lhe levaria pares de sapatos para conserto.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

E todos os dias galgava a travessa com a pinga sobre o ombro com duas caixas penduradas a cada extremo, uma para a sua ferramenta e outra para os sapatos já prontos. Tão hábil no seu ofício  e tão conhecedor do pé humano como era, vinha gente de outras paróquias a solicitar a sua arte.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Gente de todo o género acorria aos seus préstimos, a começar com os polícias militares, os rondas. Nos tempos mais remotos, apareciam-lhe os praças de Goa e os landins que lhe entregavam restos de sapato, tal era o estado lastimável disso que em princípio devia destinar-se à protecção dos pés. Mas Lam Kong não se queixava, ao invés, executava o  trabalho com igual mestria. Contanto que lhe pagassem, o mínimo que fosse. Não estava ali a pedir esmola, nem para ser um bom samaritano. Todo o trabalho deveria ser recompensado. E…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

O seu bom nome chegava às bocas e ouvidos de gente mais fina. Segundo rumores mais ousados do bairro, até o Governador e esposa solicitavam os seus bons ofícios, tanto quanto a discrição lhes permitia…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

Porém, as poucas patacas que recebia mal pagariam a medicação que a sua netinha necessitava. Lam Kong preferia não pensar nela, para que a dor de coração não estorvasse o ritmo do seu ofício. Tinha de labutar sem parar. A sua netinha tinha direito de brincar, de correr pelo jardim, de gritar, de fazer toda a série de traquinices a que só um avô acharia piada. Não deveria estar na cama, sem prazo. Contava sempre o dinheiro ganho do dia e  calculava quanto sapato teria de consertar nessa semana, como já fizera em tantas outras semanas. 

Havia  também quem os abandonasse, ou pura e simplesmente não os levantasse a tempo, ignorando o seu pré-aviso, de que faria tudo para convertê-los em dinheiro, vendendo-os na melhor forma possível. Sem desperdício algum, a sua netinha não lhe permitiria inutilizar nada, nem tornar o seu trabalho em vão. Era isso que sempre pensava quando reconstruía a sola de um botim, emendava um buraco provocado pela secura do couro. 

Já andava nisto havia dois anos.

Travessa do Paiva, Macau. 1945.
George Smirnoff

2. 

Numa das tardes de Outono, em que a neblina caíra como uma fina rede translúcida sobre o bairro, chegou-lhe um moço que lhe entregou um par de calçado feminino. De modelo modesto, apresentava-se em manifesto estado de degradação. O tacão rachado num deles, totalmente gasto noutro, havia riscos, partes desgastadas com o tempo.

O senhor conserta-me isto?

– Isto vai requerer muito trabalho, rapaz.

O moço não respondeu.

– A flor que devia estar aqui é de difícil reparação. Não tenho tinta para isto. Tens a certeza que tua mãe ainda os quer?

– Por favor, sei que o senhor conserta tudo. Corri para todos os cantos e todos me disseram para vir ter consigo. Vim do bairro de Santo António.

– A tua mãe deve perceber que lhe vai custar dinheiro. Não era melhor comprar uns novos?

– Ela adora estes sapatos, são do seu casamento.

– Mas, isto rapaz, vai levar tempo para…

– Preciso deles amanhã…

– É impossível, o trabalho que isto requer…

– Ela está de cama. Vai ficar muito feliz e se calhar melhorará, tenho  a certeza disto.

Lam Kong fixou no catraio de feições ocidentais, olhos grandes e amendoados, mas claros, pele alva e cabelo escuro, de camisa amarela de linho e calções de ganga. A voz era pausada e muito suave. Falava tão bem chinês.

– Que idade tens, rapaz?

– Tenho oito – e antes que Lam Kong interrogasse mais – vivo com a minha avó.

– Sabes, vou ter de interromper tudo para fazer o que me pedes. Isso custa dinheiro, diz à tua avó. Vou precisar dele.

– Apenas peço o favor … a minha mãe vai adorar. Amanhã, pode ser? Rogo-lhe.

Antes que Lam Kong pudesse responder, viu o moço a correr em direcção à Praia Grande, deixando consigo o par dos mal tratados saltos. Num lapso de segundo, não sabia o que fazer com o que tinha nas mãos. Ademais, não tinha fixado o valor pelo trabalho. 

A imagem da netinha interpôs-se, então, no seu pensamento. Não era de reclamação, mas algo que lhe murmurava no íntimo que aceitasse o novo trabalho. Com sacrifício do restante.

Começou por estudar a extensão do dano. Ambos os tacões precisavam de reparo sério, com pedaços de madeira a soltarem-se, rasgando o tecido de couro branco que cobria o calçado. Felizmente, ainda existiam as alças que se mantiveram incólumes ao desgaste, mas as palmilhas já deixaram de o ser para se tornarem em algo semelhante a pasta de papel seco e apodrecido. A planta de ambos os sapatos estava descolada e Lam Kong sentiu pena da sua dona, pois devia ter pés finos e frágeis que o modelo impunha. Havia ainda que reconstituir uma flor de cor prateada a ser colocada sobre a biqueira. Fez as contas e iria passar uma noite naquela brincadeira!

A Igreja de São Lourenço badalava as seis. A travessa já era calma e mais se tornou com o cair do dia. O enxame de libelinhas pairando sobre o jardim do Palácio anunciava um tufão e outros bichos que povoariam a noite começavam a chegar. 

Lam Kong caminhava com a pinga ao ombro carregando a ferramenta e outros sapatos cujo destino ficara suspenso com a tarefa a que se comprometeu, sem saber como explicar. Instintivamente passou pela lojeca de quinquilharia do velho Kuan, na Rua Inácio Baptista, onde se encontrava tudo o que uma razoável imaginação permitia abarcar, numa confusão organizada com que só o seu dono sabia lidar. Aí descobriu colas, tintas, botões, alfinetes, couro sintético de diversa espessura, arame, pastas para o remendo de buracos e outras imperfeições, enfim, tudo o que precisava para a grande aventura da noite. Mas não, não tudo. Como iria polir e colorir o produto final?

É um grande problema Ah-Kong. – disse o velho Kuan, enquanto sugava o fumo do seu cachimbo de bambú – Mas, és um sapateiro, não?

Nem lhe interessara explicar como aceitara aquela proposta insana. 

E a tua loja não vende “tudo e mais alguma coisa” como anuncia?! 

Sabia que era a frustração que alimentava a parvoíce da sua resposta. O velho Kuan tão pouco se importou. Pousou o cachimbo, calçou os seus chinelos  japoneses, ajustou a sua camisola interior. Fazia isto quando tinha que tratar algo com seriedade. Sentiu que o seu velho amigo Lam Kong estava em apuros. Foi a um quarto, não mais organizado que a recepção da loja, onde a mulher cozinhava o jantar, lavava a roupa e criava uma galinha. 

Não sei se isto serve, não percebo nada de tintas. Mas para aquilo que me explicaste é capaz de funcionar. Que cor queres?

Lam Kong olhou estupefacto para as quatro latas cilíndricas de tinta branca que o velho daí trouxera.

Segundo meu filho, tens que chocalhar a lata e carregar neste botão vermelho. E a tinta sairá uniformemente. É daquelas coisas modernas que vieram para o mercado – sentou-se de novo na sua cadeira de vime e retomou a sua cachimbada – Pagas-me depois. E levas o secador de cabelo também.

Lam Kong continuava mudo com ar de desânimo ante a imagem revoltante do estado de degradação do calçado.

Precisas dos meus botins? – Sorriu o velho Kuan. – Ah Kong, o que tem de ser feito, será feito. És um bom homem, não te esqueças disto. – acrescentou depois  e ligou a telefonia, enquanto se deliciava com o sabor húmido do tabaco.

3. 

Levava um pouco mais de peso do que o habitual, quando descia a sinuosa Rua Inácio Baptista rumo à da Praia do Manduco, onde se marcava o fim do “bairro cristão”. Não tanto pela tralha que carregava, quanto o propósito daquilo tudo. A imagem da netinha e depois a do catraio, moviam-no numa contradição que naquele momento confuso lhe fazia sentido.

A mulher preparava a canja com carne de porco e ovo salmoirado quando ele chegara a casa. Pousou a sua tralha e sentou-se exausto da eternidade do dia.

Ela está a dormir. Hoje comeu bem – sorriu, enquanto vertia a canja na tigela para o marido – Até quando terá ela de sofrer essas dores? Coitada, que mal fez ela para merecer isto? É a maldição da nossa filha ter casado com aquele pulha. A doença dela começou depois do casamento, lembras-te? A Mei-mei carrega este mal que aquele maldito lhe lançou!

Lam Kong manteve-se impávido ante o que mulher repetia todos os dias. Compreendia o seu estado de  inconformação, mas já não a levava em paciência. Provavelmente, já tão calejado de a ouvir bater tanto na mesma tecla, sentia-se agora sentimentalmente imune ao fastidioso flagelo da mulher nos seus ouvidos.

Pelo menos, não reagia com a agonia daquele dia em que vira partir a filha, vítima de uma galopante tuberculose. Não sabia se tinha a ver com sinas, ou se o genro tinha alguma culpa nisso, o certo é que este a abandonara logo que soube da doença. Acamada e ventilada, a filha não falava, pois nem forças tinha para tal, mas o seu olhar pedia clemência para o bem estar da sua bebé Mei-Mei, rogava ao pai que fizesse tudo ao seu alcance para velar pela saúde da petiz que acabara de nascer. Lam Kong apenas segurara a sua frágil mão, assentindo com a cabeça, enquanto o frio se apoderava do corpo e anunciava o momento. Deu ainda para lhe colocar sobre o peito a velha boneca de saia verde a sorrir, que lhe oferecera quando era pequena, dando-lhe um adeus silencioso, com a promessa de que a netinha estaria sempre bem entregue. Mas ela já não o ouvia. Não chorou ao estertor, ao arrepio da tradição chinesa de uma auspiciosa despedida. Queria antes que a filha pudesse transitar suavemente para  uma outra existência e se remisse da insustentável dor, partindo tão leve e inocente, quanto veio a este mundo para uma vida tão cruelmente efémera.

Não quis culpar o genro, não obstante a ignomínia do seu abandono. Preferiu aceitar o destino e selá-lo, partindo para uma realidade nova. A netinha exigiria a atenção que o ódio iria comprometer. Era melhor guardá-lo e soltá-lo de vez em quando, sempre que estivesse apenas consigo ou depois de uns copos de vinho de arroz com o velho Kuan, quando pudesse chorar e gritar impropérios a Kun Iam, ainda que a deusa o não entendesse.

Mais pessimista e rancorosa estava a sua mulher, que vestia a pele de mãe ferida que se via impotente para uma reviravolta e para traçar um rumo para a bebé Mei-Mei. A sina pairou sobre a família, entendeu, e a única explicação teria sido o “pulha”, por quem passou a nutrir um ódio das entranhas. Passou também a ter a certeza de que o mal se instalara em casa e que não descansaria enquanto os três se mantivessem vivos. 

Muito altercara com o marido, que não aceitava os seus argumentos, chamando-lhes de irracionais. Até que um dia se virou para ele com a notícia de que a Mei-Mei manifestava sinais de uma lenta progressão degenerativa de atrofia muscular. E teria que ser tratada com urgência, ir a Hong Kong com frequência.

Era mais uma desgraça que se abatia sobre a família. A mulher venceu a discussão, porém o seu triunfo sabia a fel. Muitas rezas encomendou e muito bonzo visitou a casa, mas nada alterara o trilho para o abismo.

Lam Kong achou que os deuses tinham mais que fazer e não perdeu tempo para tratar da melhor forma de ganhar o dinheiro, pelo menos para a deslocação a Hong Kong. E numa das noites de sám cheng, o velho Kuan, o taciturno que falava mais com olhos e trejeitos, escutou a história ao sabor da cachimbada, foi ao quartinho e depois daí voltou com um par de botins de tropa a cair aos pedaços, com sola lastimável, numa amálgama indefinível de cabedal, borracha e couro, com terra e dejectos secos à mistura. E foi lapidar ao entregar-lhos.

O meu irmão usava-os quando encontraram o seu corpo, na guerra com os “lo pak tau”. Se me conseguires pôr isto a funcionar como sapatos, terei muito trabalho para ti. Tenho gente das obras que vem comprar material miúdo. Andam descalços porque já não têm outra coisa para cobrir os pés. 

O níquel soara mais alto e inspirara o engenho, quando a escolha sumira. No dia seguinte o velho Kuan era um homem feliz que se reconciliara com o passado. Lam Kong renovou os botins do irmão numa noite e não tardara haver gente descalça a alinhar-se à porta da lojeca de quinquilharia para o conserto do seu calçado, como tinha prometido o Kuan. Durante dois meses, trabalhara sem parar renovando calçado, tornando-o utilizável, protegendo pés miseráveis de calo gasto.

Num dia de domingo, porém, apareceu-lhe algo novo. Uma senhora de feições ocidentais parara diante dele.

Também consertas isto? –  entregou-lhes um par de saltos altos, com tacão solto a solicitar sério reparo.

Posso tentar, minha senhora. Vai-lhe custar é dinheiro. Terão de ser trinta patacas e precisarei de três dias.

– Vou-lhe pagar sessenta e quero-os prontos amanhã!

Nessa noite, aos copos com o velho Kuan, desabafava sobre a falta de tempo, sobre essa “gente bárbara” que exige muito. Este, invariavelmente escutou-o sorumbático e apenas encolheu os ombros:

Lembras-te dos botins do meu mano? Então, não consegues?

Lam Kong não rabujou mais, aquiesceu e numa assentada emborcou o sám cheng. Suspirou e debandou. No dia seguinte a bárbara senhora desfazia-se em sorrisos, pelo trabalho meticuloso que ele fizera aos seus saltos e acabou por lhe pagar sessenta e cinco patacas, prometendo-lhe que traria mais gente. E mais gente veio, oriunda da Igreja de São Lourenço, logo após a missa ou catequese. “Gente branca” que falava chinês, mais exigente, com calçado mais complexo.

Ah Kong, talvez seja altura de ires para outro lado – disse-lhe um dia o velho Kuan – Aqui só aparece gente desgraçada. Precisas é de gente que pague.

O velho sagaz sabia que era isso que ele precisava de ouvir. Duas semanas depois, fixou o seu estaminé ambulante junto ao mural do Palácio da Praia Grande, não porque a Travessa do Paiva fosse um local concorrido, mas porque assim, pensava, poderia atrair mais gente branca que pagaria muito mais que os míseros avos da mais humilde gente descalça da construção. 

Haveria, no entanto, que inventar um chamariz. Passou o dia todo a pensar em vão em pregões e, num acto de desespero ante a falta de imaginação, deu uma pancada na bigorna que ecoou pela pacata Travessa do Paiva toda. E assim “toc, toc, toc-toc-toc-toc!” passou a ser o seu mote de guerra, e entre a gente branca ficou conhecido por “sapateiro tóc-tóc”.

A tosse despertou-o da erradia divagação  pela memória e atraiu-o para o quarto da netinha. Deve ter sido a saliva que se avolumou na sua boca, pensou. Mirou a petiz e comoveu-se com o profundo sono em que esta mergulhara. Reparou no movimento do seu frágil peito e sentiu a segurança que transparecia no seu pequeno rosto de menina que sucumbia à paz da noite. Não pensou na injustiça, mas tão só na serenidade que ela merecia. Era tão bom que todas as noites tivessem este desfecho de sossego. Compôs os desgrenhados cabelos que cobriam o seu nariz e notou como os seus lábios desenhavam um sorriso, as covinhas salientavam-se, sugerindo sonhos lindos que desfilavam naquela mente imaculada, de quem não sabe o que espera do mundo.

Contudo, nessa noite tinha trabalho que o desviaria do seu propósito diário. Iria dar crédito a uma causa que nada tinha a ver com a menina, iria fazer algo à margem da sua obsessão. Talvez estivesse junto dela, por descargo de consciência, algo que a sua mulher não entenderia. Talvez estivesse ali a pedir a sua aprovação.

Do vizinho vinha a transmissão da rádio “Vila Verde” e escutara a voz galvanizadora de Ma Si Chang, o orgulho da ópera de Cantão. Acendeu o cigarro, era altura de começar a aventura da noite.

4. 

A pinga pesava mais no dia seguinte, muito embora não carregasse mais do que era o habitual. O que era novo era o par de sapatos de salto, os mais belos que alguma vez vira na sua vida. 

Sentou-se junto ao mural, no local onde, por mera tolerância oficial, fixara o seu estaminé. Nesse dia não assinalou a sua presença com a martelada do costume. Preferiu apreciar o seu trabalho da noite anterior, procurando desvendar defeitos que pudessem ainda subsistir. Sabia que nunca atingiria a perfeição, mas deu-se por satisfeito. Era um reles, sabia. Todavia, sem dar conta nem valor,  tinha postura de artista.

Olhou em direcção à Praia Grande e não havia sinal de criança alguma, apenas oficiais de exército portugueses que entravam e saíam da porta lateral do Palácio. Teria o catraio ideia alguma de como tudo se passou em sua casa ontem?

Tantas vezes trabalhara na calada da noite, em que o bairro se rendia ao sono, em que se ouviria o chirriar do grilo, o assobio seco do vento norte atravessando a rua estreita da Praia do Manduco, o bater das asas de morcegos e de aves nocturnas, o miar dos gatos em cio, interrompidos pelos passos do chon keng, o polícia de ronda, pelo pregão merencório do vendedor nocturno de papos secos, ou então pelo som do er-hu do vizinho. O odor do bairro, salpicado com maresia, champaca, frutos salmoirados e achares, tornar-se-ia mais intenso ao cair do dia, quando todos retornassem à casa e o deixassem exalar-se e recuperar o fôlego para o dia seguinte.  

Em casa, o mundo não era muito diferente, porém o silêncio era dono das suas emoções. Tornava mais audíveis as vozes da sua mente, as quais por sua vez condicionavam a viagem do seu espírito. A voz que mais ouvia era a da sua filha, a do seu primeiro “papá”,  dos seus gritos de alegria ao baloiço, das conversas com a boneca, dos queixumes fazendo beicinho, do anúncio da sua gravidez, do seu casamento, da sua doença, do seu adeus. Outras vozes sobrevinham, como a dos murmúrios da Mei-Mei, da aspereza da mulher, da sabedoria do velho Kuan. Tudo isso ao mesmo tempo, porque o silêncio impunha que assim fosse, tornava-o vulnerável, agrilhoava-o a uma condição de inelutabilidade a que ele indulgentemente se deixava prender.

Mas nessa noite o silêncio foi outro. Bem mais calmo, sem outra voz que não fosse a dele próprio, acompanhada da telefonia do vizinho que transmitia a ópera cantonense trágica de Tai Nui Fa. Sentiu-se liberto de tudo, como se tudo o quisesse envolto nessa causa da noite. A voz cristalina de Pak Sut Sin atravessava o bairro adormecido, como o er-hu  faria, enquanto ele desmanchava os despedaçados sapatos, peça por peça, alisando-os com a lixa fina, desnudava os calçados da pele dilacerada, recompunha os tacões de madeira, colando os pedaços que se destroçaram e martelando peças metálicas para dentro dos mesmos, que sustentariam o peso de um corpo. Não olhara para horas, apenas para os pezinhos imaginados, para o calçado simples e elegante que tinha em mãos. Notou que não havia sinal de rompimento dos lados, como teria acontecido, se a dona tivesse pé chato ou alargado. Os da mãe do menino eram certamente finos e elegantes. A senhora não pesaria muito, pois não acusavam desgaste nos calcanhares, muito embora a zona palmar não tivesse resistido à erosão do tempo. Deveria ser uma senhora distinta e de modos aprumados, como era o menino de olhos grandes e amendoados da Travessa do Paiva.

O estado de degradação da flor da biqueira permitia tão-só a sua substituição. E assim imaginou o que a senhora fina e leve admitiria sobre os seus pés. Teria que ser uma flor simples, para um modelo modesto, mas nobre pelo suposto estatuto social da dona. Uma rosa simplificada seria uma solução sensata e bela. Não perdeu mais tempo e, acto contínuo, viu-se a cortar em dobro a folha de couro sintético em três séries de pétalas para cada sapato, para se sobreporem umas às outras. Não satisfeito ainda, colocou ambos os seriados ao lume para que as extremidades se derretessem, curvando-se, ora para cima, ora para baixo, numa aleatoriedade natural própria de uma flor. 

De repente, o olhar do miúdo interrompera a sua concentração. O que teria feito este correr e implorar? Não tinha condições de saber. Mas sabia que precisava de fazer algo para a mãe, provavelmente, prostrada na cama por doença. Quem sabe, muito doente. Ao menos fazê-la sorrir com os sapatos que muito amara. Talvez fosse isso a razão da sua consternação, o seu abandono de tudo para acorrer ao pedido do miúdo. E ao lembrar-se da filha, sentiu a mesma impotência para contrariar a violência da tuberculose. Se ao menos pudesse tê-la feito sorrir no momento do seu suspiro terminal. Isto dava corpo a uma comunhão de sentimentos, uma razão de ser, um desígnio. Tudo o empurrava para que completasse a obra e essa noite fora feita para isso.

A telefonia do vizinho calara-se havia muito. O relógio estava prestes a tocar as quatro horas, os grilos ainda cantavam e já na rua os madrugadores saíam das suas casas para o san van, o exercício da alvorada. Estava tudo quase pronto, faltando-lhes a pintura final e rezara a todos os deuses que as latas de tinta do velho Kuan funcionassem como o mesmo prometera. Depois de as ter experimentado com os seus próprios, aplicou aos sapatos na derradeira etapa do seu trabalho. Secou-os com o pesado e barulhento secador de cabelo, e finalmente colara as rosas pintadas de cor de prata em ambos os sapatos e esperou uma hora. Foi manuseando a parte mais mole para verificar se a tinta seca estalaria. A tinta do Kuan surtiu o efeito desejado. Como se ainda não bastasse, achou que devia levar ainda mais uma camada de envernizado.

Batiam as seis e a passarada matinal chegara, com o galo do vizinho, qual cabo de exército, a soltar as goelas. Lam Kong tinha os olhos fixos nos belos saltos, enquanto uma ventoinha afugentava o cheiro a verniz. Vieram lágrimas aos olhos de quem chegou ao fim de um grande feito. Estavam longe de serem perfeitos. O que utilizara não era para sapatos, mas outro remédio não tinha senão o que o seu instinto ditava ser o melhor. E assim imaginou o semblante orgulhoso da esbelta e leve dona sobre o belo par de calçados reconstruídos com emoção e razão de causa.

Mas o menino não chegava. Várias vezes estendia o seu pescoço, ora para um, ora para outro lado, mas a travessa mantinha-se numa calma pouco vulgar, sem movimento algum, nem de carros, nem de bicicletas. Já passava da hora que ele provavelmente viria, a julgar pelo dia anterior. A neblina subsistia como se o céu lançasse um véu sobre o bairro, até o sol irradiava uma luz difusa, sem causar sombras carregadas. Pelo menos não havia sombra do menino, nem de ninguém. 

A impaciência aumentava, Lam Kong parecia um menino à espera de uma prenda que nunca mais vinha. Fumou um, dois e uma série de cigarros, matando o tempo que nunca mais andava. Começou até rogar pragas a si mesmo, a sentir-se estúpido. Cansado, muito cansado, com olhos a pesar toneladas. E a culpa era do menino. E era por causa dele que não levaria dinheiro para casa. E…

5. 

E o garoto descera do alto da Travessa do Paiva na sua direcção. Renovou-se em espírito e sentiu-se embaraçado com os pensamentos mais idiotas que passaram pela cabeça, nessa interminável espera pelo pequeno. Não aceitaria que a aventura da noite anterior pudesse resultar num logro de tão mau gosto. Apesar da tenra idade, o menino iria honrar o compromisso, caso contrário não teria vindo, pois não? Mas o que teria ele prometido, se nem acordaram no valor? E o que um garoto de oito anos poderia valer? Já nem quis tentar responder a estas questões.

Estão prontos, menino. Fiz o melhor que pude, mas eles estavam em muito mau estado. 

Quando tirou o par do saco de algodão, os olhos do menino brilharam de comoção. Os sapatos de salto recuperaram a alvura carcomida pelo tempo, estavam agora luzidios. Não havia buraco algum, os tacões recompuseram-se e todos os contornos aí se encontravam, os sapatos eram dignos dos pés pequenos e frágeis da sua mãe. Ainda cheiravam a químico, mas o aspecto renovado superava esse tipo de defeito. Dos olhos grandes do menino lia-se a satisfação por que muito dinheiro não pagaria. E aí chegou a hesitação.

Sei que não acertámos no preço, mas disse-te que isso iria … custar dinheiro. Passei a noite toda a trabalhar… e não foi fácil. A tua avó vai ter de compreender. Ela … sabe disso, não?

Os olhos luzidios do petiz tornaram-se opacos e sem vida. Em seu lugar, sobrevieram olhos de súplica e de tristeza.

Menti… Peço desculpa, senhor.

Lam Kong ficou mudo, antevendo o que teria de encarar, já vulnerável a todo o tipo de surpresa.

Não tenho nenhuma avó. Apenas a minha mãe.

– Mas como vais pagar isso?!

O menino tirou das suas calças uma nota esfarrapada de cinco patacas e entregou-a a Lam Kong.

É tudo que consegui arranjar. 

Mas … mas o trabalho merece muito mais que

Já não tenho mais nada, senhor. Por favor aceite-os.

– Mas…mas…assim não te posso dar os sapatos por este valor…

– Não vim buscá-los – hesitou – Vim antes pagar-lhe com o pouco que consegui arranjar, porque você trabalhou a noite inteira, não está certo ficar com mãos vazias.

Lam Kong sentiu o aperto nas entranhas que a frustração lhe causava, um misto de revolta contra a sorte que lhe era assim patenteada.

– Menino, não estou a entender nada. Não quero, nem posso ficar com eles. São da tua mãe.

O menino fez nova pausa e ficou sério quando se concentrou no rosto seco de Lam Kong.

– Senhor… ela morreu hoje, já não vai precisar deles. Mas, você pode vendê-los para não ficar a perder. Estão tão lindos.

O menino olhou Lam Kong, ficando à mercê de tudo quanto pudesse vir do sapateiro, mas este apenas olhou para o vazio, numa inelutável apatia. No fundo, apetecia-lhe gritar, bater, queria ser violento. Sentiu-se asno e irresponsável por ter aceitado aquela maluqueira, ao arrepio da real necessidade de fazer mais uns trocos, como tinha sido o seu desígnio nesses últimos tempos. A sua consciência não tardaria a vergastá-lo por essa infantilidade. Todavia, a imagem que lhe surgiu no íntimo, não foi de castigo, mas antes da profunda serenidade com que a menina dormia na noite passada, como havia muito que não fazia. E num instante pareceu-lhe ver a sua filha a sorrir-lhe. Suspirou fundo e resignou-se.

Sinto muito, menino. Sei o que é perder uma pessoa querida, sem podermos fazer nada. E tentaste, rapaz. Foste bravo.

Embrulhou então os saltos renovados no saco de algodão e voltou-se para o menino indefeso.

Ela vai precisar deles quando atravessar a ponte para o outro lado, entendes? Leve-os e … não me pagues nada.

Só se lembrou dos olhos do menino a recuperarem o tom luzidio, do seu sorriso de felicidade e gratidão, no momento em que o leve cacimbo outonal lhe fez esfregar os olhos de cansaço e de sono perdido. Quando recompôs a sua visão, viu a nota de cinco patacas e meteu-a no bolso, mas o pequeno tinha já desaparecido com os sapatos. Iniciou-se, então, o cantar dos grilos e dos gafanhotos e ouviram-se as primeiras batidas das asas dos morcegos do Palácio, os inquilinos que revezariam os pardais e os canários na calada da noite.

Era altura de voltar ao poiso.

6.

A pinga desta vez pesou menos e num ápice estava já à entrada da Rua da Praia do Manduco e não tardaria a chegar a casa. Estava calmo, sem embargo o cansaço da noite passada. Sentia-se bem e inexplicavelmente reconciliado consigo mesmo. Tinha a sensação de ter emigrado e agora retornava a casa para retomar a vida que interrompera. Iria jantar com a sua mulher, respirar fundo, dormir e reiniciar um novo dia seguinte. 

Ao abrir a porta da sua casa, viu o rosto trémulo da mulher. Esta não falava, mas acusava algo que ultrapassava uma mera preocupação. De olhos confusos e avolumados de lágrima, apenas apontara em direcção ao quarto da netinha. O seu semblante não deixara dúvidas, acontecera algo com a pequena. Lam Kong largou tudo e correu para o aposento, abrindo a porta com violência e viu a cama vazia.

Por um lapso de segundo experimentou um pânico de morte e gritou em silêncio, transe que só cessou quando uma sombra atravessara o lusco-fusco que vinha da janela. Era Mei-Mei que olhava para as luzes que cintilavam da rua, sobre a ponta dos minúsculos pés. Lam Kong admirava estupefacto como se desenvolveram os músculos das panturrilhas, contra tudo com que vinha lidando a respeito da enfermidade da menina. E teve medo do milagre diante de si.

– Vovô… porque me olhas assim? Estás zangado?

– Oh não meu amor… Nunca! Vovô está tão feliz por te ver a olhar para as  luzinhas lá de fora – Abraçou a petiz com toda a força e não conteve as suas convulsões quando chorou.

Porque choras vovô?

– Choro de muita alegria, minha linda. Foi como se tivesses estado muito tempo fora e agora voltaste. É tão bom ver-te a brincar, a rir, a correr, a dormir na tua cama e a ter lindos sonhos.

– E eu tive um lindo sonho.

– Oh? Contas-me como foi? – sentou-a na sua coxa.

– Sonhei que estava à janela e dei com uma senhora vestida de branco a sorrir para mim. Tinha um ramo de flores numa mão e segurava um menino de olhos grandes com a outra. Não eram da nossa gente e ela estava bela como se fosse para o seu casamento. O rapazinho estava feliz com a sua mãe e tão bonito era o seu sorriso. Ele acenava-me um adeus e a mãe sorria também. Tinha os mais belos sapatos que já vi, vovô. Brancos com uma flor prateada nas pontas. Tinham acabado de atravessar uma ponte. Acordei e fui a correr para a janela, mas já não os vi mais.

Manteve-se calmo e encostou a cabeça da netinha ao seu peito, enquanto a sua mente devaneava à procura de respostas, pelo menos da certeza de que não sonhava e que tinha ao seu colo a jóia mais preciosa da sua vida, incólume a todos os males. Acto contínuo foi ao seu bolso à procura da esfarrapada nota, e sentiu o calafrio atravessar-lhe a espinha, quando de lá saiu apenas um pedaço de papel sem valor. 

Nesse momento a mulher entrou e abeirou-se dos dois e afagou as costas da menina.

– Kun Yam Pou Sat! Escutaram-se as nossas preces, finalmente. Foi um milagre para a nossa Mei-Mei, até sinto a casa mais leve. A sina foi-se embora – limpava as lágrimas – Vou comprar boa comida e hoje é uma noite em que temos de celebrar, com o dinheiro que fizeste.

Apeteceu-lhe gritar de desespero, pois tudo teria de ter uma razão de existir. Como explicar o dinheiro que a mulher refere, se não teve cliente nenhum? Como explicar a força anímica da noite anterior e a resolução em terminar a sua obra. Olhou de novo para a Mei-Mei ao seu colo e lembrou-se então do menino, do seu olhar solícito e de quão cristalina foi a conversa com o mesmo. Teria ele a ver com isso tudo? Não podia ser… Não teria tudo sido um sonho vivo ou então uma partida de péssimo gosto? Perdeu-se na incredulidade da sua existência, resolveu que tudo não passava de uma charada, que nada de extraordinário se passara, não tinha havido saltos femininos alguns, o menino não existira, e quem sabe se não eram sequelas do sám cheng da lojeca do velho Kuan, até quando a mulher vociferou, interrompendo-o nas incursões pelas suas dúvidas existenciais.

Andas agora a fazer flores? Que vais fazer com as latas de tinta, o couro sintético e as colas espalhadas na cozinha? Preciso de espaço, homem! Está cá um cheiro…!

7.

Passaram-se sete anos e a brisa de Outono soprava suavemente esse dia de 1970. A aragem mais seca do quadrante nordeste não estorvava a neblina leve que se espalhava por toda a cidade, dando ao dia uma luminosidade ténue. As libelinhas enxameavam o céu e, acima delas, aves arribavam em bando para outras terras, fechando-se assim um ciclo, para anunciar um outro.

Lam Kong já não operava junto ao Palácio. O velho Kuan falecera e deixara-lhe a lojeca que se converteu na sapataria “Lam Kong Kei”. Mais propriamente para conserto de calçado, o qual passou a ser a sua actividade exclusiva. Apetrechara a loja de todos os utensílios do ofício, encomendara tintas próprias, couro e cabedal de boa qualidade, formas, cremes e graxas, para manter o nome do melhor sapateiro do Bairro de São Lourenço. Vinha clientela de todos os lados, da gente fina do Palácio à dos lupanários da zona velha. Encheu as paredes de figuras de divindades taoistas e budistas, como os “Oito Imortais” e Kun Iam, assim como Tong Sam Chong, o mítico monge da obra literária “Odisseia para o Oeste”, com os seus três discípulos, mas todos sob o jugo do temível olhar de Kuan Tai, o deus justiceiro protector contra todos os espíritos maléficos. Num canto oposto encontravam-se os botins do velho, contra a vontade da mulher que só via mau agoiro nisso. Argumentava que sapatos sem dono não deviam estar em parte alguma e muito menos nas paredes, pois atrairiam quem pudesse andar nelas. Se calhar tinha razão, porém, Lam Kong possuía argumentos suficientes para fazer moucos os seus ouvidos. De cabelos mais grisalhos, de espinha mais arqueada, continuava magro, mas atarefado, cheio de saúde para consertar todo o sapato que lhe viesse parar às mãos. Estava feliz, pois começava o ano lectivo e a sua Mei-Mei fora admitida no Colégio Canossiano do Sagrado Coração de Jesus, onde aprenderia a falar e escrever inglês.

Olhou para o dia e sentiu o fresco de prenúncio invernal. A neblina adensava-se, o que o deixou nostálgico. Mas, não teve tempo para cismar. Cinco pares de sapatos militares e de festa esperavam os seus cuidados, e ele manteria o seu estaminé aberto até completar essa missão do dia. 

Nisso, enquanto curava o mal de uma das solas, escutou uma voz murmurada e delgada de menina.

O senhor conserta isto? Ela precisa de andar.

Lam Kong saiu da sua loja e agachou-se olhando para uma boneca velha, enodoada, descosida e sem uma perna, numas mãos frágeis e minúsculas. Levantou os olhos para a menina franzina, que não teria mais de sete anos, de olhos grandes, pele muito alva, linda como uma boneca de porcelana.

Sorriu.

Claro menina, ela vai ficar bonita como tu. E andará.

Largou a sola e deixou o resto dos sapatos em paz.

Fechou a loja. 

A neblina também se foi.

Travessa do Paiva, Macau.
O mural do Palácio da Praia Grande à esquerda.
Foto tirada em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60 do século passado.

F  I  M


Notas:

Pinga – Vara de madeira, de bambú ou de cana, utilizado pelos chineses para transportar toda a espécie de mercadoria, pendurando-a em cada extremidade da mesma vara.

Saltos – Forma abreviada de “saltos altos”, “saltos de senhora”ou “sapatos de salto”, muito usada entre os Macaenses, correspondente a “high heels”, por referência a “high-heeled shoes” na língua inglesa.

Tai Nui Fa (帝女花) – Clássico da ópera de Cantão, das mais famosas óperas de todos os tempos, sobre a tragédia da Princesa Cheong Peng (長平公主) e o seu noivo Chao Sai Hin (周世顯), no fim da Dinastia Ming, no século XVII.

Ma Si Chang (⾺師曾) e Pak Sut Sin (白雪仙) Famosos intérpretes da ópera chinesa, tanto em palco como, como no cinema, esta última celebrizada no seu papel da princesa Cheong Peng, na ópera Tai Nui Fa.

Lo Pak Tau (蘿蔔頭) – Literalmente “cabeça de nabo”. Expressão pejorativa, provavelmente já caída em desuso, atribuída a japoneses, os quais tradicionalmente ostentavam um peculiar corte de cabelo, caracterizado por um rabicho fino, o qual por sua vez seria dobrado para cima sobre a parte calva da cabeça, à semelhança do prolongamento alongado do tubérculo em causa.

Sam Cheng (三蒸酒) – Também conhecido fora da China pelo nome de Samshu ou mais propriamente por Sam Siu (三燒) é um tipo de vinho chinês a partir do fermento do arroz, com teor alcoólico variado, muito popular entre consumidores da camada social mais humilde, caracterizado pela sua capacidade rápida de embebedar o seu consumidor.

Ponte – Segundo a crença popular chinesa, de origem budista, a alma do defunto teria que atravessar a ponte para a eternidade. Corresponde à “luz branca” que se crê divisar-se logo após a morte.

Er-Hu (二胡) Literal mente “Alaúde de duas (cordas)”, também conhecido por violino chinês, instrumento acústico de duas cordas, muito tradicional na música clássica chinesa.

Kun Iam Pou Sat (觀音菩薩) – A prece, ou mantra invocativa a Kun Iam (Guan Yin), a deusa da Misericórdia, profundamente arreigada na cultura religiosa chinesa.

Macau, 29 de Outubro de 2021, Sexta-Feira

© Miguel de Senna Fernandes

UM CONTO DE CAPA VERMELHA

A BRISA descia suavemente pelo vale trazendo a fragrância do pinhal e da flora conífera, naquela manhã de Outono. O odor a terra e do folhado ainda por secar do orvalho da noite passada, bem presente nessa manhã de tempo fresco e seco. Em casa, Alba preparava-se para a caminhada.

Já não fazia isso havia três anos, por se ter decidido ser melhor para os cuidados de que necessitava. Não é fácil para quem tenha nascido com pigmentação cutânea praticamente inexistente, com as deficiências conexas. As alergias, o estrabismo, as câimbras abdominais carecem de cuidados constantes, que uma vida isolada no campo ou floresta não proporciona.  Mal grado, se a cidade potencialmente tem tudo, falta-lhe o natural, que os jardins públicos, os canteiros e floreiras das varandas não substituem.

albina5Deu-se mal.

Até porque era diferente de outras crianças, que ao menos … tinham cor. Uma vez perguntara a mãe porque ela se chamava Alba. Fazendo festinhas na sua testa, respondeu-lhe “porque caíste numa tina de leite e te transformaste na menina branquinha de caracóis louros mais linda deste mundo que amo tanto”. Sempre achou pateta essa explicação, mas vinha de sua mãe que lhe derretia o coração, que imaginava gélido como a sua pele sugeria. Foram, não obstante, três anos depressivos e não havia outro modo que apanhar o comboio rumando à casa. As alergias do campo, passaram a ser um problema secundário. Preferia tê-las a estar no burgo, onde domina o artificial. Fez treze anos e decidiu que tinha de voltar. Ao seu verdadeiro lar.

Precisava de ar fresco, de correr pelo vale, rolar-se pela grama do jardim natural, mesmo à porta da sua casa. Precisava de encher os seus pulmões, absorvendo tudo o que a natureza lhe pudesse proporcionar cada vez que inalava o perfume que a aragem outonal lhe trazia.

Retomaria nesse dia o hábito de visitar a sua avó, que morava no lado oeste da sua casa e que se recusava terminantemente a deixar a sua vida solitária, numa altura em que já levava sobre os ombros setenta e tantos anos. Para Alba, ainda bem que fosse assim. As suas visitas não eram mais do que um pretexto para percorrer a floresta. Preparou com esmero tudo o que era necessário levar. Cantil, saco para os primeiros socorros, cremes para alergias, repelente e alguns artigos de caça, como a sua fisga e seixos.

A temperatura ameaçava baixar. A mãe aconselhou-a a agasalhar-se, não fosse o vento piorar a tosse, que já trazia da cidade.

– Que é da minha capa? – Perguntou à mãe que de início não entendia – Aquela cinzento-esverdeada.

– Ah, despachei-a há dias. Estava muito gasta e cresceste. Mas, comprei-te outra, vais adorar!

Alba ficou chocada quando a viu. Era de vermelho vivo.

– Ó mãe, o que foste fazer! – Protestou.

– Mas, esta cor é lindíssima!

– O que vou fazer feita uma arara numa floresta como a nossa?!

Não havia escolha, porém. Ou envergaria a capa ou seria indefinidamente adiada a caminhada. Num gesto brusco de revolta, enfiou a repugnante vestimenta, seguindo-se a mochila, zarpou da casa sem qualquer despedida.

forest03

Conhecia a folhagem, o perfume da caruma, a gradação dos verdes, dos castanhos que se alaranjavam primeiro nessa altura do ano. Escutava o murmurejar da floresta ao sabor dos ventos, maravilhava-se com a miríade de cores que a luz do sol criava ao penetrar por entre as árvores. Conhecia a toca dos pequenos esquilos e de outros roedores que saltitavam pelos troncos e ramos, os coelhos do bosque e as lebres, reconhecia as nuances do caminho pelo coaxar dos sapos, o grasnar das aves do rio, chegaria perto do daquele troço com água corrente com o crocitar dos corvos. Sabia dos caracóis, dos lagartos e centopeias. Dos melros e rouxinóis que mudariam de melodia consoante o temperamento do céu. Céu este ostentando-se azul, palco do majestoso vôo das águias, falcões e outras aves de rapina.

No temporal, ela transformar-se-ia numa gigante caixa percussão, com a batida das gotas de chuva, fazendo-se acompanhar do ribombo da trovoada, e de mais outros sons dos animais saudando a água que lhes é benta.

Night-Stars-Forests

A noite era para outros inquilinos, que se manifestavam sob a forma de pios, arrulhos, zumbidos, sibilos, ora prolongados, ora ritmados, e de outros sons que a escuridão tornava mais audíveis, melopeia que acompanharia o cricrilar dos grilos e a dança dos pirilampos, sob os auspícios das estrelas ou da Lua, que regularmente prendava com uma visita casamenteira.

A floresta viu-a crescer. Sorriu-lhe desde o dia do seu primeiro piquenique com a mãe junto ao rio, quando deu os primeiros passos, despertando a curiosidade dos pequenos peluches. Nesse dia o canto da passarada ouviu-se como uma sinfonia, donde se surpreendiam camadas de chilreio, cada uma com o seu motivo e ritmo, mas todas fazendo parte de um todo harmónico, talvez pelo vislumbre por aquela criatura humana tão frágil, tão à mercê de tudo à sua volta, tão branquinha a que a floresta se iria habituar.

Não poucas vezes, as árvores escutaram os seus lamentos, pensamentos em alto, os seus desejos, conversaram com ela nos seus sonhos. A sua condição de ser diferente do próximo aproximou-a do seu meio. Aí todos os animais eram diferentes e ninguém se importaria com a diversidade que a natureza para cada um determinou.

Todos pareciam entendê-la, pela linguagem que ela emanava, ao passar suavemente por eles. Criava nomes para alguns que encontrava, inspirados das fábulas e contos mágicos que devorava avidamente. Havia então a aranha Myriam, a gazela Mahalia, o cágado Kapo, os irmãos texugos Saxo e Phonix, e tantos outros que lhe eram especiais. Visitava-os constantemente no seu meio, falava-lhes. Desde novinha sabia que deitada no chão eles se aproximariam, talvez porque assim a considerariam à sua altura. Eles eram o seu próximo, algo que sentido algum faria na vida da cidade.

forest01

A floresta foi a sua escola, onde aprendeu a subir pelas árvores, proteger-se das intempéries do tempo, a fabricar utensílios de defesa, lançar dardos, fazer uso das rochas para fins mais diversos. Compreendeu tão simplesmente que a vida era para se manter até o último reduto das nossas forças. Quem isso menosprezasse não contaria jamais para  a Natureza. Deixaria pura e simplesmente de existir.

Contudo algo mudou, não viu mais ninguém conhecido. Não ficou triste, todos eles têm o seu tempo de vida, é natural, pensou. Mas, havia sons diferentes. Eram de tensão, de desespero, gritos de fuga. Ouviam-se também os estampidos que vinham do outro lado rio, mas ecoavam pela floresta adentro, algo pouco frequente nos outros tempos. O quê teria causado estes estouros repetidos? Reflectia a menina alva de capa vermelha pelo mundo verde à sua volta.

Por entre a ramagem densa do bosque, duas pupilas amarelo-esverdeadas fixavam-na, estudando a sua compleição física, a sua agilidade e conhecimento do terreno, registando todos os seus movimentos, seguindo o seu trajecto. Alba tinha razões para se irritar com o escarlate da sua capa. Wolf-Stare

Kika não arfava, pelo contrário reduziu a intensidade da sua respiração, retesou os seus músculos, prontificando-se, ora para dar o salto sobre o seu alvo, ora para se escapulir em caso de necessidade extrema. Calculava a energia para um ataque bem sucedido. Não seria fácil estando só, longe da sua alcateia. Ademais, estava ferida, consequências de uma derrota na disputa por uma carcaça de um pequeno javali.

Não comia havia cinco dias e uma das suas quatro crias morreu e levado por um milhafre para alimentar os seus. A caça popular e desenfreada a certos animais do outro lado de vale, provocou uma procissão de atiradores e a subsequente a maciça imigração dos lobos, os quais já começavam a ameaçar a zona outrora pacífica para onde se dirigia Alba.

Kika seguia a menina com a mestria que a natureza lhe dera, os seus passos eram pausados, por entre os arbustos, pousando as patas com a instintiva certeza de que não estorvaria o silêncio. A certa altura pausou. Observava atentamente Alba, a qual também pausou para tirar algo da sua mochila. Podia ter atacado nesse momento, mas hesitou. Queria saber que mais a menina tinha para lhe surpreender.

Da mochila saía uma rede de arremesso ladeada de pesos, que ela tinha criado anos atrás para caçar perdizes e codornizes. Ainda se lembrava da técnica que certos pescadores do rio lhe tinham ensinado e que consistia em lançá-la por forma a que os pesos se dispersassem em direcções diferentes, abrindo-a sobre a presa.

E estava uma perdiz ao alcance, debicando os grãos de milho que previamente ela tinha lançado. Posicionou-se com a rede e esperava que a galinácea desse mais uns passos para a frente. Sem saber, fazia o mesmo a que Kika se preparava em relação a si. Sem saber ainda que as pupilas amarelo-esverdeadas focavam no seu pálido pescoço, vulnerável agora que ela se agachara à espera do assalto à perdiz, no perfeito ângulo de assalto.Wolf-Stare02

A adrenalina disparou, enquanto os músculos peludos alimentavam-se de sangue, Kika salivava sem se conter. Bastaria derrubar a menina com todo o seu peso e num golpe maxilar os caninos perfurariam a traqueia. Contraiu os seus membros traseiros que lhe dariam a força para se lançar à menina de vermelho. Respirou fundo e o desfecho viria no segundo seguinte. Foi quando Alba arremessou a rede.

Deu urros de felicidade quando viu a confusa ave a querer, em vão, desenvencilhar-se da rede. Conseguira a prenda para a avó, seria um lindo guisado que prepararia. Segurou na ave, agradeceu-lhe e pediu-lhe perdão. Por fim, para que não sofresse mais, torceu-lhe o pescoço. Enquanto contemplava a sua presa, sentiu então o calafrio. A sua visão lateral abarcava o vulto de um ser possante e algo lhe disse para não reagir já.

Os gritos de sucesso de Alba, soaram a raiva de frustração a Kika. Rangia agora os dentes, tornando-os bem visíveis, as pupilas pareciam assumir o tom alaranjado. Era o tudo ou nada. Ela tinha que investir, apesar da dor que ferida se fazia sentir.

Alba olhou-a de frente, franziu as sobrancelhas de espanto.

– Kika?

A loba pôde ver os seus estrábicos olhos azuis de cristal, a sua pele alva, o loiro encaracolado da menina do bosque, a mesma que tempos já idos a acariciara e a levara de novo para a toca de onde se perdera. Sem ela se aperceber, ganhara o seu nome, porque a menina nomearia tudo por que se apaixonava. Rosnava, não obstante, de dor, de fome, de desespero de uma mãe com petizes para alimentar e ao mesmo tempo em contradição com a memória sobre alguém do passado que dela cuidara. Não obstante, de modo algum sairia do sítio sem algo nos dentes.

– És tu … Kika? Estás com fome?

Instintivamente Alba sabia o que devia fazer. Retirou da rede a perdiz inanimada e colocou-a entre elas duas, e recuou mais um metro. Kika mirava Alba que baixou os olhos, como se tentasse a reconstituir tanto quanto possível essa memória da menina. A suculenta perdiz, porém, foi mais eloquente. Assim, sem perder tempo, avançou e abocanhou a ave, retornando-se à sua posição inicial. No entanto, não saiu do lugar como se esperava. As suas orelhas deixaram de estar em riste e começou a arfar.

Alba fez um movimento de aproximação e Kika manteve-se imóvel.

– És mesmo tu, amiga. Estás tão grande e … estou a ver que já tens filhotes – sorriu.

albina3

Então reparou na ferida. Tirou a capa, arregaçou a manga, desnudando assim o seu braço e, lentamente, estendeu-lhe a sua mão nua. Era um gesto de paz que aprendera a usar. No momento certo acariciou a cabeça peluda da loba, começando por dedilhar o pêlo farto do seu crânio, passando pela orelha. Por fim pousou a sua palma sobre a nuca ao mesmo tempo que Kika baixava completamente as orelhas. A loba ganiu de amuo, mas de afecto também.

– Vai doer um pouco, mas ficarás bem.

Esganiçou quando sentiu o desinfectante a derramar-se sobre a ferida. Rangia os dentes, mas não reagiu contra menina. Sabia que ela estava aí mais uma vez por ela e que mais uma vez ela se curaria. Alba tirou gaze da sua bolsa de socorros e enrolou-a à volta da sua perna traseira magoada. E afagou-lhe a cabeça e o focinho quando deu por fim o curativo.

– O que vieste cá fazer? – Aproximou-se do nariz da loba e deu-lhe uma lambidela, ao que esta retribuiu do mesmo jeito.

Ao longe ouviu-se mais um estampido de caçadeira, seguindo-se o uivo longo e melancólico. Desviou o seu olhar, levantou-se e tentou, em vão, localizar a sua proveniência. Quando retomou a atenção, Kika tinha já desaparecido.

Alba ficou feliz por este reencontro fortuito e pensou no que teria sido de Zorka, um lobo macho que também encontrara quando pequeno.

wolf-pack.jpeg

No outro lado do vale, eram mais de duzentos, num tempo em que gerações de lobos se estabeleceram e procriaram. A fauna era abundante que daria a todos um espaço para a sua vida, num micro-clima onde as condições eram favoráveis a um modo relativamente sedentário de se estar, não obstante à migração sazonal das espécies. Era o local onde ninguém iria, uma espécie de santuário destes cães de uma inteligência especial, altamente organizados, letais quando o instinto obriga.

Tudo mudou quando se deu a conhecer que aquela parte do vale, o clima produziu animais com características naturais especiais, cuja carne seria bem mais benéfica para a saúde do homem do que qualquer coisa adquirida nos supermercados ou nos talhos da vila. Rumores ou meros golpes publicitários, o certo é que se gerou uma curiosidade doentia que passou a enriquecer lojas de venda de artigos de caça. Toda a gente passou a arvorar-se em ter estado nessa parte do vale. Fotografias da caçada passaram a exibir-se nas redes sociais, alimentando ainda mais o apetite, já aguçado pela inveja que se causava em uns e outros.

hunting

Começaram a escassear coelhos, lebres, animais de maior porte como gamos, javalis, cujas cabeças acabaram embalsamados, para abrilhantarem paredes de muitas casas como troféus. Nalgumas lojas da vila começou-se a comercializar peles de linces, que diziam ser do vale, numa afirmação de orgulho pelos produtos naturais da localidade.

A procura do alimento causou rivalidades na alcateia. Vários machos emergiram com potencialidade de liderarem e luta pela liderança, instalou-se a disputa e ela tornou-se sangrenta. A fome não simpatizava nenhuma das facções, antes arrasou tudo e o vale registou mortandade entre os lobos. A fome empurrou vários para o fratricídio e canibalismo.

Zorka viu o seu semelhante dilacerado por outros lobos e a sua despedaçada carcaça ser também motivo  de outras lutas. Viu fêmeas e crias a serem o manjar de alguns. Brigou com outros por causa de uma pata de um companheiro de caça.

Mas nada parecido com o que vira de outros animais que andavam empinados. Estes empunhavam algo, do qual saía um som aterrador e que provocava fogo. Foi numa altura em que os lobos resolveram atacar as povoações isoladas, contíguas ao seu território. O corpo desfeito de uma criança foi encontrado numa gruta com marcas evidentes do seu autor. A guerra homo-lupina não tardou a estalar.hunting03

E foi assim que o chefe do seu grupo morreu. Não por luta, pois não envolvia dentes, nem táctica. Não havia contacto físico. O seu chefe vencê-las-ia todas. Porém, desta vez  a sua glória terminou na rede que o tramou na fuga que o grupo um dia fez destes macacos pelados. Instalou-se o cerco, o chefe avançou sobre um dos caçadores, atraindo a atenção dos restantes. Zorka conseguiu, porém, desviar-se e levou o resto do grupo para um local mais seguro. E de longe observou como o chefe gania quando levou com o balázio de várias armas. Não fez barulho nenhum. Os seus olhos irradiavam a frieza de um sobrevivente que fazia questão em se manter vivo. Mirou os seus companheiros e todos entenderam que ninguém faria nada sem um sinal do novo chefe.

Fez-se noite e então Zorka ululou, incitando outros a fazer o mesmo. Era o uivo de luto, mas de desafio também. Os pelados estes sabiam como caçá-los, por isso para sobreviverem teriam que ser mais rápidos que eles, mais fortes e organizados. Mais mortíferos. wolf-pack02

Nessa mesma fuga sete lobos seguiram-no e ao longo de meses atacaram casas, levaram cães de guarda, galinhas, coelhos, cabras e mais animais de criação. No dia em que deu pela casa da idosa Adelaide, só lhe restaram dois companheiros, tendo uns sido mortos a tiro, outros capturados nas armadilhas metálicas espalhadas pela floresta.

Zorka e outros dois rondaram a casa por fora, certificando-se de que ninguém estava presente. Um deles subiu ao alpendre, dirigiu-se à porta de madeira. A sua pata pressionou e ela abriu-se, com o silêncio a que se habituara a usar, entrou. Mas não estava só.

– D. Adelaide, não pode viver assim. Perdoe-me a indelicadeza, mas a sua idade requer um cuidado pessoal. Esta casa está isolada e já não é segura.

– Bert, agradeço a tua atenção. Sempre cuidaste de mim depois do meu Lou ter partido. Mas estou bem, graças a  Deus. O vale foi me sempre bom e deu-me tudo o que preciso para viver – sorriu ternamente.

– Andámos a correr com os lobos e não há meio de os dizimar. Eles têm sido bastante aguerridos e arrasam tudo que mexa sobre patas.

Adelaide encolheu os ombros.

– Faríamos o mesmo se nos tirassem o pão, não achas? forest02

– Seja como for, D. Adelaide – suspirou – todo o cuidado é pouco. Eles atacam na calada e estão cada vez mais inteligentes. Lembram-se de muita coisa, o que é espantoso.

– Que mais podem querer com uma velhota como eu? – gargalhou.

– Não brinque. Você é uma das pessoas mais queridas aqui do vale! – Ripostou com um sorriso condescendente – em todo o caso já montei um sistema de alarme. Em caso de necessidade é só carregar no botão e estaremos prontamente aqui.

– Muito bem, Bert. Obrigada pela visita. Descansa que cumprirei à risca o que me recomendou.

– Não é uma recomendação, D. Adelaide. É uma ordem! – O lenhador deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Adelaide acompanhou-o à saída e ficou no alpendre até a carrinha desaparecer da sua vista. Porém, antes de regressar para o interior sentiu um calafrio.

wolf-teeth-1Dois lobos estavam atentos, um deles especialmente robusto e pardo, orelhas em riste. Num ápice fecha a porta da sua cozinha e inicia a trancar as janelas, quando o rugido que vinha dentro da sua casa a paralisou. Instintivamente segurou numa faca e virou a sua cara em direcção à origem do som. Não teve tempo para se horrorizar, o animal lançou-se sobre ela e ferrou-lhe no braço com os seus dentes pontiagudos. A dor teria sido lancinante, mas no momento a luta pela sobrevivência falava mais alto, sobretudo quando o predador estava em cima dela, os caninos rasgando a carne do seu membro.

Nunca imaginara que pudesse ver o último momento da sua vida sob uma besta que a devoraria de seguida. O lobo libertou então o seu braço sangrado, abriu a sua boca preparando-se para o golpe final. Adelaide nunca vira dentes tão aguçados e horrendos, nem nunca cheirara o bafo gutural de um animal. Mas decidiu que não seria carne para ninguém, muito menos para lobos. E no momento da última investida do esfomeado animal, Adelaide usou toda a força que tinha e golpeou o pescoço do atacante, repetiu outro na cara do animal que se soltou do corpo da idosa. A adrenalina que lhe restava ainda foi suficiente para desferir um derradeiro golpe que atingira na articulação do seu membro dianteiro, perfurando o coração. O lobo soltou o uivo pela vida que se esvaía naquele instante.

blood knifeAdelaide com custo conseguiu dar uns passos em direcção ao alarme e ouviu o estrondo de quem se tinha introduzido na sua casa. Preferiu esconder-se na despensa, fechando a porta o mais levemente possível. Sentia o coração a bater como que esguichando o sangue pela ferida que se abrira. Contudo, não podia fazer barulho, sobretudo quando escutou passos dentro da sua casa. Fechou os olhos e rezou.

Alba estranhou o silêncio quando entrou em casa da avó, estando as janelas abertas. Caminhou de surdina, para não surpreender fosse o que fosse. Não viu nada de anormal quando passou pelas salas de estar e de jantar, que se mantiveram arrumadas com todos os adornos no sítio, tal era a meticulosidade da D. Adelaide. O mesmo aconteceu no quarto de dormir. Dirigiu-se então para a cozinha e aí viu a porta traseira aberta, uma janela por fechar. Começou por reparar uma desarrumação fora de normal. Havia pratos e talheres no chão, a toalha de mesa fora da mesa, uma cadeira às avessas.

E por fim, sangue. Dedadas a vermelho nas bordas da mesa, no soalho, resquícios de luta, marcas de garra. E num canto, estava um animal peludo prostrado sem vida expelindo uma poça sangue.

– Avó! – Bradou aflita. Avó estás aí??

A porta da despensa abriu-se e Adelaide apressou-se a avisar a neta do perigo. A sua mão sangrava ante o olhar horrorizado da menina. Dirigiram-se imediatamente à porta traseira, mas deram com os dois lobos barrando a saída, mostrando os dentes prontos para se usarem. O odor a sangue atiçou ainda mais a ferocidade dos dois que as cercaram. Adelaide, não obstante o desgaste físico a que se obrigara momentos antes, apertava o cabo do facalhão com mais força, protegendo Alba, enquanto esta sacava do seu bolso a sua fisga. blackwolf

O olhar de Zorka era frio, no entanto lia-se nele a determinação de matar. Guardando a porta, fez sinal. O outro não se fez de rogado e rangeu os dentes, retesou os músculos e avançou. Não compreendeu o que a menina fazia com a fisga direccionada a si. Por isso, não viu, nem pôde ter esperado que um seixo fosse disparado e em menos de um segundo lhe perfurasse um dos olhos. O lobo pulou desorientado pela dor e pela visão ofuscada. Ainda assim não desistiu, os seus maxilares abriram-se em toda a sua extensão, prontos para abocanhar, projectando-se às duas, com um rugido hediondo, quando mais um seixo era catapultado, desta vez directamente para a sua garganta. Desequilibrou indo de encontro com as duas, mas sem as morder. A ferida tornou-lhe impossivel fazer uso da boca  como a Natureza previra para ele. Não uivou, produziu antes um som abafado de agonia, tossindo sofregamente sangue, antes de tombar no chão.

Aproveitou-se do hiato em que Alba se ajoelhou, tentando recuperar a fisga, caída no chão depois do embate anterior, e aproximou-se. Mas, não de frente. Quis ele dar-lhe a conhecer o seu porte, num gesto de intimidação. Moveu-se ante as duas num vai-vem sereno. Em modo frugal mirou os dois companheiros, surpreendentemente arredados da luta, mas sem dar mostras de alguma preocupação. Exibia o seu pêlo farto, escuro, orelhas em riste, peito robusto, a cauda virada para cima. Andava como se risse da situação de desespero das duas peladas que certamente tombarão a seus pés. Andava como um chefe que daria luta até o fim.

Alba sacudia-se de medo, mal imaginando ter tido a coragem de fazer uso da sua arma. Não obstante, estar desarmada pôs-se à dianteira apesar do protesto da avó e olhou frontalmente o lobo pardo.

Este então sentiu que era altura para terminar com tudo, quando cruzaram o olhar. Porém, para surpesa da menina, não agiu logo. albina-eyes

Os seus olhos gélidos fixaram-se nos cristalinos de Alba, como se estivesse a lê-los. A ponta das orelhas tremelicava em contraste com o seu olhar imóvel e Alba teve a sensação de ter ouvido um curto amuo quase inaudível. E imagens começaram a inundar a cabeça do predador. Numa delas aparecia um animal de pele alva, olhos sem pupilas, de cabeça com cor doirada, que lhe dava festinhas no focinho, lhe lambia o nariz. Animal descolorado que brincava com ele e que num dia de temporal o  socorrera quando a chuva fez desabar terra sobre a sua toca.

– Zorka … – balbuciou Alba, sem ter a certeza do que estava a dizer.

Adelaide quase a desfalecer, levantou o braço com o cutelo na sua palma, interrompendo o breve momento de devaneio do lobo, encarrilando-o de novo no seu propósito assassino. Zorka baixou a cabeça ao mesmo nível do seu musculado dorso, apoiado nos seus robustos membros, arqueia as suas patas traseiras. Os músculos faciais contrairam-se, as gengivas visíveis e os caninos brilharam. Como ele salivava.

Alba entendeu, fechou os olhos e esperou pelo rugido final.

O que lhe soou, porém foi um uivo agoniante. Abriu os olhos e deparou com Zorka na acesa luta com outro animal que cravara os seus dentes no glúteo esquerdo e impedia a investida. O lobo pardo rodopiou, servindo-se do comprimento do seu corpo para alcançar o seu adversário. Mas este não era menos ágil e conseguiu evitar ser mordido. Alba aproveitou-se desse instante para soar o alarme e apanhar a sua fisga. Olhou para o intruso e reconheceu.

Kika manifestamente menor em tamanho, travava um duelo fratricida com o seu oponente, que a todo o custo queria livrar-se da dentada na sua carne. Sabendo da voracidade do lobo macho, ela meteu-se no encalço da menina e veio para a proteger. Para Alba, foi a única explicação plausível desse ataque.

Zorka não suportou mais a dor e num momento de frouxidão dos maxilares, afastou a loba com uma patada. Sabia que a loba não daria gratuitamente por findo o duelo, teria que a imobilizar. Seguiu Kika para fora.wolf fight03

Ouviram-se ruídos de contacto físico, correrias, roncos ferozes, bramidos, ora claros, ora ofuscados, próprios dos momentos de luta com boca e dentes. Por fim um lamento longo de suplício, de quem fora atingido mortalmente. Seguiu-se um momento de calmia.

Alba tentou saber o que teria acontecido a Kika, mas Adelaide afastou essa possibilidade e ordenou que saíssem da cozinha por outro lado da casa. Era o que Zorka tinha também previsto. Esperou-as no fundo do corredor que daria acesso à sala de estar. Desta vez não hesitou e avançou com toda a pujança sobre elas. Poupou a avó que seguia à frente e foi rente à menina. Saltou e num ápice estava em cima de Alba, aprisionando-a com todo o seu peso. Alba inalou o forte hálito que vinha das suas entranhas, os dentes pontiagudos com resquícios de sangue, provavelmente da luta com Kika. Sabia o que lhe iria acontecer, um momento que vinha sendo adiado sucessivamente.

O lobo fixou novamente nos olhos vidrados de Alba. Escondeu as gengivas.

– Zorka … lembras-te de mim? – Sussurrou. O lobo não se mexeu, mas contemplava atentamente na menina. Alba não sentiu a agressividade esperada, porém não podia estar certa disso. Emitiu um som gutural agudo, a imitar um ganido. Fazia isto a cães, fez isso nos jogos que anos atrás teve com os dois lobos, rebolando-se pela grama. As pupilas do lobo ganharam cor.

Alba então arriscou. Fitando-o, fez um esforço e levantou a cabeça, ficando a centímetros do seu nariz. E antes que Zorka reagisse a essa acção, lambeu-lhe o focinho. E repetiu o acto, emitindo o mesmo ganido.

O lobo de repente levantou-se libertando Alba do seu peso. Manteve a sua cabeça junto à cara da menina, as orelhas baixaram, a cauda abanava-se lentamente. E lambeu o nariz incolor, a sua lingua subindo para as bochechas, permitiu que Alba afagasse a sua cara, a sua cabeça, sentisse a fartura do pêlo.

– Meu amigo. Lembras-te mesmo de mim, das nossas corridas, escondidas?

wolf kissZorka arfava agora, como um cão ao reencontrar um amigo. Correspondeu com um ganido uivante longo. E repetiu-o como se cantasse um hino de saudade, por alguém que o entendia e que pertencia ao seu mundo. E soltou mais um. E outro.

E ao iniciar o seguinte, ouviu-se um estrondo de caçadeira. Zorka baixou as suas patas traseiras como se sentasse.  Alba confusa, contemplava o lobo sem entender o que lhe teria acontecido. O lobo ganiu pela última vez.

– Não!

Seguiu-se mais um estrépito e bala atingindo-lhe um dos maxilares, perfurando o seu crânio.

– Zorka!! – bradou Alba, manchada de sangue do animal que acabara de a reconhecer. O lobo não teve tempo de fechar os olhos, mas Alba teve a certeza que ele a reteve na sua memória que agora acabava de se apagar.

– Por pouco! – exclamou Bert.

Certificou-se que um lobo estava morto, engatou a sua arma e deu dois tiros na cabeça do segundo que ainda vivia sofregamente.

– Que sorte nossa. Ainda bem que o alarme funcionou. Tu és um anjo, Bert! – Adelaide felicitou o lenhador, dando-lhe um abraço.

– Como lhe disse todo o cuidado é pouco. Este vale já não é o que foi. Agora vamos levá-la para o centro médico, vai ter de ser vacinada contra a raiva.

Aproximou-se de Alba que ainda estava agarrada ao inanimado monstro.

– Menina estás bem? Terás que ir connosco também, para ver se estás em ordem. Tudo acabou, estão ambas livres do lobo mau.

Alba ignorou o lenhador e desatou-se a correr para fora de casa. Queria saber da Kika.

Encontrou-a deitada por trás de uma vegetação circundante. Era visível o rasgo do músculo da sua perna dianteira.

– Oh, amiga. Olha o trabalho que tiveste. Voltaste por mim – as lágrimas corriam-lhe copiosamente. Kika não respondia, apenas a enxergava impavidamente.

– Menina afaste-se, está a escurecer e vamos ter de acabar o trabalho – interrompeu Bert.

O lenhador enfia dois cartuchos na sua caçadeira e prepara-se para dar o golpe final a Kika já prostrada.

0822-wolf-howl.jpgAlba travou a sua marcha, deu uma passo à frente e barrou-lhe o caminho.

– Não, por favor, ela não! Ela tentou salvar-nos. Rogo-te que a poupes!

– Ó menina, ela é apenas um animal. E é perigosa!

– Não estaria a falar consigo se não fosse ela!

– Animais são animais! Quando têm fome atacam. Nesta zona, os lobos não entram, é o sinal que darei. As pessoas têm o direito de viver em paz na sua casa, na sua terra!

Alba não ripostou. Mas era visível a ira nos seus olhos cristalinos.

– Isto tudo era terra deles! – bramiu – Para onde eles irão? Para uma reserva como os índios?!

O lenhador emudeceu. Não havia, na verdade, mais nada a dizer, apenas cumprir o que supostamente lhe era destinado a fazer. Encolheu os ombros e suspirou.

Fitou a menina seriamente e desengatou a arma.

– Que não volte a aparecer-me pela frente! – pousou a caçadeira sobre os ombros e afastou-se em direcção à sua carrinha arrastando consigo Zorka, o orgulhoso lobo pardo, outrora o terror do outro lado do vale e agora reduzido a um monte de carne, a ser posteriormente incinerado.

Quando Alba voltou, Kika tinha desaparecido.

falling-skies

Nessa noite de céu límpido, a lua crescia fulgurante. A secura do tempo tornava mais visível a sua textura de crateras, ranhuras e manchas. Seria naturalmente brindada com o mesmo coro de sons e ruídos, cânticos nocturnos de animais e insectos com zumbidos e silvos, rastejos e cricrilos. Foi assim sempre, desde o início dos tempos.

Alba interrogou-se a saber como tudo isso foi possível. Pensou em Kika e Zorka e no que teriam os seus olhos visto, no que lhe diriam se pudessem falar. Se teriam mesmo se lembrado dela e se realmente lhe pouparam de um fim crudelíssimo para o ser humano, mas de todo normal para eles. Não haverá maneira de responder, por muito que se labutasse nisso. Subsistiria apenas a crença de que nem Kika, nem Zorka queria que ela acabasse como um lobo ditaria, porque no momento da verdade viram nela como um dos seus. Era isso que preferiria.

Mas sabia que não era uma história de fadas, onde vencem os justos, os bons e perecem todos os que lhes sejam maus. No estado da natureza, não há céu, nem inferno e não se purga coisa alguma. Não há razão, nem dever-ser. Há apenas uma ordem imanente de se estar vivo, independentemente das mutações e do fortuito que ela comporte.

De longe ouvia-se um uivo longo. Desejou que fosse Kika a ecoar-lhe um adeus.

Fechou o livro de “Bambi” e desligou a luz.

wolf howling

Macau, 6 de Setembro de 2019, sexta feira

© Miguel de Senna Fernandes