O SAPATEIRO DA TRAVESSA

1.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

O seu martelo golpeava a bigorna pequena e produzia o timbre metálico e sonante na Travessa do Paiva. A serenidade dessa via que liga a Rua Central à Praia Grande, permitia que a sua martelada fosse bem audível, desde o posto da Polícia Militar do Palácio da Praia Grande até ao edifício da Imprensa Nacional.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Se outros atraíam com a voz, o seu pregão era a batida aguda com compasso que começava lenta para depois acabar abruptamente. Todos os dias à tarde, montava a sua banca, junto à extensa parede do Palácio, essa figura de cabelos grisalhos, pele seca e morena, franzina e frágil de Lam Kong, que tinha por hábito agachar-se, sentando-se sobre o seu banco de madeira, de cigarro no canto da boca, ficando à espera da clientela que lhe levaria pares de sapatos para conserto.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

E todos os dias galgava a travessa com a pinga sobre o ombro com duas caixas penduradas a cada extremo, uma para a sua ferramenta e outra para os sapatos já prontos. Tão hábil no seu ofício  e tão conhecedor do pé humano como era, vinha gente de outras paróquias a solicitar a sua arte.

Toc, toc, toc, toc-toc-toc!

Gente de todo o género acorria aos seus préstimos, a começar com os polícias militares, os rondas. Nos tempos mais remotos, apareciam-lhe os praças de Goa e os landins que lhe entregavam restos de sapato, tal era o estado lastimável disso que em princípio devia destinar-se à protecção dos pés. Mas Lam Kong não se queixava, ao invés, executava o  trabalho com igual mestria. Contanto que lhe pagassem, o mínimo que fosse. Não estava ali a pedir esmola, nem para ser um bom samaritano. Todo o trabalho deveria ser recompensado. E…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

O seu bom nome chegava às bocas e ouvidos de gente mais fina. Segundo rumores mais ousados do bairro, até o Governador e esposa solicitavam os seus bons ofícios, tanto quanto a discrição lhes permitia…

Toc, toc, toc-toc-toc-toc!

Porém, as poucas patacas que recebia mal pagariam a medicação que a sua netinha necessitava. Lam Kong preferia não pensar nela, para que a dor de coração não estorvasse o ritmo do seu ofício. Tinha de labutar sem parar. A sua netinha tinha direito de brincar, de correr pelo jardim, de gritar, de fazer toda a série de traquinices a que só um avô acharia piada. Não deveria estar na cama, sem prazo. Contava sempre o dinheiro ganho do dia e  calculava quanto sapato teria de consertar nessa semana, como já fizera em tantas outras semanas. 

Havia  também quem os abandonasse, ou pura e simplesmente não os levantasse a tempo, ignorando o seu pré-aviso, de que faria tudo para convertê-los em dinheiro, vendendo-os na melhor forma possível. Sem desperdício algum, a sua netinha não lhe permitiria inutilizar nada, nem tornar o seu trabalho em vão. Era isso que sempre pensava quando reconstruía a sola de um botim, emendava um buraco provocado pela secura do couro. 

Já andava nisto havia dois anos.

Travessa do Paiva, Macau. 1945.
George Smirnoff

2. 

Numa das tardes de Outono, em que a neblina caíra como uma fina rede translúcida sobre o bairro, chegou-lhe um moço que lhe entregou um par de calçado feminino. De modelo modesto, apresentava-se em manifesto estado de degradação. O tacão rachado num deles, totalmente gasto noutro, havia riscos, partes desgastadas com o tempo.

O senhor conserta-me isto?

– Isto vai requerer muito trabalho, rapaz.

O moço não respondeu.

– A flor que devia estar aqui é de difícil reparação. Não tenho tinta para isto. Tens a certeza que tua mãe ainda os quer?

– Por favor, sei que o senhor conserta tudo. Corri para todos os cantos e todos me disseram para vir ter consigo. Vim do bairro de Santo António.

– A tua mãe deve perceber que lhe vai custar dinheiro. Não era melhor comprar uns novos?

– Ela adora estes sapatos, são do seu casamento.

– Mas, isto rapaz, vai levar tempo para…

– Preciso deles amanhã…

– É impossível, o trabalho que isto requer…

– Ela está de cama. Vai ficar muito feliz e se calhar melhorará, tenho  a certeza disto.

Lam Kong fixou no catraio de feições ocidentais, olhos grandes e amendoados, mas claros, pele alva e cabelo escuro, de camisa amarela de linho e calções de ganga. A voz era pausada e muito suave. Falava tão bem chinês.

– Que idade tens, rapaz?

– Tenho oito – e antes que Lam Kong interrogasse mais – vivo com a minha avó.

– Sabes, vou ter de interromper tudo para fazer o que me pedes. Isso custa dinheiro, diz à tua avó. Vou precisar dele.

– Apenas peço o favor … a minha mãe vai adorar. Amanhã, pode ser? Rogo-lhe.

Antes que Lam Kong pudesse responder, viu o moço a correr em direcção à Praia Grande, deixando consigo o par dos mal tratados saltos. Num lapso de segundo, não sabia o que fazer com o que tinha nas mãos. Ademais, não tinha fixado o valor pelo trabalho. 

A imagem da netinha interpôs-se, então, no seu pensamento. Não era de reclamação, mas algo que lhe murmurava no íntimo que aceitasse o novo trabalho. Com sacrifício do restante.

Começou por estudar a extensão do dano. Ambos os tacões precisavam de reparo sério, com pedaços de madeira a soltarem-se, rasgando o tecido de couro branco que cobria o calçado. Felizmente, ainda existiam as alças que se mantiveram incólumes ao desgaste, mas as palmilhas já deixaram de o ser para se tornarem em algo semelhante a pasta de papel seco e apodrecido. A planta de ambos os sapatos estava descolada e Lam Kong sentiu pena da sua dona, pois devia ter pés finos e frágeis que o modelo impunha. Havia ainda que reconstituir uma flor de cor prateada a ser colocada sobre a biqueira. Fez as contas e iria passar uma noite naquela brincadeira!

A Igreja de São Lourenço badalava as seis. A travessa já era calma e mais se tornou com o cair do dia. O enxame de libelinhas pairando sobre o jardim do Palácio anunciava um tufão e outros bichos que povoariam a noite começavam a chegar. 

Lam Kong caminhava com a pinga ao ombro carregando a ferramenta e outros sapatos cujo destino ficara suspenso com a tarefa a que se comprometeu, sem saber como explicar. Instintivamente passou pela lojeca de quinquilharia do velho Kuan, na Rua Inácio Baptista, onde se encontrava tudo o que uma razoável imaginação permitia abarcar, numa confusão organizada com que só o seu dono sabia lidar. Aí descobriu colas, tintas, botões, alfinetes, couro sintético de diversa espessura, arame, pastas para o remendo de buracos e outras imperfeições, enfim, tudo o que precisava para a grande aventura da noite. Mas não, não tudo. Como iria polir e colorir o produto final?

É um grande problema Ah-Kong. – disse o velho Kuan, enquanto sugava o fumo do seu cachimbo de bambú – Mas, és um sapateiro, não?

Nem lhe interessara explicar como aceitara aquela proposta insana. 

E a tua loja não vende “tudo e mais alguma coisa” como anuncia?! 

Sabia que era a frustração que alimentava a parvoíce da sua resposta. O velho Kuan tão pouco se importou. Pousou o cachimbo, calçou os seus chinelos  japoneses, ajustou a sua camisola interior. Fazia isto quando tinha que tratar algo com seriedade. Sentiu que o seu velho amigo Lam Kong estava em apuros. Foi a um quarto, não mais organizado que a recepção da loja, onde a mulher cozinhava o jantar, lavava a roupa e criava uma galinha. 

Não sei se isto serve, não percebo nada de tintas. Mas para aquilo que me explicaste é capaz de funcionar. Que cor queres?

Lam Kong olhou estupefacto para as quatro latas cilíndricas de tinta branca que o velho daí trouxera.

Segundo meu filho, tens que chocalhar a lata e carregar neste botão vermelho. E a tinta sairá uniformemente. É daquelas coisas modernas que vieram para o mercado – sentou-se de novo na sua cadeira de vime e retomou a sua cachimbada – Pagas-me depois. E levas o secador de cabelo também.

Lam Kong continuava mudo com ar de desânimo ante a imagem revoltante do estado de degradação do calçado.

Precisas dos meus botins? – Sorriu o velho Kuan. – Ah Kong, o que tem de ser feito, será feito. És um bom homem, não te esqueças disto. – acrescentou depois  e ligou a telefonia, enquanto se deliciava com o sabor húmido do tabaco.

3. 

Levava um pouco mais de peso do que o habitual, quando descia a sinuosa Rua Inácio Baptista rumo à da Praia do Manduco, onde se marcava o fim do “bairro cristão”. Não tanto pela tralha que carregava, quanto o propósito daquilo tudo. A imagem da netinha e depois a do catraio, moviam-no numa contradição que naquele momento confuso lhe fazia sentido.

A mulher preparava a canja com carne de porco e ovo salmoirado quando ele chegara a casa. Pousou a sua tralha e sentou-se exausto da eternidade do dia.

Ela está a dormir. Hoje comeu bem – sorriu, enquanto vertia a canja na tigela para o marido – Até quando terá ela de sofrer essas dores? Coitada, que mal fez ela para merecer isto? É a maldição da nossa filha ter casado com aquele pulha. A doença dela começou depois do casamento, lembras-te? A Mei-mei carrega este mal que aquele maldito lhe lançou!

Lam Kong manteve-se impávido ante o que mulher repetia todos os dias. Compreendia o seu estado de  inconformação, mas já não a levava em paciência. Provavelmente, já tão calejado de a ouvir bater tanto na mesma tecla, sentia-se agora sentimentalmente imune ao fastidioso flagelo da mulher nos seus ouvidos.

Pelo menos, não reagia com a agonia daquele dia em que vira partir a filha, vítima de uma galopante tuberculose. Não sabia se tinha a ver com sinas, ou se o genro tinha alguma culpa nisso, o certo é que este a abandonara logo que soube da doença. Acamada e ventilada, a filha não falava, pois nem forças tinha para tal, mas o seu olhar pedia clemência para o bem estar da sua bebé Mei-Mei, rogava ao pai que fizesse tudo ao seu alcance para velar pela saúde da petiz que acabara de nascer. Lam Kong apenas segurara a sua frágil mão, assentindo com a cabeça, enquanto o frio se apoderava do corpo e anunciava o momento. Deu ainda para lhe colocar sobre o peito a velha boneca de saia verde a sorrir, que lhe oferecera quando era pequena, dando-lhe um adeus silencioso, com a promessa de que a netinha estaria sempre bem entregue. Mas ela já não o ouvia. Não chorou ao estertor, ao arrepio da tradição chinesa de uma auspiciosa despedida. Queria antes que a filha pudesse transitar suavemente para  uma outra existência e se remisse da insustentável dor, partindo tão leve e inocente, quanto veio a este mundo para uma vida tão cruelmente efémera.

Não quis culpar o genro, não obstante a ignomínia do seu abandono. Preferiu aceitar o destino e selá-lo, partindo para uma realidade nova. A netinha exigiria a atenção que o ódio iria comprometer. Era melhor guardá-lo e soltá-lo de vez em quando, sempre que estivesse apenas consigo ou depois de uns copos de vinho de arroz com o velho Kuan, quando pudesse chorar e gritar impropérios a Kun Iam, ainda que a deusa o não entendesse.

Mais pessimista e rancorosa estava a sua mulher, que vestia a pele de mãe ferida que se via impotente para uma reviravolta e para traçar um rumo para a bebé Mei-Mei. A sina pairou sobre a família, entendeu, e a única explicação teria sido o “pulha”, por quem passou a nutrir um ódio das entranhas. Passou também a ter a certeza de que o mal se instalara em casa e que não descansaria enquanto os três se mantivessem vivos. 

Muito altercara com o marido, que não aceitava os seus argumentos, chamando-lhes de irracionais. Até que um dia se virou para ele com a notícia de que a Mei-Mei manifestava sinais de uma lenta progressão degenerativa de atrofia muscular. E teria que ser tratada com urgência, ir a Hong Kong com frequência.

Era mais uma desgraça que se abatia sobre a família. A mulher venceu a discussão, porém o seu triunfo sabia a fel. Muitas rezas encomendou e muito bonzo visitou a casa, mas nada alterara o trilho para o abismo.

Lam Kong achou que os deuses tinham mais que fazer e não perdeu tempo para tratar da melhor forma de ganhar o dinheiro, pelo menos para a deslocação a Hong Kong. E numa das noites de sám cheng, o velho Kuan, o taciturno que falava mais com olhos e trejeitos, escutou a história ao sabor da cachimbada, foi ao quartinho e depois daí voltou com um par de botins de tropa a cair aos pedaços, com sola lastimável, numa amálgama indefinível de cabedal, borracha e couro, com terra e dejectos secos à mistura. E foi lapidar ao entregar-lhos.

O meu irmão usava-os quando encontraram o seu corpo, na guerra com os “lo pak tau”. Se me conseguires pôr isto a funcionar como sapatos, terei muito trabalho para ti. Tenho gente das obras que vem comprar material miúdo. Andam descalços porque já não têm outra coisa para cobrir os pés. 

O níquel soara mais alto e inspirara o engenho, quando a escolha sumira. No dia seguinte o velho Kuan era um homem feliz que se reconciliara com o passado. Lam Kong renovou os botins do irmão numa noite e não tardara haver gente descalça a alinhar-se à porta da lojeca de quinquilharia para o conserto do seu calçado, como tinha prometido o Kuan. Durante dois meses, trabalhara sem parar renovando calçado, tornando-o utilizável, protegendo pés miseráveis de calo gasto.

Num dia de domingo, porém, apareceu-lhe algo novo. Uma senhora de feições ocidentais parara diante dele.

Também consertas isto? –  entregou-lhes um par de saltos altos, com tacão solto a solicitar sério reparo.

Posso tentar, minha senhora. Vai-lhe custar é dinheiro. Terão de ser trinta patacas e precisarei de três dias.

– Vou-lhe pagar sessenta e quero-os prontos amanhã!

Nessa noite, aos copos com o velho Kuan, desabafava sobre a falta de tempo, sobre essa “gente bárbara” que exige muito. Este, invariavelmente escutou-o sorumbático e apenas encolheu os ombros:

Lembras-te dos botins do meu mano? Então, não consegues?

Lam Kong não rabujou mais, aquiesceu e numa assentada emborcou o sám cheng. Suspirou e debandou. No dia seguinte a bárbara senhora desfazia-se em sorrisos, pelo trabalho meticuloso que ele fizera aos seus saltos e acabou por lhe pagar sessenta e cinco patacas, prometendo-lhe que traria mais gente. E mais gente veio, oriunda da Igreja de São Lourenço, logo após a missa ou catequese. “Gente branca” que falava chinês, mais exigente, com calçado mais complexo.

Ah Kong, talvez seja altura de ires para outro lado – disse-lhe um dia o velho Kuan – Aqui só aparece gente desgraçada. Precisas é de gente que pague.

O velho sagaz sabia que era isso que ele precisava de ouvir. Duas semanas depois, fixou o seu estaminé ambulante junto ao mural do Palácio da Praia Grande, não porque a Travessa do Paiva fosse um local concorrido, mas porque assim, pensava, poderia atrair mais gente branca que pagaria muito mais que os míseros avos da mais humilde gente descalça da construção. 

Haveria, no entanto, que inventar um chamariz. Passou o dia todo a pensar em vão em pregões e, num acto de desespero ante a falta de imaginação, deu uma pancada na bigorna que ecoou pela pacata Travessa do Paiva toda. E assim “toc, toc, toc-toc-toc-toc!” passou a ser o seu mote de guerra, e entre a gente branca ficou conhecido por “sapateiro tóc-tóc”.

A tosse despertou-o da erradia divagação  pela memória e atraiu-o para o quarto da netinha. Deve ter sido a saliva que se avolumou na sua boca, pensou. Mirou a petiz e comoveu-se com o profundo sono em que esta mergulhara. Reparou no movimento do seu frágil peito e sentiu a segurança que transparecia no seu pequeno rosto de menina que sucumbia à paz da noite. Não pensou na injustiça, mas tão só na serenidade que ela merecia. Era tão bom que todas as noites tivessem este desfecho de sossego. Compôs os desgrenhados cabelos que cobriam o seu nariz e notou como os seus lábios desenhavam um sorriso, as covinhas salientavam-se, sugerindo sonhos lindos que desfilavam naquela mente imaculada, de quem não sabe o que espera do mundo.

Contudo, nessa noite tinha trabalho que o desviaria do seu propósito diário. Iria dar crédito a uma causa que nada tinha a ver com a menina, iria fazer algo à margem da sua obsessão. Talvez estivesse junto dela, por descargo de consciência, algo que a sua mulher não entenderia. Talvez estivesse ali a pedir a sua aprovação.

Do vizinho vinha a transmissão da rádio “Vila Verde” e escutara a voz galvanizadora de Ma Si Chang, o orgulho da ópera de Cantão. Acendeu o cigarro, era altura de começar a aventura da noite.

4. 

A pinga pesava mais no dia seguinte, muito embora não carregasse mais do que era o habitual. O que era novo era o par de sapatos de salto, os mais belos que alguma vez vira na sua vida. 

Sentou-se junto ao mural, no local onde, por mera tolerância oficial, fixara o seu estaminé. Nesse dia não assinalou a sua presença com a martelada do costume. Preferiu apreciar o seu trabalho da noite anterior, procurando desvendar defeitos que pudessem ainda subsistir. Sabia que nunca atingiria a perfeição, mas deu-se por satisfeito. Era um reles, sabia. Todavia, sem dar conta nem valor,  tinha postura de artista.

Olhou em direcção à Praia Grande e não havia sinal de criança alguma, apenas oficiais de exército portugueses que entravam e saíam da porta lateral do Palácio. Teria o catraio ideia alguma de como tudo se passou em sua casa ontem?

Tantas vezes trabalhara na calada da noite, em que o bairro se rendia ao sono, em que se ouviria o chirriar do grilo, o assobio seco do vento norte atravessando a rua estreita da Praia do Manduco, o bater das asas de morcegos e de aves nocturnas, o miar dos gatos em cio, interrompidos pelos passos do chon keng, o polícia de ronda, pelo pregão merencório do vendedor nocturno de papos secos, ou então pelo som do er-hu do vizinho. O odor do bairro, salpicado com maresia, champaca, frutos salmoirados e achares, tornar-se-ia mais intenso ao cair do dia, quando todos retornassem à casa e o deixassem exalar-se e recuperar o fôlego para o dia seguinte.  

Em casa, o mundo não era muito diferente, porém o silêncio era dono das suas emoções. Tornava mais audíveis as vozes da sua mente, as quais por sua vez condicionavam a viagem do seu espírito. A voz que mais ouvia era a da sua filha, a do seu primeiro “papá”,  dos seus gritos de alegria ao baloiço, das conversas com a boneca, dos queixumes fazendo beicinho, do anúncio da sua gravidez, do seu casamento, da sua doença, do seu adeus. Outras vozes sobrevinham, como a dos murmúrios da Mei-Mei, da aspereza da mulher, da sabedoria do velho Kuan. Tudo isso ao mesmo tempo, porque o silêncio impunha que assim fosse, tornava-o vulnerável, agrilhoava-o a uma condição de inelutabilidade a que ele indulgentemente se deixava prender.

Mas nessa noite o silêncio foi outro. Bem mais calmo, sem outra voz que não fosse a dele próprio, acompanhada da telefonia do vizinho que transmitia a ópera cantonense trágica de Tai Nui Fa. Sentiu-se liberto de tudo, como se tudo o quisesse envolto nessa causa da noite. A voz cristalina de Pak Sut Sin atravessava o bairro adormecido, como o er-hu  faria, enquanto ele desmanchava os despedaçados sapatos, peça por peça, alisando-os com a lixa fina, desnudava os calçados da pele dilacerada, recompunha os tacões de madeira, colando os pedaços que se destroçaram e martelando peças metálicas para dentro dos mesmos, que sustentariam o peso de um corpo. Não olhara para horas, apenas para os pezinhos imaginados, para o calçado simples e elegante que tinha em mãos. Notou que não havia sinal de rompimento dos lados, como teria acontecido, se a dona tivesse pé chato ou alargado. Os da mãe do menino eram certamente finos e elegantes. A senhora não pesaria muito, pois não acusavam desgaste nos calcanhares, muito embora a zona palmar não tivesse resistido à erosão do tempo. Deveria ser uma senhora distinta e de modos aprumados, como era o menino de olhos grandes e amendoados da Travessa do Paiva.

O estado de degradação da flor da biqueira permitia tão-só a sua substituição. E assim imaginou o que a senhora fina e leve admitiria sobre os seus pés. Teria que ser uma flor simples, para um modelo modesto, mas nobre pelo suposto estatuto social da dona. Uma rosa simplificada seria uma solução sensata e bela. Não perdeu mais tempo e, acto contínuo, viu-se a cortar em dobro a folha de couro sintético em três séries de pétalas para cada sapato, para se sobreporem umas às outras. Não satisfeito ainda, colocou ambos os seriados ao lume para que as extremidades se derretessem, curvando-se, ora para cima, ora para baixo, numa aleatoriedade natural própria de uma flor. 

De repente, o olhar do miúdo interrompera a sua concentração. O que teria feito este correr e implorar? Não tinha condições de saber. Mas sabia que precisava de fazer algo para a mãe, provavelmente, prostrada na cama por doença. Quem sabe, muito doente. Ao menos fazê-la sorrir com os sapatos que muito amara. Talvez fosse isso a razão da sua consternação, o seu abandono de tudo para acorrer ao pedido do miúdo. E ao lembrar-se da filha, sentiu a mesma impotência para contrariar a violência da tuberculose. Se ao menos pudesse tê-la feito sorrir no momento do seu suspiro terminal. Isto dava corpo a uma comunhão de sentimentos, uma razão de ser, um desígnio. Tudo o empurrava para que completasse a obra e essa noite fora feita para isso.

A telefonia do vizinho calara-se havia muito. O relógio estava prestes a tocar as quatro horas, os grilos ainda cantavam e já na rua os madrugadores saíam das suas casas para o san van, o exercício da alvorada. Estava tudo quase pronto, faltando-lhes a pintura final e rezara a todos os deuses que as latas de tinta do velho Kuan funcionassem como o mesmo prometera. Depois de as ter experimentado com os seus próprios, aplicou aos sapatos na derradeira etapa do seu trabalho. Secou-os com o pesado e barulhento secador de cabelo, e finalmente colara as rosas pintadas de cor de prata em ambos os sapatos e esperou uma hora. Foi manuseando a parte mais mole para verificar se a tinta seca estalaria. A tinta do Kuan surtiu o efeito desejado. Como se ainda não bastasse, achou que devia levar ainda mais uma camada de envernizado.

Batiam as seis e a passarada matinal chegara, com o galo do vizinho, qual cabo de exército, a soltar as goelas. Lam Kong tinha os olhos fixos nos belos saltos, enquanto uma ventoinha afugentava o cheiro a verniz. Vieram lágrimas aos olhos de quem chegou ao fim de um grande feito. Estavam longe de serem perfeitos. O que utilizara não era para sapatos, mas outro remédio não tinha senão o que o seu instinto ditava ser o melhor. E assim imaginou o semblante orgulhoso da esbelta e leve dona sobre o belo par de calçados reconstruídos com emoção e razão de causa.

Mas o menino não chegava. Várias vezes estendia o seu pescoço, ora para um, ora para outro lado, mas a travessa mantinha-se numa calma pouco vulgar, sem movimento algum, nem de carros, nem de bicicletas. Já passava da hora que ele provavelmente viria, a julgar pelo dia anterior. A neblina subsistia como se o céu lançasse um véu sobre o bairro, até o sol irradiava uma luz difusa, sem causar sombras carregadas. Pelo menos não havia sombra do menino, nem de ninguém. 

A impaciência aumentava, Lam Kong parecia um menino à espera de uma prenda que nunca mais vinha. Fumou um, dois e uma série de cigarros, matando o tempo que nunca mais andava. Começou até rogar pragas a si mesmo, a sentir-se estúpido. Cansado, muito cansado, com olhos a pesar toneladas. E a culpa era do menino. E era por causa dele que não levaria dinheiro para casa. E…

5. 

E o garoto descera do alto da Travessa do Paiva na sua direcção. Renovou-se em espírito e sentiu-se embaraçado com os pensamentos mais idiotas que passaram pela cabeça, nessa interminável espera pelo pequeno. Não aceitaria que a aventura da noite anterior pudesse resultar num logro de tão mau gosto. Apesar da tenra idade, o menino iria honrar o compromisso, caso contrário não teria vindo, pois não? Mas o que teria ele prometido, se nem acordaram no valor? E o que um garoto de oito anos poderia valer? Já nem quis tentar responder a estas questões.

Estão prontos, menino. Fiz o melhor que pude, mas eles estavam em muito mau estado. 

Quando tirou o par do saco de algodão, os olhos do menino brilharam de comoção. Os sapatos de salto recuperaram a alvura carcomida pelo tempo, estavam agora luzidios. Não havia buraco algum, os tacões recompuseram-se e todos os contornos aí se encontravam, os sapatos eram dignos dos pés pequenos e frágeis da sua mãe. Ainda cheiravam a químico, mas o aspecto renovado superava esse tipo de defeito. Dos olhos grandes do menino lia-se a satisfação por que muito dinheiro não pagaria. E aí chegou a hesitação.

Sei que não acertámos no preço, mas disse-te que isso iria … custar dinheiro. Passei a noite toda a trabalhar… e não foi fácil. A tua avó vai ter de compreender. Ela … sabe disso, não?

Os olhos luzidios do petiz tornaram-se opacos e sem vida. Em seu lugar, sobrevieram olhos de súplica e de tristeza.

Menti… Peço desculpa, senhor.

Lam Kong ficou mudo, antevendo o que teria de encarar, já vulnerável a todo o tipo de surpresa.

Não tenho nenhuma avó. Apenas a minha mãe.

– Mas como vais pagar isso?!

O menino tirou das suas calças uma nota esfarrapada de cinco patacas e entregou-a a Lam Kong.

É tudo que consegui arranjar. 

Mas … mas o trabalho merece muito mais que

Já não tenho mais nada, senhor. Por favor aceite-os.

– Mas…mas…assim não te posso dar os sapatos por este valor…

– Não vim buscá-los – hesitou – Vim antes pagar-lhe com o pouco que consegui arranjar, porque você trabalhou a noite inteira, não está certo ficar com mãos vazias.

Lam Kong sentiu o aperto nas entranhas que a frustração lhe causava, um misto de revolta contra a sorte que lhe era assim patenteada.

– Menino, não estou a entender nada. Não quero, nem posso ficar com eles. São da tua mãe.

O menino fez nova pausa e ficou sério quando se concentrou no rosto seco de Lam Kong.

– Senhor… ela morreu hoje, já não vai precisar deles. Mas, você pode vendê-los para não ficar a perder. Estão tão lindos.

O menino olhou Lam Kong, ficando à mercê de tudo quanto pudesse vir do sapateiro, mas este apenas olhou para o vazio, numa inelutável apatia. No fundo, apetecia-lhe gritar, bater, queria ser violento. Sentiu-se asno e irresponsável por ter aceitado aquela maluqueira, ao arrepio da real necessidade de fazer mais uns trocos, como tinha sido o seu desígnio nesses últimos tempos. A sua consciência não tardaria a vergastá-lo por essa infantilidade. Todavia, a imagem que lhe surgiu no íntimo, não foi de castigo, mas antes da profunda serenidade com que a menina dormia na noite passada, como havia muito que não fazia. E num instante pareceu-lhe ver a sua filha a sorrir-lhe. Suspirou fundo e resignou-se.

Sinto muito, menino. Sei o que é perder uma pessoa querida, sem podermos fazer nada. E tentaste, rapaz. Foste bravo.

Embrulhou então os saltos renovados no saco de algodão e voltou-se para o menino indefeso.

Ela vai precisar deles quando atravessar a ponte para o outro lado, entendes? Leve-os e … não me pagues nada.

Só se lembrou dos olhos do menino a recuperarem o tom luzidio, do seu sorriso de felicidade e gratidão, no momento em que o leve cacimbo outonal lhe fez esfregar os olhos de cansaço e de sono perdido. Quando recompôs a sua visão, viu a nota de cinco patacas e meteu-a no bolso, mas o pequeno tinha já desaparecido com os sapatos. Iniciou-se, então, o cantar dos grilos e dos gafanhotos e ouviram-se as primeiras batidas das asas dos morcegos do Palácio, os inquilinos que revezariam os pardais e os canários na calada da noite.

Era altura de voltar ao poiso.

6.

A pinga desta vez pesou menos e num ápice estava já à entrada da Rua da Praia do Manduco e não tardaria a chegar a casa. Estava calmo, sem embargo o cansaço da noite passada. Sentia-se bem e inexplicavelmente reconciliado consigo mesmo. Tinha a sensação de ter emigrado e agora retornava a casa para retomar a vida que interrompera. Iria jantar com a sua mulher, respirar fundo, dormir e reiniciar um novo dia seguinte. 

Ao abrir a porta da sua casa, viu o rosto trémulo da mulher. Esta não falava, mas acusava algo que ultrapassava uma mera preocupação. De olhos confusos e avolumados de lágrima, apenas apontara em direcção ao quarto da netinha. O seu semblante não deixara dúvidas, acontecera algo com a pequena. Lam Kong largou tudo e correu para o aposento, abrindo a porta com violência e viu a cama vazia.

Por um lapso de segundo experimentou um pânico de morte e gritou em silêncio, transe que só cessou quando uma sombra atravessara o lusco-fusco que vinha da janela. Era Mei-Mei que olhava para as luzes que cintilavam da rua, sobre a ponta dos minúsculos pés. Lam Kong admirava estupefacto como se desenvolveram os músculos das panturrilhas, contra tudo com que vinha lidando a respeito da enfermidade da menina. E teve medo do milagre diante de si.

– Vovô… porque me olhas assim? Estás zangado?

– Oh não meu amor… Nunca! Vovô está tão feliz por te ver a olhar para as  luzinhas lá de fora – Abraçou a petiz com toda a força e não conteve as suas convulsões quando chorou.

Porque choras vovô?

– Choro de muita alegria, minha linda. Foi como se tivesses estado muito tempo fora e agora voltaste. É tão bom ver-te a brincar, a rir, a correr, a dormir na tua cama e a ter lindos sonhos.

– E eu tive um lindo sonho.

– Oh? Contas-me como foi? – sentou-a na sua coxa.

– Sonhei que estava à janela e dei com uma senhora vestida de branco a sorrir para mim. Tinha um ramo de flores numa mão e segurava um menino de olhos grandes com a outra. Não eram da nossa gente e ela estava bela como se fosse para o seu casamento. O rapazinho estava feliz com a sua mãe e tão bonito era o seu sorriso. Ele acenava-me um adeus e a mãe sorria também. Tinha os mais belos sapatos que já vi, vovô. Brancos com uma flor prateada nas pontas. Tinham acabado de atravessar uma ponte. Acordei e fui a correr para a janela, mas já não os vi mais.

Manteve-se calmo e encostou a cabeça da netinha ao seu peito, enquanto a sua mente devaneava à procura de respostas, pelo menos da certeza de que não sonhava e que tinha ao seu colo a jóia mais preciosa da sua vida, incólume a todos os males. Acto contínuo foi ao seu bolso à procura da esfarrapada nota, e sentiu o calafrio atravessar-lhe a espinha, quando de lá saiu apenas um pedaço de papel sem valor. 

Nesse momento a mulher entrou e abeirou-se dos dois e afagou as costas da menina.

– Kun Yam Pou Sat! Escutaram-se as nossas preces, finalmente. Foi um milagre para a nossa Mei-Mei, até sinto a casa mais leve. A sina foi-se embora – limpava as lágrimas – Vou comprar boa comida e hoje é uma noite em que temos de celebrar, com o dinheiro que fizeste.

Apeteceu-lhe gritar de desespero, pois tudo teria de ter uma razão de existir. Como explicar o dinheiro que a mulher refere, se não teve cliente nenhum? Como explicar a força anímica da noite anterior e a resolução em terminar a sua obra. Olhou de novo para a Mei-Mei ao seu colo e lembrou-se então do menino, do seu olhar solícito e de quão cristalina foi a conversa com o mesmo. Teria ele a ver com isso tudo? Não podia ser… Não teria tudo sido um sonho vivo ou então uma partida de péssimo gosto? Perdeu-se na incredulidade da sua existência, resolveu que tudo não passava de uma charada, que nada de extraordinário se passara, não tinha havido saltos femininos alguns, o menino não existira, e quem sabe se não eram sequelas do sám cheng da lojeca do velho Kuan, até quando a mulher vociferou, interrompendo-o nas incursões pelas suas dúvidas existenciais.

Andas agora a fazer flores? Que vais fazer com as latas de tinta, o couro sintético e as colas espalhadas na cozinha? Preciso de espaço, homem! Está cá um cheiro…!

7.

Passaram-se sete anos e a brisa de Outono soprava suavemente esse dia de 1970. A aragem mais seca do quadrante nordeste não estorvava a neblina leve que se espalhava por toda a cidade, dando ao dia uma luminosidade ténue. As libelinhas enxameavam o céu e, acima delas, aves arribavam em bando para outras terras, fechando-se assim um ciclo, para anunciar um outro.

Lam Kong já não operava junto ao Palácio. O velho Kuan falecera e deixara-lhe a lojeca que se converteu na sapataria “Lam Kong Kei”. Mais propriamente para conserto de calçado, o qual passou a ser a sua actividade exclusiva. Apetrechara a loja de todos os utensílios do ofício, encomendara tintas próprias, couro e cabedal de boa qualidade, formas, cremes e graxas, para manter o nome do melhor sapateiro do Bairro de São Lourenço. Vinha clientela de todos os lados, da gente fina do Palácio à dos lupanários da zona velha. Encheu as paredes de figuras de divindades taoistas e budistas, como os “Oito Imortais” e Kun Iam, assim como Tong Sam Chong, o mítico monge da obra literária “Odisseia para o Oeste”, com os seus três discípulos, mas todos sob o jugo do temível olhar de Kuan Tai, o deus justiceiro protector contra todos os espíritos maléficos. Num canto oposto encontravam-se os botins do velho, contra a vontade da mulher que só via mau agoiro nisso. Argumentava que sapatos sem dono não deviam estar em parte alguma e muito menos nas paredes, pois atrairiam quem pudesse andar nelas. Se calhar tinha razão, porém, Lam Kong possuía argumentos suficientes para fazer moucos os seus ouvidos. De cabelos mais grisalhos, de espinha mais arqueada, continuava magro, mas atarefado, cheio de saúde para consertar todo o sapato que lhe viesse parar às mãos. Estava feliz, pois começava o ano lectivo e a sua Mei-Mei fora admitida no Colégio Canossiano do Sagrado Coração de Jesus, onde aprenderia a falar e escrever inglês.

Olhou para o dia e sentiu o fresco de prenúncio invernal. A neblina adensava-se, o que o deixou nostálgico. Mas, não teve tempo para cismar. Cinco pares de sapatos militares e de festa esperavam os seus cuidados, e ele manteria o seu estaminé aberto até completar essa missão do dia. 

Nisso, enquanto curava o mal de uma das solas, escutou uma voz murmurada e delgada de menina.

O senhor conserta isto? Ela precisa de andar.

Lam Kong saiu da sua loja e agachou-se olhando para uma boneca velha, enodoada, descosida e sem uma perna, numas mãos frágeis e minúsculas. Levantou os olhos para a menina franzina, que não teria mais de sete anos, de olhos grandes, pele muito alva, linda como uma boneca de porcelana.

Sorriu.

Claro menina, ela vai ficar bonita como tu. E andará.

Largou a sola e deixou o resto dos sapatos em paz.

Fechou a loja. 

A neblina também se foi.

Travessa do Paiva, Macau.
O mural do Palácio da Praia Grande à esquerda.
Foto tirada em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60 do século passado.

F  I  M


Notas:

Pinga – Vara de madeira, de bambú ou de cana, utilizado pelos chineses para transportar toda a espécie de mercadoria, pendurando-a em cada extremidade da mesma vara.

Saltos – Forma abreviada de “saltos altos”, “saltos de senhora”ou “sapatos de salto”, muito usada entre os Macaenses, correspondente a “high heels”, por referência a “high-heeled shoes” na língua inglesa.

Tai Nui Fa (帝女花) – Clássico da ópera de Cantão, das mais famosas óperas de todos os tempos, sobre a tragédia da Princesa Cheong Peng (長平公主) e o seu noivo Chao Sai Hin (周世顯), no fim da Dinastia Ming, no século XVII.

Ma Si Chang (⾺師曾) e Pak Sut Sin (白雪仙) Famosos intérpretes da ópera chinesa, tanto em palco como, como no cinema, esta última celebrizada no seu papel da princesa Cheong Peng, na ópera Tai Nui Fa.

Lo Pak Tau (蘿蔔頭) – Literalmente “cabeça de nabo”. Expressão pejorativa, provavelmente já caída em desuso, atribuída a japoneses, os quais tradicionalmente ostentavam um peculiar corte de cabelo, caracterizado por um rabicho fino, o qual por sua vez seria dobrado para cima sobre a parte calva da cabeça, à semelhança do prolongamento alongado do tubérculo em causa.

Sam Cheng (三蒸酒) – Também conhecido fora da China pelo nome de Samshu ou mais propriamente por Sam Siu (三燒) é um tipo de vinho chinês a partir do fermento do arroz, com teor alcoólico variado, muito popular entre consumidores da camada social mais humilde, caracterizado pela sua capacidade rápida de embebedar o seu consumidor.

Ponte – Segundo a crença popular chinesa, de origem budista, a alma do defunto teria que atravessar a ponte para a eternidade. Corresponde à “luz branca” que se crê divisar-se logo após a morte.

Er-Hu (二胡) Literal mente “Alaúde de duas (cordas)”, também conhecido por violino chinês, instrumento acústico de duas cordas, muito tradicional na música clássica chinesa.

Kun Iam Pou Sat (觀音菩薩) – A prece, ou mantra invocativa a Kun Iam (Guan Yin), a deusa da Misericórdia, profundamente arreigada na cultura religiosa chinesa.

Macau, 29 de Outubro de 2021, Sexta-Feira

© Miguel de Senna Fernandes

6 thoughts on “O SAPATEIRO DA TRAVESSA

  1. O conto me levou a uma viagem no tempo do nosso bairro, num cenário com ricos detalhes que provocam nostalgia!
    E a compaixão e o altruísmo do personagem comovem! Parabéns, Miguel. O filho do peixe sabe nadar!!!

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