CHI-CA-POM, O BOLERO IMPROVÁVEL

 

I

“Yo para querer…No necesito una razón…Me sobra mucho…Pero mucho… corazón” (1)

A voz de veludo de Omara Portuondo rasgava a calmia desse serão no Beco do Musgo, ao som do bolero da charanga cubana. Por mais que quisesse, Nico não atingiria aquelas notas como conseguia muitos anos atrás. A idade cobra juros e o rum não ajudava nada.

O ar estava quente e húmido em casa. Nessa noite do fim de verão, Nico suspirava nostálgico, expelia da sua boca o fumo da sua cigarrilha, enquanto sorvia um Santiago de Cuba e se retorcia com o ritmo alternado dos bongos, congas, guiros e maracas. Não estava com vestimenta de casa. Ao invés, usava camisa com padrões floreados, calças de cor beige, suspensórios. Os seus sapatos de tons preto e branco, impecavelmente engraxados, como se preparados para uma festa.

Era efectivamente um momento festivo, pelo menos para ele.

“Muñequita linda… de cabellos d’oro… de dientes de perla… lábios de rubi…”(2), badalava agora a orquestra de Edmundo Ros e ele cismava. Ela devia ter feito trinta e cinco, hoje, murmurava para si. Mãe de filhos? Quantos seriam? Encolhia os ombros, enquanto vertia o rum pela garganta abaixo. Tantos anos se passaram, e ainda se lembrava do dia em que lhe comprara a boneca de olhos de vidro, branquinha com um rosado nas bochechas, com vestido cor-de-rosa, alças sobre camisinha branca, meias rendilhadas do mesmo tom, calçando sapatinhos pretos luzidios. Um pequeno malmequer enfiado nos seus cabelos de oiro. Benita bonita, com as covinhas bem salientes, fazia três anos e olhava para a sua boneca com admiração e ternura. Não a tirara da caixa só para não amachucar os seus cabelos doirados. Mas depois de dias a contemplá-la retirou-a do pacote e nunca mais a deixou. Até o dia em que  a sua mulher Pilar o deixou levando Benita para longe. Nunca mais voltou a vê-las.

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Da mesma Consuelo, que foi pai e mãe a educar e avó para mimar, aprendeu uma lição de ouro, num dia em que voltou a casa choramingando de uma sova que levara na vizinhança.

“Ri sempre, mesmo que estejas triste. Nunca ninguém ganhou a vida a chorar. Os pobres que choram ficam ainda mais pobres, porque nem lágrimas sabem poupar!”

Quando se dera o alarme no natal de 1958 de que Fulgêncio Batista(3) não era tão poderoso como fazia crer, a avó Consuelo não hesitou em corresponder ao que o seu instinto lhe obrigava, agachou-se e pela primeira vez falou a Niquito num tom muito sério, muito mais sério do que nas vezes em que ele fazia asneira e esperava a surra.

“Niquito… Vais ser homem e ser homem é ter coragem e não chorar. O teu tio Alonzo está na América e muito te espera. Quero que tu fiques com ele, por uns tempos.”

“Vovó…eu vou sózinho? Não vais?”

“Não meu amor. Vovó tem que ficar, porque a música aqui não pode parar.”

“Mas eu posso ajudar, o Tio Manito ensinou-me a clave da rumba….eu mostro… é um pouco diferente da do son…”

“Niquito, ouve bem a vovó! É importante que te vás, aqui não está muito bom para meninos da tua idade. O Tio Alonzo tem um quarto para ti, aí estarás seguro.”

“Não quero ir sem ti, vovó. Quem vai cantar e dançar comigo?”, choramingou.

“Na América vais dançar e conhecer muita gente. Vais conhecer o mundo. Vovó não pode ir agora. Mas um dia quando tiveres dinheiro vais comprar o meu bilhete. E eu estarei contigo, como sempre.”

Abraçou o netinho com toda a força. Nesse dia, passou muito tempo com ele aos seus braços. Se calhar sabia que nunca mais voltaria a vê-lo, entregue à sorte que Deus lhe reservara.

No dia 8 de Janeiro de 1959, enquanto os heróis da revolução davam a sua entrada triunfal na capital, Niquito d’Aragón embarcava para Miami, um mundo novo que não escolheu, para o qual o atirou a sua sina de eterno exilado. E aí continuou o seu crescimento, tal como tantos cubanos, em terra e cidadania alheias. Sem saber que a vovó fora posteriormente presa por causa do filho e suas ligações com o regime batistano.

Não obstante as dificuldades de adaptação nessa nova terra que foi forçado a aceitar, Niquito não deixou de ser alegre. Estava no seu sangue rir quando a vida só lhe dava razões para pranto. Dava mão ao seu tio Alonzo, na pequena frutaria que possuía na populosa “Pequeña Habana”, a Meca para todos os exilados, sem no entanto se esquecer das palavras da vovó.  E foi a rir e dançar que conquistou todos.

 Na América, a vida de imigrante tinha mais baixos que altos. Apesar da aparente solidariedade entre os hermanos em terra de gringo, sobreviver era a palavra de ordem. Estava fora de Cuba e havia toda uma série de primos porto-riquenhos, colombianos, mexicanos, peruanos, bolivianos, enfim toda a América-Latina tinha poiso na Little Havana. As rivalidades entre eles eram uma constante, e não poucas vezes, sangue jorrava pelas ruas de Miami.

Estava-se no intervalo e o saxofonista entoava uma canção mexicana acompanhada de um bongo. “Noche no te vayas … quédate con nosostros… para siempre…” (4), ouviu a sua própria voz a cantarolar maquinalmente essa melodia de Roberto Cantoral, que o Tio Alonzo tocava sempre em casa. Um som diferente da charanga da avó, mais suave, harmónico principalmente nas vozes, acompanhado de três violas.  Os trios mexicanos faziam um grande furor nos Estados Unidos, acasalando o mariachi com os ritmos caribenhos. Fechou os olhos e meneou as ancas ao sabor do bolero que o bongo impunha. O seu ritmo lento e indolente evocava uma sensualidade natural que subia à cabeça desde a ponta dos seus pés, acompanhado dum calafrio na sua espinha.

Sentiu a mira de alguém quando o saxofone parou. Era Johnny Arroyo que naquele momento se inspirou. E se a orquestra incluísse uma trupe de dança nos seus espectáculos?

A partir daquela tarde até a formação dos “Rumbéros de La Esperanza”, dois meses depois, todos os dias à mesma hora, Niquito iria ao clube para os ensaios de aperfeiçoamento da sua dança. Era esquio, de altura mediana, moreno, cabelos bem escuros e luzidios, usava roupa muito justa que denunciava a musculatura de um macho ágil e robusto. Caíu nas atenções de Pilar, a filha predilecta de Johnny, com ela dançou e muito. Teria sido uma ligação fugaz, não tivesse ele engravidado a princesa, praticamente à primeira. Niquito passou a frequentar a casa dos Arroyos e mesmo antes da estreia dos Rumbéros já ganhava uns dólares. Não tinha muita liberdade, sobretudo depois do seu casamento que se daria logo a seguir. Johnny, que se tornara viúvo muito cedo, exigia muito que sua filha fosse sempre muito feliz. Para Niquito, o sucesso em vista justificaria sempre qualquer sacrifício, não obstante suspirasse por um mundo onde pudesse respirar o seu próprio ar.

Aos vinte e quatro anos, como rumbeiro da trupe de Johnny Arroyo, saía dos Estados Unidos, com a sua mulher e filha de dois anos, rumo a outros países, onde os ritmos da clave, maracas e bongos animavam os salões de dança, apesar da vaga crescente do rock. Bangkok, Saigão, Singapura, Taipé foram algumas paragens por onde o seu ritmo deixou marcas.

Um dia parou em Wanchai, Hong Kong.

Mais um trago de rum pela garganta abaixo, quando cantava Beny Moré “Como fué….no sé decirte, como fué…  no sé explicarme qué pasó…pero de ti me enamoré…” (5) que o amarrava para o fundo da sua melancolia.

E pôs-se a cismar como muitas vezes lhe ocorria fazer. O que se teria passado, como foi tudo para agora acabar os seus dias só, na companhia das suas memórias, mantinha-o vivo na sua memória.

Nico tragou um bom bocado do seu fumo, aguentou para o exalar no momento decisivo em que Beny Moré entraria na frase apoteótica. Semicerrou os olhos antecipando-se à catarse. A congada decisiva estava mesmo à esquina, Nico até preparou o seu corpo. É agora.

Um estrondo de latas no caixote de lixo vinham da vizinhança.

Nico tossiu como que tivesse entrado numa câmara de fumo. O susto fê-lo virar a mesinha onde tinha a sua bebida. Tudo estilhaçado no chão, copo, Santiago, e ele de pernas para o ar.

    Tal qual como na última vez, pegou no pau e saiu da sua casa para afugentar os gatos da vizinhança que apareciam à vasculha do jantar. Ou então seria a rapaziada que lá paravam para fazer disparates da meia-noite, mormente largar partidas ao “Tao ngao lou” (6)

Ai Carrico! Venga, venga! Donde estás tù, cabrón?!”

Ia de peito feito para desancar, para mostrar que aos cinquenta e três anos continuava hombre. Porém não era o que estava à espera.

Diante de si estava uma  moça franzina, imóvel, prostrada sobre um canteiro abandonado.

Toda a aparência de touro enraivecido dissipou. Nunca lhe acontecera coisa semelhante. Queria ver se passava alguém aí, mas o Beco era calmo demais para interessar fosse a quem fosse. Queria chamar a polícia, mas o que eles iriam pensar? Queria pura e simplesmente voltar para casa, ignorar o sucedido e limpar o estilhaço da noite, e assim fez. Mas malvada consciência que não lhe deixa escapar um percalço, ribombou em protesto. Ademais, começou a chover e cada vez mais.

“Carajo!”

Voltou ao mesmo local e a chuva castigava. Olhou para a moça imóvel no chão da rua e decidiu que ela não podia ficar aí. Pegou no seu braço, colocou-o sobre o seu ombro que por sua vez pressionou o seu axilar, segurou-a na parte lateral do seu indolente corpo e arrastou-a para dentro da sua casa.

Sentou-a no seu sofá. Encharcada, aí estava em sua casa, ante o pasmo de um homem que subitamente perdeu a fala.

Isto … não está a acontecer!” Dizia ele para si, observando a moça inanimada.

O que iria fazer era coisa que não passava pela cabeça, já em si pesada com o efeito do rum. Ela está molhada de cabeça aos pés, quanto tempo levará para secar toda a roupa? E… ñooo! … tresandava a vómito.

II

Maria Lúcia Pena Guterres, faria vinte e quatro anos nesse dia.

Passou a sua vida despercebida do público. Ela sabia disso e tinha as suas razões para se afastar das pessoas. Para além da dentuça presa por uma armação metálica que os seus lábios se viam impotentes para disfarçar, não tinha nada que o comum padrão de beleza feminina abonasse a seu favor. Pálida de pele, era esquelética que nem uma “Olívia-Palito”, sem relevo algum quando apreciada de lado. Enfim,  “aeroporto”, como cruelmente chamavam as bocas maldosas em Macau às raparigas que tivessem esse infeliz atributo. E para acentuar a sua distância à formosura estereotipada, a sua postura fazia lembrar um ponto de interrogação, porém, mais mais alongado nas curvaturas. Tudo isso a rematar com rabicho no penteado e óculos de aros largos e escuros.

Sem surpresa, não era popular. Ou então a sua popularidade advinha do escárnio da rapaziada desbocada, pelo qual  ninguém a venceria numa corrida de atletismo, pois a sua dentuça e o seu pescoço longo e descaído dar-lhe-iam sempre uma invejosa vantagem.

O pai, oriundo da Marinha Grande, em Portugal, nunca se convencera de que ela era sua filha. A fealdade da menina não se coadunava muito com a sua fama de moço bem parecido e atraente. Separou-se da mãe, logo após o fim da comissão de serviço na polícia, no início dos anos noventa do século passado. Quando finalmente Marilu foi a Portugal visitá-lo, vinte anos depois, anunciaram à porta da casa “Pai, está aí uma mascarada de múmia, à tua procura”. Lá dentro ouviram-se gargalhadas. Foi em finais de Outubro e a tradição do Halloween tinha já chegado com força em Portugal.

A mãe, macaense(7), casou com um indivíduo de nacionalidade filipina de quem teve vários filhos. Marilu, sentia-se estranha na sua própria casa, onde, tal como em público, era ignorada. Contudo, teve garra suficiente para se esmerar nos estudos. Embora não tenha sido aluna de notas sonantes, nunca fizera a mãe ou o seu padrasto gastar mais do que deviam para assegurar a sua educação. Enquanto os seus irmãos foram todos para as escolas chinesas, ela achou que devia aprender português e depois inglês. E depois chinês e depois outras coisas que eram pura e simplesmente menosprezadas por gente da sua geração. Aprendeu fotografia e até armar tenda para campismo. Tinha tempo de sobra e até se inscrevera num curso de dança de salão.

Ingressou na função pública, juntou o seu dinheiro e pôde pagar uma caução por um arrendamento, quando decidiu sair de casa e levar uma vida só dela. A mãe e a sua prole nem reagiram.

Nunca namorou, também não surpreendia. Era invisível aos rapazes, aliás um mero espírito errático para toda a gente que conhecia. Habituara-se a isso desde pequena. Assim, aquelas festas de escola, onde toda a gente se abraçava, se beijava, se alimentava de dramas de paixão, não eram com ela. Solidão, ela sim, era a sua melhor amiga.

No entanto, gostaria que Deus um dia lhe abrisse uma excepção. Não lhe exigia, nem o implorava que fizesse. Apenas desejava que condescendesse. Um dia bastaria.

Imaginava que nesse dia, alguém  desse pela sua existência, não como uma alma danada, mas como pessoa viva a fazer coisas que faria gente normal. Não era um queixume. Quem nasceu assim, pensava, seria assim vida toda, sem razão alguma para qualquer lamento, tal como um cego de nascença não choraria por não conseguir ver. Ela queria apenas algo de novo, de invulgar, tal como o cego acharia interessante, por uma vez da sua vida, experimentar o que seja a luz.

Este dia apareceu. Um rapaz no curso de dança de salão ficou sem par e calhou à Marilu a situação de poder corresponder ao pedido do instrutor para que o rapaz não perdesse a aula. De facto não teria sido em vão, pois ela sabia todos os passos e compassos que aprendera de Mister Hung, funcionário aposentado que aproveitara o seu vigor para dar umas aulas de dança que aprendera de outros. Nada de grandes coreografias,  nem o seu instrutor tinha criatividade para tal, mas era cumpridora e executava todos os passos que ele identificaria de tango, cha-cha-cha ou paso-doble.

Rapidamente se desenvolveu uma relação de confiança entre ela e o rapaz, a ponto de se gerar uma cumplicidade, fundamental para que um par de dança funcionasse como tal. Não que dançasse bem, até porque sofria da síndrome do pé pesado, mas ela não falhava ante o escrutínio rígido do Mister Hung.

Três semanas de aulas foram o suficiente para que Marilu abrisse olhos para um sentimento nunca experimentado. Aliás, que nunca ousara tê-lo. Achava que as aulas lhe desbravavam caminhos nunca antes trilhados, vias para um excitante mundo desconhecido. Criara-lhe expectativas. E o rapaz correspondia-lhes.

Os sonhos passaram a ser outros, tal como aquele que teria o cego depois de se despertar para uma imagem idílica. Encheu-se de coragem e de resolução para se declarar e escolhera para o efeito o dia dos seus anos.

Tinha escolhido o melhor vestido que achou apropriado para si, depois de vasculhar muita revista de moda informal. Marcara uma mesa num restaurante, conforme tinha combinado com ele na aula da noite anterior. Ficou nervosa e ao mesmo tempo indecisa se devia pedir vinho, aquela “coisa amarga” com que nunca se dera bem. Não obstante, achou que a ocasião merecia tudo e assim veio à mesa um Grão Vasco, o único tinto português que se vendia em muitos restaurantes de Macau.

Mas ele não apareceu. Eram já dez horas e meia quando ela saiu do restaurante. Suspirou fundo, não se enraiveceu. Apenas engoliu seco o que naquele momento era de todo intragável. E disse para si, que amanhã seria outro dia, como foram todos os outros. Procurou pensar em coisas boas, concentrou-se e à força convenceu-se de que o caldo verde estava delicioso, assim como o nairo grelhado e o bolo de aniversário. Não faz mal, dizia, alguma vez os seus anos foram diferentes? E sózinha acabou com o tinto.

Sentia calor, sabia que estava corada de vinho, o coração acelerava e a pulsação sentia-a na cabeça. Estava tudo bem, não fora ter apanhado um grupo de rapazes e raparigas a conversar logo à esquina do bairro por onde seguia para casa. Eram da sua gente e de gente conhecida.

Ainda bem que te salvámos deste ridículo” – ouvia-se de uma voz feminina.

“Já imaginaste como a malta falaria de ti, se te apanhasse a jantar com a “Avestruz”? – perguntava um.

Chupâ-ovo de avestruz (8) – respondeu outra voz. Risada forte.

Oh pá! Ela é uma gaja porreira…”

Reconheceu a voz. Agora agachou-se para ouvir o resto da conversa, embora a sua habitual prudência aconselhasse uma outra coisa a fazer.

“Gaja porreira para levares pra cama, seu porco de merda! É pa… ainda dás cabo daquela caixa de ossos!” – Gargalhada estrondosa, que até motivou protesto da vizinhança.

Caramba mé! Só quis aprender a dançar, mas a Rosa adoeceu e não tinha par”. – prosseguia ele em tom jocoso.

Podias dançar com uma vassoura, po!” – outra risada. ”Deixa-te dessa merda, ainda acabas por vê-la prenha! Ainda bem que estás salvo!”

“Homostruz! Filho de avestruz e homem!  – outra gargalhada.

“Dou-te mas é uma omelete no cú, seu boca-fêde! (9)” –  retorquia ele.

A festa da rua continuou. À custa dela.

Cada palavra era um alfinete que perfurava a sua pele. Cada vulgaridade, um facho em brasa na sua alma. Não estava à espera disso, não tinha como se defender, sobretudo quando já saíra amachucada do restaurante. Sentiu-se enlameada, entorpecida pelo vil insulto da boca de quem lhe dera toda a imagem de homem são e leal. Fitou o céu e bradou em silêncio.

É isso queres para mim!?”

Não foi para casa, antes cambaleou por uma mercearia e comprou gin. Bebeu-o toda e nele se afogou. Deu-se por vaguear pelas ruas estreitas do bairro. Não sabia ao certo onde se encontrava. Mas pouco importava, não queria era parar, precisava de andar, contrariando o que de costume fazia. Tinha já parado demais na sua vida. E agora que o destino se foda!

A cabeça dava-lhe a sensação de transportar um panelão de água quente, com sérias dificuldades de equilíbrio. E ao errar pelo Beco do Musgo foi de encontro ao contentor a transbordar de lixo, escorregou e caiu. Se alguma dignidade lhe restava nessa noite, o saco de dejectos que sobre si caíra, desfê-la por completo.

Não sentiu a chuva que, a rematar,  regou sobre ela. E mesmo que tivesse dado por ela, iria alterar coisa alguma?

O sol inaugurou com fulgor ao segundo dia dos acontecimentos, com uma clareza invulgar, como se a chuva das noites anteriores tivessem limpo o ar de todas as impurezas. Nico saiu para fazer compras e o relógio batia o meio-dia quando regressou a casa. Preparara uma canja de galinha à moda chinesa, que sabia ser boa para quem convalescia de uma noite agitada de álcool e vómito.

Queria primeiro ter a certeza de que ela estava bem, para depois tomar outras medidas. Algo lhe dizia que agia correctamente, apesar da situação sem precedentes em que se encontrava. Só sabia que cuidar dela era a única coisa que no momento fazia sentido.

Ouviu-a tossir. Aproximou-se e colocou a palma sobre a sua testa. Já não tinha febre e o corpo indiciava transpiração. Retornou à cozinha quando ela acordou.

A cabeça desta girava ainda quando tentou olhar para os objectos ao alcance da sua visão. Estava deitada em cama alheia, envergando roupa alheia. Sentia-se confortável, o seu corpo exalava odor a pó talco. Entrou em súbito pânico, ao procurar saber da sua própria roupa. É quando Nico volta com um copo de água.

Acenou a cabeça quando colocou o copo na cabeceira.

“Oyé…?” – Marilu não respondeu.

“Bebe este água que te faz bien. Estoy a preparar una canja que está cási pronta” – esforçou-se a falar português, como que adivinhasse que essa fosse também a língua dela.

“Onde …estou?”

“En mi casa” –  Marilu olhou-o atónita, indagando como isso teria sido possível. Nico sentiu desconforto, desviou o seu olhar  e encolheu os ombros.

“Estavas tán bêbada. Como vieste parar aqui? Conoces alguém?” – Marilu não respondeu, apenas olhou para o velho pijama no seu corpo. Nico suspirou e explicou-se.

“Perdoname, não tinha outra coisa para te vestir.” – Os olhos da Marilu aumentaram sobremaneira.

“Chica! Llovia por ahí, estabas empapada! – Marilu incrédula.

“Carrico! Sí … io tuve que… que… bañarte!” – Marilu em pânico.  

“Eras uno…uno excremento de vómito, qué esperabas?!” – Marilu soluçava com as mãos no rosto, enquanto Nico aumentava o tom de voz.

“Ahhhh, no….no…quería … Mira, chica …” voltou a falar o pouco de português que aprendera. “Preparé …una canja de pollo….de galinha”. Marilu desfaleceu.

 Perdeu a paciência de esconder o seu embaraço. Retornou à cozinha e desligou o fogão.

Carajo!” pegou no seu casaco e sumiu da casa.

Já fazia noite, quando ela voltou a acordar, encharcada de suor e faminta. Certificou-se de que não era sonho, que de facto despertara na cama de alguém, com vestimenta que não era dela. E teve uma conversa conturbada com um homem de meia idade. Olhou à sua volta, à procura dos seus haveres. Estavam sobre a cadeira perto de si, a sua mala intacta pendurada no encosto da cadeira e a roupa passada a ferro. Quis sair daí já, mas a fome berrou mais alto.

Não viu ninguém quando saiu do quarto e dirigiu-se à cozinha. Havia aí apenas uma tigela sobre um prato e uma colher junto de um panelão de canja, confeccionada para ela. Devorou-a num ápice, estava saborosa mesmo quando fria.

E na sua terceira tigela deu-se a apreciar o seu redor. Pé direito alto, numa casa que aparentava ter umas largas décadas. O tecto a acusar infiltração de água e cheiro a bafio. As paredes, para além da imagem da Imaculada Conceição, enchiam-se de fotografias de artistas. Reconheceu os grandes da música latino-americana, o Trio Los Panchos, Los Três Caballeros. Estava também Lucho Gatica, Omara, Tito, Celia, Compay Segundo. E dum canto, fitavam-na olhos sabedores, dum semblante escuro e ossudo, com fino bigode a traçar um sorriso sedutor, Beny Moré. O que estas figuras faziam num antro tão lúgubre como aquele sítio, não entendia. Se calhar nem era para entender, quando mal se convencia da razão de ser da sua própria situação, única em toda a sua vida.

Pousou a tigela na mesa e apressou-se a vestir. Mas, brigava com um sentimento de culpa. Quem podia ter sido aquele sujeito que a tirara da confusão da rua? Que fora decente com ela, o mesmo ininteligível sujeito que a poupara da pior degradação que lhe aconteceria?

Respirou fundo. Assomaram-se-lhe imagens nebulosas da tina de banho, a toalha e pó talco sobre o seu desnudado corpo, o pijama e alguém a carregá-la com ambos os braços para a cama. Como agradecer? O conflito estalara, mas a vergonha vencera. Não olhou mais para trás quando fechou a porta da casa, correu sumindo do Beco do Musgo como quem fugisse de algo ignominioso.

Chegou a casa, pousou os seus haveres e despiu-se. No chuveiro, rodou a torneira até o máximo para que o jacto de água a fustigasse com toda a violência, como que quisesse sacudir à força o que acabara de se entranhar na sua vida. E aí chorou copiosamente. De medo, de confusão, chorou.

III

No Kai Kei, a velha mercearia do bairro, Nico sorvia a sua quinta cerveja, ruminando o incómodo que a situação lhe causava. Já passara por muito, mas nunca na sua vida se pôs fora do seu próprio poiso por uma escanzelada moça que não conhecia e que a pusera na sua cama para se recuperar de uma ressaca violenta, seguida de uma gripe demolidora, a quem banhara e preparara uma canja! A boa vontade mal compreendida era algo difícil de digerir, mas algo lhe empurrara para essa maluqueira. O que teria acontecido a essa moça aparentemente normal para se apresentar naquele estado?

Sem querer, Benita atravessava o seu pensamento e aí estacionou. Extasiado, viu-se a zumbir, imitando o som dum avião ou duma mosca em vôo livre, enquanto sua mão rodopiava pelo ar,  com a colher levando a papa à boquinha, ante olhos castanhos claros que o fitavam felizes. Aí a menina rasgava-se em gargalhadas, com covinhas pronunciadas. Ela agitava-se, as palmas minúsculas batiam suavemente no tampo da mesa. Lia-se segurança naquelas gargalhadas, de quem tinha pai, casa estável e vida condigna. Era o seu tesouro, o escape no exercício das suas funções de bom pai de família.

Eram os bons tempos em que passaram em Hong Kong. Imagens de Wanchai sucediam-se na sua mente, revia o seu apartamento que não era grande, mas suficientemente arejada, com boa vizinhança e tudo estava ao alcance para que a vida fosse levada com paz e sossego. Pilar estava feliz e ele era um homem bem lançado. Mal grado, a noite possui a mística de transformar os mais puros, ou então revelar a sua verdadeira natureza.

 Os “Rumbéros”  acompanhando a banda caribenha de Johnny Arroyo, faziam furor, não só no Tropicana, como também noutros recintos de espectáculos, como o Lee Theatre em Causeway Bay.  Johnny  diversificava os contactos e conseguia mais contratos, para a sua orquestra  e a troupe de dança.

Todavia, com o tempo, Nico  passou a ser o espectáculo principal. O modo como o seu corpo viril se contorcia, como seus pés deslizavam suavemente sobre  a pista, como as suas ancas e sólidas nádegas marcavam infalivelmente o compasso sensual da rumba, alimentava fervor nas mentes libidinosas das suas fãs. Em terra de Dragão, ele movia-se sinuosa mas poderosamente como o mítico monstro. Não tardaram a apelidá-lo de Long Ngao (龍牛), o Dragão-Touro, o másculo ao qual se rendiam todas as menos resilientes. Vaidoso, fez gala disso. Deixou de ser Niquito, e o seu nome de família D’Aragón converteu-se no epíteto “El Dragon”.

Porém, a fama é daquelas facas de gumes diversos e um deles é particularmente mortífero, fazendo sangrar quando menos se espera. Se a receita dos espectáculos não cessava de entrar, o Dragão não parava de rumbar em camas alheias. Um homem requisitado no meio feminino, deleitava-se com a disputa entre as mulheres pela sua atenção. Não poucas vezes fazia visitas a uma, a seguir de outra num mesmo dia, antes de um espectáculo. Entre as suas admiradoras havia muita gente da alta sociedade, que lhe pagaria tudo para uma noite de volúpia. Dum momento para outro, passou a usar anéis, calçado luzidio, fatos de alfaiatarias caras. Se no início Johnny Arroyo aprovava esse “modo peculiar de atrair admiradores”, começou a sentir o incómodo que gradualmente crescia, à medida que diminuía a alegria da filha. Até que um dia não se conteve:

“Nico, a mulher do outro é como cocaína de que não nos livramos facilmente. Mas quando a nossa filha está casada com um drogado desses…”, o recado foi muito claro, havia limites para tudo. Porém, ouvidos moucos também, como tão bem os fazia, quando tal vício o enrigecia e tomava conta do seu tino.

Pese embora essa tendência femeeira que foi adquirindo, não lhe faltava devoção à pequena Benita. Acreditava que ela era fonte da sua permanente juventude, a encarnação daquela criança risonha e arrojada que sempre trouxe consigo, desde os tempos da avó Consuelo, e acarinhada pelo Tio Alonzo na Pequena Havana em Miami. Por nada deste mundo a trocaria. Chegava até tarde aos seus encontros íntimos, porque Benita precisava do seu colo para adormecer. E aí despia-se de todos os pensamentos lascivos, para se concentrar na sua pequena Benita, contando-lhe histórias que ela pudesse entender, com os seus dedos acariciando-lhe a minúscula testa, sussurrando-lhe suavemente “Como fué…” até os seus olhinhos se apagarem, para um sono em paz.

Depois repunha a sua veste de besta castigadora, marraria por aí fora entre beijos, pernas, gemidos e gritos, num martelar sem piedade, para a delícia e perdição das suas amantes. Os constantes avisos de Johnny Arroyo não surtiam efeito. O dispêndio de energia não o preocupava, nem tão pouco a ciumeira cada vez mais badalada em casa. A juventude criava-lhe a miragem de um poder sem limites e havia sempre quem desse cobertura a todas as escapadelas que se lhe exigiam.

Cego de êxtase, o seu ímpeto não conhecia marido de ninguém, nem os riscos que pisava. Era o toiro bravo, que só conhecia um território, o dele. Até que, numa noite encontrou uma turma de forcados pela frente, a mando de um inconformado com a leviandade da esposa.

Suava ele em cima desta, quando a porta da pensão se abriu a pontapé. Entraram seis encapuzados e logo se ouviu a estalada que pôs a adúltera inconsciente. De imediato, dois deles prenderam-lhe os braços, posicionaram-no de pé. Nico mal pôde organizar as suas ideias quando sentiu o duro de um bastão a atingir a sua barriga. Seguiu-se mais um golpe. E mais outro. Abriu os olhos e eram dois. A pancada era de tal violência que lhe pareceu sentir as suas entranhas já fora. Os dois que lhe seguravam os braços esticaram-nos e um terceiro golpeava-o por trás, enquanto mais bastonadas atingiam a parte frontal do seu corpo. Nico gritava. Sangue expelia pela sua boca, sabia que acabaram de fracturar pelo menos uma das suas costelas. As suas mãos a cobriam agora a cabeça e o porrete atingia os dedos, enquanto que outros continuavam a sovar as partes vulneráveis do seu corpo mazelado.

Um dos golpes mais duros atingiu-lhe a tíbia. A crueldade não tinha limites e a ponta do bastão foi o suficiente para esmagar o seu pé. Ao querer segurá-lo para evitar mais dano, levou uma paulada na maçã do rosto e outra na clavícula. E por fim, já prostrado no chão, divisou que um deles empunhava um cutelo e não queria acreditar que essa fosse a sua última noite. Estava à mercê do seu destino, demasiado ferido para decidir como iria morrer. Fechou olhos e esperou pelo final.

Soou um grito de alarme. Ela acordara atordoada e assistia o cenário horrendo em que o seu touro se encontrava. O homem hesitou, o seu cúmplice segurou-lhe o punho e persuadiu-o a desistir do pior. Cobriram-na com um lençol e arrastaram-na para fora do quarto, entre gritos e soluços.

Nico acordou deitado numa maca no hospital. Havia polícias à volta a querer saber do sucedido, sem que pudesse corresponder ao que lhe era perguntado. Não conseguia mexer e cada acto de respiração era uma dor lancinante. Estava preso na maca, para lhe assegurarem repouso absoluto, com um penso atado na cabeça para manter imóvel o seu maxilar. Acusava também fractura de dedos e da tíbia. Não sentia o seu esmigalhado metatarso. Nico só cantarolava em silêncio “Como fué…” com Benita no seu pensamento, a única forma de amenizar o tormento do instante. Não compreendia como continuava vivo, enquanto corria notícia de que uma mulher, esposa de um temível, flutuava cadáver nas águas de Deep Water Bay.

Passou no hospital duas semanas e ninguém o visitara. Telefonou várias vezes à casa, a linha não dava sinal de vida. Teriam os mesmos jagunços feito alguma coisa à sua família? À Pilar? À Benita do seu coração? Quando conseguiu finalmente andar apressou-se a ir para casa e quando lá chegou a porta não estava trancada. Esperou pelo pior e entrou. A casa estava impecavelmente arrumada, não havia sinal de saídas abruptas. O único cheiro que havia não era da violência que esperava, mas sim do vestuário da Pilar, quando abrira o guarda fato do quarto. Estava tudo intacto, porém sem ninguém, sem nada. Ao sair do quarto, reparou que algo o enxergava. Era o brilho reflectido nos cabelos de ouro da muñequita da Benita, prostrada num canto do sofá. Nico imaginara como Benita teria chorado quando Pilar a levara da sua casa, sem a sua amiguinha de dentinhos de pérola e lábios de rubi. Não obstante o sentimento de culpa, podia viver sem Pilar. Mas, o coração despedaçou-se quando pensou em Benita. Traíra-a com a sua ignominiosa leviandade. Naquele momento mal sabia que tinha começado o seu longo calvário.

Acelerou o passo que o levaria à Tropicana. Aí deparou-se com Johnny e levou logo um estalo na sua já macerada cara, quando principiara a conversa.

“Não te quero ver mais, não me cumprimentes, não olhes para mim. Não gosto de gente do esgoto, dá-me nojo. Nem penses em voltar a ver as duas, que já saíram desta terra. Nem te passe pela cabeça voltar a Miami, pois a tua mísera cachola está a prémio”.

Nunca mais voltou a ver Johnny Arroyo, nem mais passou pelo Tropicana. Nunca soube se a sova que levara tinha algo a ver com o seu sogro. O certo é que nunca mais sorriu, como a avó Consuelo gostaria.

Acordou do seu devaneio quando Ah Kai, o dono da mercearia perguntou se queria mais alguma coisa, pois estava a fechar o estaminé. O dia caía calmamente e ele arrotava cerveja. Era altura para voltar ao Beco do Musgo.

IV

Passaram-se dez dias e a vida teria retornado ao seu incondicional tédio, não fosse o tilintar da campainha.  Nico arrastava-se sonolento em direcção da porta, sem dar conta de que já marcavam oito da noite, quando a sineta voltou a tocar. Irritado, abriu-a, mas despertou de vez.

Marilu olhava para os seus próprios sapatos, estava tensa. Tinha encenado muitas vezes nesse dia para esse momento, mas não controlava o seu nervosismo.

“Qué quieres?” – desferiu a voz com impaciência e agressividade.

“Vim…ah… Posso entrar?”

Atónito, esperava tudo menos isso e antes que lhe fechasse a porta na cara, convidava-a a entrar, sem ao certo saber porquê.

Ela sentou-se no sofá, ante um olhar julgador, que na verdade mais escondia incredulidade.

“Comprei uma coisa para si. Achei que iria gostar”.

Nico franziu a testa quando tirou o CD do embrulho. “Reliquias de Havana” lia-se na capa. Mirou e interrogou-a com um encolher de ombros.

“Eu…ah…muito obrigada… por… por ter … cuidado de mim. Teria ficado bem pior se o senhor não tivesse dado por mim.”

Nico sorveu o seu rum, pouco impressionado, continuou com os olhos fixos nela, sem nada dizer.

O silêncio colocou-a numa situação difícil de gerir, o seu coração acelerava de ritmo, num misto de vergonha e de arrojo. Estava aí, vulnerável, sentada diante de uma figura a quem devia a sua vida, em circunstâncias tão invulgares que não teria coragem para relatar, fosse a quem fosse.

Perdoe-me por ter saído assim de sua casa, sem lhe dizer nada. Não sou ingrata, mas não sabia como e o quê lhe dizer. Estava desesperada e fugir foi a primeira coisa que naquele momento me veio à cabeça” – Já rogava pragas a si mesma, por não terem sido essas as palavras que decorara.

Nico encolheu os ombros, não sabia o que dizer.

“Qué pretendes de mi?” – indagou enquanto dedilhava as bordas do CD.

Hesitou.

“Queria retribuir… Posso pagar, sei lá, mas também fazer qualquer coisa. Por exemplo arrumar a sua casa…” – ela mal continha o seu calafrio pela gafe cometida. Nico apenas fez uma careta de espanto.

“Pero, mi casa está mui bién, no necesito de nada más!”

Ela não sabia com que retorquir. Que mais lhe ocorreria dizer, nessa situação tão inacreditável, sem o risco de um mal-entendido?

Apenas dizer-lhe que … que…”

“Qué?”

“Apenas para lhe dizer que … nunca fui assim … tão bem tratada. Nunca ninguém se interessou por mim, que tivesse cuidado da minha saúde e da minha segurança.”

“Pero tú padre, madre…” – ela baixou os olhos e meneou a cabeça.

Na verdade, nos dois dias que passou em sua casa, o seu telemóvel não deu sinal de vida. O que animava essa espinafrada moça com dentuça aramada, nunca iria entender. Mas, percebeu que havia algo comum entre eles. Ambos viviam uma vida à margem da atenção de todos, cada um no seu gueto inexpugnável, construído de vivências, angústias, apelos sem resposta e gritos inaudíveis. Porém, enquanto ela ainda nova com resquícios da vã esperança pela melhoria da sua condição e ele já resignado do fado que se lhe traçara.

“No sé lo que más decir.”

“Não tem que dizer nada. Podemos ouvir o disco e…e depois vou-me embora, prometo! Isso…se… se não se importar, é claro!”

Ele suspirou fundo.

“Chica… Qué es lo que realmente quieres? No tengo nada para ti.”

Não respondeu logo. Baixou os olhos e fitou nas as suas mãos que se cruzaram.

“Não tenho mais nada que se chame … família.”

O silêncio instalou-se e assim se ouviram todas as notas de Paquito d’Rivera soprando”Cuando vuelva a tu lado” e de outros tantos que se lhe seguiram, sob os auspícios da Imaculada Conceição e de toda uma turma de estrelas da parede. Até ela se ir embora, não disseram palavra alguma. Talvez a calada fosse a língua comum, cruzando duas vidas tão distintas, num momento tão improvável.

E o bolero passou daí em diante a soar de modo diferente no Beco do Musgo. Deixou de ser uma mera nostalgia para se tornar em algo com razão de ser.

V

Três meses se passaram, de uma nova vida para Marilu. Todos os dias de todas as semanas, eram um sopro novo na sua vida monótona. Havia agora motivo de se estar, que alimentava um ânimo que jamais experimentara. Interrogara-se várias vezes, o que aquele velho amigo tinha de especial que lhe dava uma força estranha e tornava os seus dias mais diversificados. Até o sol lhe parecera mais amigo. Não poucas vezes, se surpreendia com o cantarolar que espontaneamente brotava da sua boca, ao ritmo da sua caminhada. Antecipava a alegria que adivinhava desfrutar na visita que iria fazer ao Beco do Musgo. Sem surpresa encontraria um Nico, parco em sorrisos, mas sempre pronto a contar mais uma peripécia. Inicialmente havia os “olá estou de passagem” mas rapidamente eles converteram-se em algo constante.

Ele contava-lhe histórias da sua meninice, das traquinices com os colegas da escola que frequentara pouco, os brinquedos que inventaram, os sonhos que fingiram realizar. Contava-lhe sobre as sessões da charanga da avó, a congada de Pablito, o guiro do velho Chano e como todos juntos acompanhando a voz cheia de alma de Consuelo, davam mel à vida do bairro mísero de Havana. Algumas vezes saía sem dizer para onde, no momento em que ela chegava. Ela ficaria em casa arrumando o que estaria fora do sítio.

A vizinhança coscuvilheira não tardou em apelidá-la de “afilhada do espanhol” , com evidente  tom de escárnio libidinoso. Um hispânico caquéctico e uma trinca-espinhas vesga e dentuça, um rico par de circo que alimentaria anedotas mais grosseiras que uma mente pecaminosa poderia abarcar. Mas, isto não lhe beliscava em nada, pois já se dera com nomes bem piores.

A visita regular tornou-se uma necessidade. Nico passou a ser a pessoa a quem podia contar tudo, sem receio de censura, a ser um ouvido para as suas façanhas. Contou-lhe a sua vida, a sua solidão, os seus desejos.

Não obstante, havia nele também momentos de melancolia. Menos efusivo, ele repousaria no vago ao sabor do rum. Reinaria então mais o silêncio, quebrado fugazmente por uma ou outra melodia latino-americana. Nesses dias, não conversavam. Ela lia e ele errava pelos pensamentos.

Num desses momentos Marilu perguntou-lhe:

Quem é a menina da fotografia?

Retorquiu com um trago súbito, que até pingos de rum salpicaram sobre a sua camisa. Seus olhos habitualmente ágeis tornaram-se inertes, denunciando o vão de uma vida ainda à procura de sentido.

Marilu esperou. Pressentiu que tocara numa cicatriz mal curada e, quiçá, a chave do quadro enigmático desse homem de tantas facetas e surpresas.

Esta es la última foto de Benita que he guardado. Mi hija tenía trés años. – disse, passados vinte minutos de mudez.

– Onde está ela?

– No sé. Nunca la he vuelto a ver.

– Chegou a procurá-la?

Nico sorriu, emborcou mais um gole e explicou a sua resignação com um encolher de ombros. Marilu não insistiu mais. O desalento estampava-se no rosto do idoso, cujos olhos trémulos dispensavam palavras. Ela então decidiu que seria só ele quem voltaria a falar sobre a Benita.

Nessa noite, a conversa acabou cedo, Nico até adormeceu no sofá. Marilu cobriu-o com uma manta e antes de sair desligou todas as luzes que ela ajudou a montar, e eram tantas nessa noite.

VI

“Porqué no tienes un namorado? Estás perdiendo tiempo aqui, no?” perguntou o cubano, numa noite depois do jantar.

“ Porquê? Queres livrar-te de mim?” – gargalhou Marilu, enquanto lavava a loiça.

“Una chica con tu edad debia namorar, no?”

“Nico por favor, quem me quererá? Acorda!”

“Ah io te quiero! Pero tengo edad para ser tu padre! No seria apropriado”.

“Haha, tu és bom para mim, mas eu sei que Deus tem outras ideias. Umas pessoas nasceram para namorar e têm uma sorte bestial, outras podem esperar até morrer… sozinhos”.

“Como io…”

“Oh Nico…”

“Tus clases de baile… nunca más has hablado dellas.”

Desta vez a ferida abriu-se.

Desisti. Telefonei ao Mister Hung para cancelar a minha inscrição”

“Porqué?”

“Nico… sempre julguei que podia dançar. Mas afinal isso não é para mim”.

“Disparate! Voy a hablar con el señor Hung…”

“Nico olha bem para mim!” Ria-se, mas a mágoa transparecia. “Não consigo ver-me ao espelho. O que uma pata pesada pode fazer numa pista de dança? Fiquei farta… enojada” – lembrara-se da noite do seu último aniversário.

Nico não disse nada, respirou e dirigiu-se para a sala e pôs música.

Venga chica”.

“Nico, por favor não, amanhã trabalho e vou já para casa…”

“Callate. Acércate de mi”.

Marilu fazia cara de quem já adivinhara tudo o que viria a seguir. Não quis contrariá-lo, mas fez um trejeito de enfado.

Mírame a mí! No digas nada para lo que voy a hacer.”

Ela cumpriu, fixando os seus olhos nos dele. Intensamente. Apontou o seu dedo na boca dela.

Sácate eso de tu bóca.” Ela fitou-o nos olhos com espanto, ia protestar mas ele limitou-se a acenar a cabeça suavemente, insistindo no que pedira. Depois de ela ter removido o aramado da sua boca, manteve-se imóvel à espera do próximo passo de Nico. Este passou para trás dela e soltou o seu rabicho. As suas mãos rugosas seguraram depois nos débeis ombros da atordoada Marilu, e forçou que as suas costas ficassem rectas, projectando o seu liso peito para frente.

Seguidamente ela sentiu os seus rugosos dedos retirarem os seus pesados óculos. Nico virou para trás e apontou para o pé do sofá a sete metros de distância. Marilu seguiu o dedo indicador e olhou.

Nico fez-lhe então sinal para manter o ângulo da sua cabeça e voltou à frente dela.

Chica, ahora mírame en mis ojos. Escucha la canción”.

As suas faces ruborizaram e sentiu-se nua de todos os objectos que a ocultavam do mundo, que a protegiam de qualquer escárnio e censura. Mas a sensação de leveza atingia rapidamente o seu imo, nada pesava naquele momento, e pela primeira vez experimentou o seu próprio ser, que por tantos anos a inanidade do seu meio tratou de ofuscar.

“Sin ti…no podré vivir jamás… y pensar que nunca más … estarás junto a mi…” (10)

Instintivamente o corpo de Marilu se embalava ao ritmo dos Panchos. Enquanto Nico segurava firmemente os seus ombros, as suas ancas meneavam lentamente. E subitamente algo atravessou pela sua espinha acima, ela fechou os olhos e contorceu-se. Voltou a mirar Nico, agora ousada, mais ela. E lia os seus pensamentos.

 

Sin ti … No hay clemencia en mi dolor … La esperanza de mi amor … Te la llevas al fin…”

Não o percas de vista, porque é ao teu domínio e sedução que o homem se submeterá. Ele é a tua presa e tu, a razão da masculinidade que ele quer manifestar dentro de ti. Mas disso ele ainda não sabe e é essa a magia do teu domínio. Bolero é carne e beleza sublime. Bolero és tu, mulher.

“Sin ti… Es inútil vivir… Como inútil será… El quererte olvidar… “

Era áspera a sua palma, quando segurou na sua débil mão esquerda. A outra mão, pousou-a a meio das suas costas e conduziu-a. Marilu deixou-se levar, ignorando o domínio que Nico lhe atribuía, apertou-se junto desse homem que lhe dava um sentido tão diferente de se sentir mulher.

E ele murmurava para o ouvido dela “chi…ca….pom-pom… chi…ca…”, marcando o compasso “lon-go… curto-curto… lon-go…” do mais básico do bolero.

Para Nico, era estranho ver o seu corpo junto de uma mulher, que podia ser a sua filha, levando-a até onde as emoções o permitiam fazer. Força desconhecida essa que o fazia mover e pela primeira vez, sem Benita, sem Pilar, Johnny, avó Consuelo, La Tropicana, jagunços, noite, e tantos outros fantasmas que sempre o acompanharam. Todavia, na sua mente corria a imagem duma criança num descampado em terra batida que ele conhecia bem. Era Niquito que acabara de receber da avó um papagaio de papel, quando fez oito anos.  Como estava feliz nesse dia. Ele aí sorriu largamente, como também havia muitos anos que não fazia.

Nessa noite, quando ela chegou à casa, não foi rente ao chuveiro. Parou antes diante do seu espelho vertical e desnudou-se. Voltou a tirar os óculos. Inclinou a sua cabeça ligeiramente para baixo e olhou-se. Sorriu e, mantendo estáveis os seus ombros, as ancas voltaram a menear, quando a sua mente reproduzia uma melodia.

 “Chi…ca… Pom-pom…. Chi…ca… Pom-pom…” – riu-se desbragadamente.

Admirava agora o que via ao espelho. Uma magriça de pele alva, cabelos escuros soltos, pequenos seios, ancas pouco salientes, agora porém, de olhar penetrante, desafiadora, que se movia com a ousadia de quem ganhou algo e para sempre. Marilu continuava a não primar em beleza, mas achou em si a mulher que a leveza da liberdade lhe trouxe essa noite. Não tinha ainda plena consciência de que tudo mudara nela, mas achou belo o que vira no espelho. Queria reter aquele bocado de felicidade. Era real e era disso que andara à espera, vida toda.

Nessa noite, não dormiu. A sua cama, transformou-se antes em recinto onde concentrara toda a roupa “apropriada”, para ser jogada fora ou doada. Com ela seguiriam pares de sapatos comprados por mera conveniência. Num ápice, esvaziou o guarda-fato. Todos os quadros com frases inspiradoras foram para o lixo, assim como aí pararam os livros de auto-ajuda. Quem se encontra e se aceita, não precisa de modelos, nem paradigmas de felicidade. Os santos também saíram da parede. Quem tem fé, não precisa de mais estímulo divino. Por fim, lançou para o cesto de descartáveis o seu aparelho dentário. Que aturem a minha dentuça, bradou para si!

Na manhã seguinte, passou pelo Cheok Chai Un(11) e parou na tenda do chu-cheong fan(12) e pediu a dose grande. A dona do estaminé, Chan Si Lai, não a reconheceu no início, nem ela a cumprimentou logo. Aí estava nervosa, sem saber da reacção dos seus conhecidos. Mas, rapidamente a dona desfez-se em alarido.

“Menina! És tu! Oh como estás diferente!  Quando foi a última vez que vieste? Há dois dias!…”

Marilu estava agora à espera da sua sentença. A Chan Si Lai, uma bela mulher dos seus quarenta anos, era conhecida na vizinhança pelo seu deslinguado. Não fosse ela exímia na sua arte de preparar uma bela massa enrolada, já teria a sua tenda ido para o fogo, pela ira que causara a alguns incautos.

Estás linda…a sério, sem óculos, cabelos soltos. Eras tão acanhada, o que te deu?”. As suas faces coraram, mas não disse nada, esboçou apenas um sorriso. “Ah, já entendi, agora és mulher! Já era sem tempo! Ouve, nós as mulheres também temos que gozar. E ele é bonito?”. Marilu declinou mais uma vez a responder. Chan Si Lai, encolheu os ombros e o seu sábio sorriso não se fez esperar “Pela tua cara, sei que tiveste uma noite bem trabalhada. Hehe… hoje não pagas nada. És mulher! Ha-ha-ha!”

Marilu não sabia o que lhe dizer, pois ela não entenderia. No entanto, passou pelo seu remoque e teve a certeza de que fora aprovada no exame. Quantos crivos mais teria de passar, não lhe interessava no momento. Queria desfrutar a sua despreocupação o melhor possível. E desceu pela Rua do Campo abaixo. A sua miopia pesava no passeio, mas sabia bem andar em plena rua sem o peso nos olhos. Passou pelas vitrinas, por onde podia ver-se. E todas as vezes que aí via uma figura magricela encurvada, endireitava as suas costas, puxava os seus ombros para trás, enquanto retesava o seu peito. Deu-se depois a olhar o espelho da vitrina do lado para onde atravessaria, abrandou a marcha só para divisar como andava. Pela primeira vez observara com acuidade, o passo de outras mulheres e imitou. Chegou à porta do edifício do seu serviço. Respirou fundo, mais um grande exame à vista.

Chegou à casa no fim do dia. Por várias vezes quis direccionar-se ao Beco do Musgo, mas hesitou. Sentiu que precisava de mais um tempo para se preparar para o grande momento. Observou novamente pelo espelho  a menina em plena transformação. O seu novo penteado menos volumoso, a sua camisa branca comprida de seda, ganga azul ajustada às suas ancas e pernas alongadas. O único óbice eram os olhos avermelhados por ainda não se terem habituado às lentes de contacto. Mesmo assim sorriu, para se assustar depois: no dia anterior, era outra a pessoa que aparecia no reflexo e que sempre a acompanhara.

Na cama pensou em Nico e o coração bateu forte. Era a barreira mais importante que tinha de ultrapassar.

VII

“Ah-Ngao, isto não melhorou.” (13)

Nico escutava mudo o diagnóstico do mestre-china(14) Lam Tat Cho que estudava a palpitação do seu pulso com os seus argutos dedos. Não que falasse muito chinês, mas foi o mesmo sujeito quem o livrara de muitas mazelas do passado, curara-o de reumatismos, gripes, espinhela caída, eczemas, diarreias e cólicas, de quem aprendeu os curativos mais básicos para se cuidar quando for necessário. Como um cubano se pôde dar com um chinês, numa língua que é apenas franca para ambos, só o milagre de Macau pode explicar. O certo é que aquele nunca mais confiara na medicina dos hospitais. Não havia bisturí, nem estetoscópio mais certeiro que o dedilhar do curandeiro.

“E agora?

“Quanto tempo queres viver, toureiro?”

Boa pergunta. Havia dias em que queria despertar em algo etéreo, porém noutros sentia haver ainda algo por fazer e que por isso ainda não era hora de partir. Estava nessa última situação, achou.

“Por ora não quero pensar nisso”. Mas pensou em Marilu que já não vira havia quase uma semana.

“Pois, entendo.”

O mestre-china sempre sereno e impávido, com quem Nico nunca conseguira ter o que pudesse designar-se por conversa, pegou no seu pincel rabiscou a receita numa artística caligrafia. Olhou Nico nos olhos e pela primeira vez denunciou reserva.

“Toureiro, o que te receito é coisa mais forte do que o habitual, vais precisar dele. Não gosto da tua cara, mas enquanto a tua urina não escurecer, está tudo controlado. ”

Mas eu… mou-chin(16)!”

O mestre Lam sorriu, como também raramente fazia. “Não te preocupes. O teu coração é bom e tens ainda algo inacabado, disso o mestre Lam sabe.”

Não entendeu essa última frase, que mais lhe soou a uma despedida. Mais uma.

De facto, já esteve noutras situações parecidas, em que a vida lhe corria sobre um fio.

A caminho da farmácia onde iria buscar as ervas medicinais, lembrou-se dos dias seguintes à conversa que teve com Johnny Arroyo. Estava-se perto de Natal, o céu nublava-se a condizer com o rosto dos transeuntes e do norte soprava o vento hibernal da época, relativamente seco, mas ainda suficientemente húmido para levar o frio até os ossos.

Fez uma lista de visitas a fazer, mas as portas fecharam-se-lhe tão rapidamente como a queda das pedras do dominó. Os tais amigos da noite e de peito despacharam-no a eito, jurando a pés juntos nunca na vida o terem conhecido, que ele não passava de um impostor e que merecia, era, uma surra das grandes. Não conseguia andar com a destreza de outrora, mas mantinha a sua bela figura, embora o desmazelo tenha já tomado conta do seu penteado e da indumentária. Não tinha, na verdade, condições para estar melhor, sobretudo quando foi ter com Maggie, a abastada filha de um magnata da marinha mercante, a oferecer-lhe serviço como tantas vezes fizera no passado, de quem recebera tanta prenda e nota. De todas, Maggie era a que mais o adorara, tanto foi o prazer que o touro lhe dera que até rogava por mais. Não se importaria, decerto, com a sua apresentação. Pelo menos, foi essa a ideia com que galgara a subida pela Mid-Levels. Abriu-lhe, então, a porta um sujeito de feições asiáticas, possante, musculoso e sorumbático. Nos outros tempos, ele exigiria uma explicação, mas agora era ele quem teria de explicar a razão da visita.

“Quem é?” ouvia-se a voz dengosa da Maggie do interior.

“Um camafeu que pergunta pela senhora. Quer que corra com ele?”

Maggie apareceu em robe de inverno a cobrir a sua nudez e hesitou quando o viu. Nico avançou logo à primeira oportunidade, abraçando a antiga amante como se nada tivesse acontecido na sua vida, ignorando o mastodonte aparentemente enciumado.

“Oh meu coraçãozinho, como preciso de ti. Sinto-me tão desamparado e indefeso sem ti. Tenho pensado nos dias em que passaremos nas Caraíbas…”

Nicky…” ela interrompeu-o afastando-se dos seus abusivos lábios. Era visível a sua repulsa, contra o intenso odor corporal do cubano.“As coisas já mudaram. Esse jogo de eu ser a boneca a teu mando já terminou. Já encontrei um novo companheiro, lamento. Vamos já resolver isso, duma vez por todas”. Fez sinal ao seu empregado para lhe trazer a carteira.

Cinquenta dólares de Hong Kong, uma bofetada e mais sevícias, foram com que descera até Central, sem noção donde seria o seu poiso para o resto do dia. E a fome, essa inoportuna companheira da desgraça, não tardaria a acotovelá-lo. A caminhada foi-lhe particularmente penosa, com o seu pé amordaçado, obrigando-o a repousar, para depois seguir o seu trilho com destino sempre adiado. Todavia, acordou com dois indivíduos a vasculharem os seus bolsos. Nico ainda tentou debalde segurar o dinheiro. Levou dois murros que o pôs prono no chão. Um deles até soltou os atacadores dos seus sapatos, arrancando-os dos seus pés.

Nos dias seguintes passara por tudo, embrulhando os seus pés com saco de plástico, atando-os com qualquer corda ou guita que pudesse encontrar pelo caminho. Doíam-lhe sobremaneira, de tanto andar e de tanto ser corrido dos sítios já ocupados por outros da mesma condição. Era miséria que encontrara nesse submundo da fausta cidade, onde cada canto era uma cama e tudo que andasse sobre quatro patas era comestível. O impensável duma dita auto-suficiente cidade ocorria-lhe à vista, onde vivia gente à margem de qualquer noção de dignidade humana. Bem mais feliz era o tempo da pobreza extrema em Havana, onde o povo, ao menos, se divertia à custa da própria desgraça, alimentando-se da música e dos ritmos fortes, ofuscando o cru de uma vida sem futuro. Bem mais triste era ser invisível, numa cidade onde o cimento se confundia com o lúgubre estampado nos rostos dos indigentes.

O que estava mais à espera, dizia para si, junto de uma das docas de North Point. Lembrou-se de Benita nessa hora que pressentia ser de despedida. Teria tanto para lhe dar e contar, encher-lhe-ia de conselhos, seria o seu confidente. Mimá-la-ia com tantas prendas de Natal ou de outras ocasiões. Dançaria com ela, faria dela a melhor bailarina da turma para a inveja das suas colegas. Seria um Pai.

Porém o seu coração arrefeceu de seguida e seus olhos semi-cerraram. Benita não quereria um trapo humano como pai, não mereceria a infâmia que ele lhe causara, nem a vergonha com que teria de crescer. Não, ela teria de ter um curso de vida sem ele. Resignou-se e apagou-se-lhe, então, a luz. O seu pé daria o último passo para o gélido mar de Dezembro.

“Isso não. E se Benita não se importasse com a tua desgraça e viesse um dia à tua procura? E porque não esperar por esse dia?”  Era a voz da sua consciência, como se tivesse ganho vida própria naquele derradeiro segundo, para reclamar a sua própria sobrevivência. Ele agachou-se e se encolheu como uma concha e chorou. Sabia que tudo não passava de falta de coragem para pôr fim à sua própria existência. Quer ele morra naquele momento, quer viva como um leproso pelo resto da sua vida, não haveria retorno. Benita não voltaria. Desfaleceu.

Acordou no leito de um centro missionário católico de solidariedade a desabrigados, trazido por uns estivadores da doca. Aí permaneceu durante dois meses, onde se recuperou em toda a sua extensão. O centro não tinha condições para o albergar por tempo indeterminado, quando ele manifestou o interesse em apoiar a acção social a troco apenas de comida e dormida. Nisso, alguém sugeriu-lhe que fosse a Macau para prestar auxílio a um grupo de jesuítas espanhóis, no apoio aos refugiados vietnamitas.

 

A campainha tocou e Nico mal se recompunha das suas recordações. Arrastou-se até à porta e quando abriu-a deu um pulo de espanto.

Marilu encolheu-se embaraçada.

“Estou …mesmo horrível, não estou?”

“Caramba …!” Viu uma moça delgada de cabelos soltos mais curtos, mas finos, sem óculos, nem dentuça, de camisa branca, desabotoada por onde se divisava uma peça ajustada cobrindo os seus seios pequenos, de saia acima dos joelhos, calçando saltos médios. Diante de si estava uma moça tímida, mas descomprometida do seu passado, pronta para uma nova vida.

 “Qué bella!”. Sorriu genuinamente.

Marilu respirou de alívio e apenas apertou-o nos seus braços. Não lhe interessava as considerações que outros lhe teceriam sobre o seu novo visual. O importante era que Nico a aprovasse e aceitasse a nova Marilu que emergia dentro de si. Muitas vezes interrogava se amava esse homem. A resposta era sempre positiva. Mas, escutava também o que a sua voz “de anjo” lhe segredava. Ela lhe contava como Nico se situaria numa dimensão bem acima da de um mero amante. Era isso que alimentava a sua devoção por essa estranha pessoa, escutando-o e confiando-lhe o seu impenetrável mundo de anseios, esperanças e desejos, desnudando-se de preconceitos que a atormentaram toda a sua vida.

O jantar que houve nessa noite pareceu no início ser entre pessoas que mal se conheciam, mas com suficiente empatia de se darem bem num ápice. Não obstante, Nico não falar muito de si, Marilu contou tudo o que se passou durante a semana, a reacção das pessoas, dos vizinhos, dos colegas quando a viram. Riram-se muito, partilharam o rum e até ela sorveu um trago da cigarrilha.

“Ensina-me, Nico”, desafiou-o por fim.

Ele sorriu e concordou. Nos dias e meses que se seguiram, passaram, pela rumba, pelo samba, merengue,  son, calipso. Marilu experimentava a sensualidade à flor da pele. Vira que afinal os grandes movimentos e as coreografias do Mr. Hung não faziam sentido. Compreendera que a dança não tinha de se sobrepor à música, porque ambas são faces da mesma moeda, assim como o é o vinho e as delícias da boa mesa. Sentir a música e exprimi-la através do seu corpo, amparando-se no seu homem que a corteje a cada passo, seria a isso que apelaria toda a dança. Bolero era isso tudo.

Ao concentrar-se na sua pupila, Nico renascia paulatinamente. A postura do corpo, o alinhamento dos ombros, a flexibilidade das ancas, a leveza de cada passo em contraste com o contrapasso, acima de tudo a capacidade de se moldar ao movimento do seu par, eram lições que exigiam de Marilu uma incondicional atenção, e dele uma revivência dum passado enclausurado nas profundezas da sua memória.

Apesar da fraqueza de um dos pés, Nico recuperava lentamente a destreza que o caracterizara nos tempos áureos, animado pelo prazer que tinha o condão de criar. Gradualmente, voltava a sentir algo havia muito arredado das suas sensações, o touro, agora amadurecido e não obstante, a querer desenvencilhar-se do grilhão com que ele próprio o prendera. Inquietante este pensamento, não fosse o resquício da charanga da avó Consuelo que também começava a entoar no tardoz da sua consciência.

Cuando estoy entre tus brazos corazón … Me quema la pasión y el fuego de tu piel… “ (16)

A sua mão direita posicionava-se a meio da coluna de Marilu, os dedos pressionavam-na consoante as nuances do ritmo, enquanto ele gingava suavemente, levando-a a rodopiar. De olhos cerrados ela inebriava-se com esse carrossel, segurando-se nele, sem se importar com o tempo. Sentia a segurança e a confiança nesse homem que passou a ser a sua referência.

“…Déjame quererte con ternura adolescente para poder concebir …”

Ela abriu de seguida os olhos e mirou Nico pela forma como foi ensinada. Este então sentiu as mãos delgadas da pupila a corresponder a pressão dos seus dedos masculinos. Puxava agora por ele, incitava-o a mais, pelo instinto que a dança atiçava no seu magro corpo, o feitiço do bolero que a soltara dos demónios que a amedrontaram no passado.

“… Quiero estar bajo el embrujo de tus besos y en tus labios conocer… “

Movia-se agora livremente dentro do compasso, criando pormenores, coreografando a sua dança, deixando Nico surpreendido com o seu serpenteio que adquirira num espaço de tempo tão curto. E naturalmente os papéis inverteram-se: ela passou a comandar a dança, desafiando o seu touro, provocando mais arrojo nele, mais sangue nas suas entranhas, mais desejo de posse, a que ela só corresponderia, como e quando quisesse. Nico viu nisso nela, excitou-se e sorriu. Agora sim, ela dançava. Apertou-a mais junto do seu também renovado corpo, moveram-se em todo o espaço que a sala permitia, como que num único corpo, com um único propósito, o de acenderem em cada um, uma chama, há muito arredada da vida dele, mas fundamental para que a dela fizesse sentido. A paixão de querer, de possuir e de fazer.

Por fim, suportando o leve corpo da pupila com a mão no seu dorso, inclina-se sobre ela. Ele lia o seu desejo e sabia que bastava um pequeno gesto para se consumar o que a lascívia lhes trazia. Porém, não era isso que ele pretendia, não queria ser causador de algo, cuja consistência não estava em condições de garantir. Não iria comprometer um futuro desta inocente moça que medrava em beleza e se fortalecia como pessoa. Queria sim transmitir-lhe algo, deixar-lhe algo com sentido de decência. Algo que não lograria fazer com Benita.

Ele inclinou-se e beijou-a na testa.

Marilu esboçou um sorriso. Também leu algo no rosto magro de Nico, vincado pela angústia de muitos anos. Entendeu que o desejo por ele teria de ser mais do que o estímulo carnal pudesse causar. Ele transcendia  o simples homem com quem poderia partilhar uma cama. Ela iria encontrar muitos homens na sua vida, casaria quantas vezes que entendesse, mas voltaria sempre junto de Nico. Cerrou os olhos e aconchegou-se nos braços do touro, dormitou com a segurança que se deve ter num berço.

“Como fué… no sé decirte como fué …”.

IX

A brisa húmida soprava essa manhã do início de Setembro, trazendo um trecho de temperatura amena para suavizar o calor típico dessa altura do ano. Era o prenúncio de mudança de estação, as libelinhas já pairavam no ar, anunciando o começo das aulas, pondo os garotos aprumados com novos uniformes e malas. O dia começou bem cedo no Beco do Musgo. Nico já estava acordado e apreensivo. Queria que o dia fosse como o planeado e que nada o fizesse mudar de ideias. Faltou à consulta ao mestre Lam, não queria que este dissesse algo que o desencorajasse para o que vinha a cogitar nos dias anteriores.

Marcavam um pouco mais de nove horas e ele sairia, mas deu com a Marilu à porta. Tinha uma folga e resolveu aproveitá-la, fazendo a visita de costume.

“Bom dia, vais para algum lado?”

Ele acenou a cabeça, diante dos olhos perscrutantes da pupila.

“E… posso saber aonde?”

“Voy a Hong Kong.”

Ela não quis insistir nas razões da ida, como instintivamente se aconselhara.

“Que tal eu ir também?”

“Muy bien… se así quieres!”. Não planeara ir com ninguém, mas também não queria contrária-la. No fundo seria uma boa ideia ela ir também com ele, podendo com ela partilhar os estados de alma.

O silêncio reinou a viagem, sem ela saber ao certo qual o itinerário do passeio, embora já o pressentisse. Sem surpresa o metro parou na estação de Wanchai. Consultou o mapa e deambularam pelas ruas adentro. E pararam diante dum centro comercial. Nico olhou à sua volta para se certificar do sítio.

“Tens a certeza de que este é o sítio que procuras?”

Confirmou.

“Antigamente, éso era La Tropicana, dónde io era uno dançante muy importante!”. Embora o recinto se tenha convertido em algo completamente diferente da sua origem os traços se mantiveram. Onde era o acesso aos elevadores, transformaram-se em armazém de artigos. Reconheceu o lugar onde teria sido o palco, na zona onde passou a ser a loja da bijutaria e a imensa e fausta pista de dança deu lugar a vários corredores com inúmeras lojas de tamanho diminuto, de comércio variado, desde cosméticos, brinquedos sexuais a cabeleiras falsas. Nico ria-se, lembrando-se das suas fãs, no auge da sua carreira, da grande banda de Johnny Arroyo e os exímios dançarinos da plateia, que exibiam a sua arte durante os intervalos dos Rumbéros. Ria-se também, lembrando-se das escapadelas com algumas das fãs que o namoravam por trás do palco. Descreveu a Marilu todo o velho recinto com todos os pormenores de que pudesse lembrar.

Ao voltar para o exterior do edifício, ficou mais taciturno, quando lhe veio à memória a última conversa com Johnny. O sentimento de culpa ardia-lhe o peito, ao recordar a mão que este lhe dera em Miami, a protecção que lhe assistia e toda uma projecção para ribalta que lhe proporcionara. Johnny não merecia o que ele lhe tinha feito. Marilu limitou-se a observá-lo a fechar os olhos e a rezar.

Depois de ter feito uma ligeira vénia, prosseguiu o seu caminho, com Marilu no encalço. Andaram cerca de quinze minutos e depararam-se com um prédio habitacional, de uma decrepitude evidente, a acusar falta de pintura, sujidade generalizada, residentes com um aspecto duvidoso. Marilu tentou debalde demovê-lo do intento de nele entrar, para depois subir com ele ao oitavo piso, num elevador imundo, com escarro no chão e odor nauseabundo.

“Nico, porque estamos aqui?

Desta vez Nico não retorquiu. Absorto nos seus pensamentos e ante a impossibilidade de entrar em nenhum dos apartamentos, virou-se em direcção a um deles e ajoelhou-se para o pasmo de Marilu. Baixou a cabeça e aí se manteve durante um minuto, antes de dizer algo.

“Perdónenme, ustedes… perdónenme!”

Marilu, então, entendeu porquê se encontraram nesses locais, afagou-lhe as costas enquanto ele murmurava palavras inaudíveis. Por sorte, ninguém saiu das respectivas casas, caso em que não só se frustraria o seu propósito, como teria de se lhe dar uma explicação incómoda. Para Nico, era indiferente que alguém se sentisse importunado, pois estava aí para ficar o tempo que fosse necessário. A sua mente era um carrossel de imagens que se rodavam ininterruptamente. Mas, todas se fixavam em Benita, a menina de cabelos encaracolados e de covinhas pronunciadas. A menina que perdera por um seu devaneio carnal. Soubesse ela da saudade doentia que tinha dela.

Na volta a Macau, também a calada imperou. Contudo, Nico quis quebra-la.

“Perdóname también, Marilu”.

“Tinhas que vir um dia e fazer o que fizeste, Nico, não tens que te lamentar”.

“Estoy en paz, chica. Ahora, puedo retornar a casa. Muchas gracias, Marilu”.

Ela encostou a sua cabeça no seu ombro e embalou-se no sono até chegarem ao Porto Exterior, enquanto o escarlate do céu acompanhava a descida do sol por trás da montanha.

A ida a Hong Kong tornou Nico mais feliz e jovial, como que tivesse libertado de si um grande fardo. Estava sempre pronto para onde ela lhe sugerisse fossem. Até por várias vezes acompanhara-a às aulas do Mister Hung, o qual, consciente da melhor técnica que a sua pretensa aluna adquirira, decerto não dele, nomeou-a sua assistente, com a função de demonstrar aos outros alunos os passos de dança, talvez a forma mais inteligente de poupar a sua autoridade de professor de dança.

Nico observava de longe com orgulho e admiração a sua pupila, agora exímia executante da rumba, do cha-cha-cha e do calipso, tão diferente daquela desgraçada que encontrara deitada na rua, um ano atrás. Era agora uma mulher com voz própria e sonante, mais espontânea. Era por isso, bela. Uma vez, por insistência dela, ele viu-se no embaraço de pisar o centro do salão, onde dançou com ela. Se no início recusara dar um único passo, música acabara por o seduzir o suficiente para a conduzir, numa rumba para o deleite de todos. Ressabia-lhe os tempos mágicos de La Tropicana, em que dançava para uma plateia de admiradoras, estava delirado. Havia muito que não sentia tanto sossego e paz, esquecendo-se de tudo o que vinha adiando.

Lembrou-se de que estava perto o dia dos seus anos, que coincidia com a de Benita. Porém, recordou também que tinha o encontro com o seu mestre-china no dia seguinte.

“Ah-Ngao, isto está mau”, a voz do mestre-china não deixava dúvida.

A sua cara já vinha adquirindo uma tonalidade acinzentada, amarelada. A sua urina um tom acastanhado, ele estava mais magro. Por mais que Marilu lhe perguntasse, respondia-lhe sempre que estava bem e se sentia robusto. Na realidade, porém, tossia com mais frequência, as dores de barriga tornaram-se mais frequentes.

“Preciso de mais tempo…” avançou ele ante a reserva mais pesada do mestre-china. Contudo este não respondeu logo, ademais, que mais poderia dizer?

“Meus amigo… o que tinhas por realizar já o fizeste, segundo me contaste. Para nós chineses, o favor divino já te foi concedido, pois nem todos podem partir com o trabalho feito. Não é correcto pretender mais”.

“Eu preciso de passar os anos dela … com dignidade”.

“Ngao… Ela não é a tua mulher, nem tua amante, por quê te importas?”

Nico ficou mudo, mas a súplica no seu amarelado olhar falou mais alto.

O mestre Lam Tat Cho foi perspicaz. Não sendo uma coisa, nem outra, a menina tornara a vida do cubano, macerada de culpa e de angústia, em algo renascido. Há valores que justificam levar a vida até o extremo, ainda que fossem  incompreensíveis até para os deuses. Ele faria tudo para estar em condições nesse dia. O mestre também, se estivesse no lugar dele.

“Muito bem, como deves saber, a tua hora chegará quando menos esperares”, rabiscava o curandeiro a receita da sua medicação.

“Há muito que ando à espera desse dia”.

“Isso é mentira que todos contam, quando lhes falta coragem para encarar o seu fim”. sorriu o mestre Lam, consciente de que aquela seria a sua última sessão.

E que te importa, nisso tudo?”

“A inocência da moça que acredita na tua imortalidade!”


Camisa com motivos floreados, calças de cor beige, sapatos a preto e branco impecavelmente engraxados e suspensórios. Esse era dia de festa e, mais um ano,  Nico iria celebrá-lo como todos os anos fazia, desta vez com algo muito real.

Escolhera o restaurante onde houvesse música ao vivo. E havia um em que tocava um trio filipino músicas dos Trio Los Panchos e outros agrupamentos mexicanos. O responsável do restaurante perguntou se precisava de preparar algo especial, ao que respondera que precisava apenas de um bolo de anos, champanha e vinho.

A ocasião reuniu todos os pormenores como bela estava Marilu, vestida de um conjunto branco de blusa com alça fina e saia curta com folho, sapatos altos pretos luzidios, pendente fino com cruz de prata. Os saltos imprimiam um andar mais lento, que por sua vez denunciava um corpo frágil mas segura. Essa confiança conferia-lhe elegância e sedução. Ele riu-se de vaidade sabendo que fora responsável por essa sublime transformação.

“Hoy mi playa se viste de amargura … Porque tu barca tiene que partir…”(17)

O trio filipino esmerou-se de paixão nesse bolero de Roberto Cantoral, convencidos de que cantavam para dois namorados, embora fosse evidente a diferença de idade. Nico fez a vénia e deu-lhe a mão. Marilu aceitou-a, deixando-o iniciar a dança, como tão bem ela aprendera. O seu esguio corpo de sereia e as mãos de dedos longos roçavam-se no ainda másculo corpo do touro, os pés pareciam mais pequenos e eram agora de pena que deslizavam sobre o chão como se não o tocassem, acompanhavam com mestria as voltas e rodopios que ele lhe induzia. Mas nada disso valia, não fizessem os olhos parte desta cumplicidade. Bolero era ela e ele apenas a tornava mais mulher.

Ouviram-se palmas quando voltaram ao seu lugar. Marilu sabia que estava admirável essa noite.

“Tengo un regalo para ti”.

“Ui, que noite maravilhosa, há jantar, champanhe, vinho, dança e presente!”, aplaudiu levemente, segurando o pequeno embrulho contendo algo fôfo.

Nico atentava com expectativa a reacção da pupila. Com cuidado, Marilu abriu o embrulho sem o rasgar e viu uma boneca branquinha. Os olhos eram de vidro, lábios vermelhos, a boneca foi obra ele.

“No sabia lo que querías y…”

“Não queria nada, estar contigo aqui já é um grande presente”. Marilu apertou a bonequinha contra seu peito e sorriu largamente, sabendo do significado disso. Os seus olhos humedeceram.

Muito obrigada por esta noite, Nico”.

La cena está magnifica”.

Marilu manteve-se calada por uns segundos.

Não é deste jantar, Nico. Falo de ti, do que fizeste por mim, do que ainda fazes. Salvaste-me e deste-me a dignidade de ser como devo ser”. Nico retorquiu com o seu sorriso. “Sei do esforço que fazes por esta noite”, continuou.

Nico olhou-a com algum espanto.

Não queria vir” prosseguiu Marilu “pois sei que não estás bem. A tua cara, tua pele e teu olhar, não me enganam”.

“Qué estás hablando, mujer?”, brincou.

“Nico … o sr. Lam Tat Cho, também o conheci”.

Ficou hirto, enquanto ela prosseguia.

 “Numa das escondidas que me fazias, segui-te sem saberes e foste para o seu consultório. E foste várias vezes nestes últimos tempos. Estou a par da tua situação. Tenho poucos amigos, mas ainda falo com alguém no hospital. Sei da doença que tens há muitos anos e não há meio de a tratar. Falei com o médico que esteve com o teu processo. Chorei muito, fiquei muito revoltada por não quereres saber de ti, mas tive que manter a minha cara de serena. Não é fácil, quando sei … que é terminal. Toda a minha vida foi um mar de incertezas, de auto-flagelo, mas recriaste a minha coragem de ser eu própria, de me encarar e de ter a ousadia de dizer estas coisas. Esta noite não devia eu estar a celebrar coisa alguma, quando sei que … quando sei que não te terei outra vez. Mas, mais do que isto sei que este dia é importante para ti. Irias celebrá-lo ainda que estivesses paralisado.

“Chica, basta… hoy no és para hablar de cosas tristes …”

“Não são. Estou feliz por esta noite e sei que estás também. Hoje é dia da Benita, soubesse ela quanto gostarias de dançar com ela, como toda a tua vida sonhaste. Não calculas a inveja que tenho dela e quero viver o que ela nunca viverá! Viver o significado que tudo isso tem para ti. Tenho aprendido a ser indiferente ao porvir e viver todos os dias. Em cada um vi coisas lindas contigo, e hoje é provavelmente o mais feliz da minha vida”, pegou na mão de Nico e sorriu “Não são coisas tristes”.

No tengo nada para ti, pero nadie me trató como tu. Qué és lo que vês en mi, chica?”

“Um homem bom, Nico. Um homem muito bom”.

Ela levantou-se e puxou-o para a dança. Ele apertou-a nos seus braços e não se mexeu, enquanto a música continuava.

Cuando vuelva a tu lado… no me niegues tu besos…”

 

A saúde piorava de dia para dia. O apetite, os prazeres do charuto e  do rum esvaíam-se com o peso e o tom amarelado da sua pele acentuou-se. A tosse e as convulsões passaram a ser gradualmente mais frequentes, e a partir do dia em que o sabor a sangue tornou-se evidente, tornaram-se dolorosas, violentas.

Marilu chamou uma ambulância, um dia quando chegou à casa do Beco do Musgo, e deu por Nico caído no chão da casa de banho com a sanita de vermelho.

O Dr. Mendonça não ficou surpreendido quando voltou a ver o seu velho doente anos após ter desistido dos cuidados do hospital.  Foi peremptório em pouco se poder fazer, perante um historial feio que se vinha a agravar nos últimos tempos. O cancro do fígado que avançava, provocara varizes esofágicas e metastizara. O máximo que se podia alcançar era constatar o estado da doença, antevendo-se desde logo estar já na derradeira fase.

Ficou por três dias internado na Unidade dos Cuidados Intensivos. Sedado, dormia profundamente, enquanto tubos ligavam o seu corpo a aparelhos de medição, ao soro e a outro tratamento que mitigava o seu sofrimento. Marilu estava a seu lado, observando serenamente a sua respiração, como já o fazia havia duas semanas, quando passou a dar-lhe ansiolítico para o induzir ao sono. 

Onde estaria ele nesse momento? Com o quê estaria a sonhar? Interrogara-se ainda sobre o que teria passado pela cabeça dele, na noite em que ela acabara desfalecida na sua casa, como teria sido a sua preocupação em livrá-la de uma possível pneumonia ou mal maior. Ele teria feito tudo, apesar do seu feitio de então e do facto de não a conhecer de parte alguma. Porém, ela via-se agora impotente em fazer, fosse o que fosse por ele. Guardava um rancor especial por não poder mudar inelutabilidade das coisas, por ter chegado tarde demais para travar um fim de um homem que passou a ser a sua estrela. Se calhar era a sua hora que chegara, contra a qual não haveria retorno possível. Já a adiara por diversas vezes, quer por circunstâncias alheias à sua vontade, quer por deliberação própria. Alguém quis que a sua vida se cruzasse com a dela, mas para quê? Seja para o que fosse, ela deu-lhe uma razão para se manter vivo e completar o que a sua alma demandava fizesse. De súbito, viu-o a esboçar um sorriso. Podia ter sido um reflexo, mas ela desejaria tanto que ele tivesse visto a imagem da avó Consuelo, que ele lhe pintara com tanto pormenor e paixão.

A enfermeira de serviço interrompeu os seus pensamentos, ao informá-la que Nico passaria para um quarto normal, uma vez que a sua condição se estabilizou. Marilu disse que não. Caso fosse possível, ele iria para casa.

“Nem pensar, Maria Lúcia. Ele não está em condições para voltar à casa”, negou Dr. Mendonça com toda a veemência, o pedido de Marilu.

“Se você pudesse escolher entre morrer numa cama do hospital ou na da sua casa, qual seria a sua opção Dr. Mendonça?”

A volta à casa pareceu a Nico o regresso de uma viagem longa, e que todos lhe davam as boas vindas. Tito Puente com a gargalhada estampada na cara, Celia Cruz e Omara Portuondo, de braços abertos. E, claro, Beny Moré, piscava-lhe o olho maroto. Marilu conduziu-o para a sua cama e cobriu-o com uma manta. Foi à cozinha preparar uma canja que ele lhe ensinara a fazer.

Era reconfortante o cheiro a canja chinesa com ovos pretos e carne de porco, a qual passou a ser a sua refeição nos próximos três dias. Marilu dava-lhe de comer com pontualidade, arrumava a sua cadeira e assegurava o seu conforto nela. Numa destas vezes, resolveu brincar, rodopiando a colher pelo ar antes de chegar à boca de Nico. Este riu-se com esforço, mas fez questão em corresponder à paródia.

“Regresso a la casa es siempre bueno. Es aquí que quiero quedarme para lo todo siempre”.

“Sim, é a tua casa”, Marilu beijou-lhe a testa “Agora descansa um bocado”.

Mergulhou-se rapidamente no sono. Era visível a sua fraqueza. Mas, despertou sobressaltado.

“És tan triste cuando nadie acompaña a nuestro ataúd, no?”, balbuciou.

“Estarei sempre contigo, Nico. Sempre.”

Seus olhos fitavam-na. Lia-se neles reconforto de que tanto precisava.

“Vou te buscar um copo de água.”

Todavia marejado, o seu olhar transparecia a certeza de que tinha reconciliado com o seu norte. Era pena que não pudesse demorar um pouco mais. Contudo, era esse seu destino, implacável como aliás fora todo o seu percurso, e condescendeu. Lembrou-se novamente da noite em que estava à mercê do jagunço pronto para o apunhalar. Recordou ainda do dia em que podia ter saltado da doca para o mar gelado. Em ambas as alturas, algo decidira que ainda teria muito que viver e sofrer por isso. Que fez ele de tão hediondo que merecesse tudo o que foi na sua vida? Sorriu e encolheu os ombros. Encostou a sua face sobre a almofada e seguiu os passos da Marilu até ela chegar à cozinha. Não a queria perder de vista.

Voltou a pensar em Benita interrogando sobre o que estaria a fazer, contudo, a sua imagem turvava-se na memória, como um boneco de cinza a desintegrar-se ao sopro do vento. De súbito, a menina de cabelos encaracolados e covinha salientes, não passava de um registo ténue no tempo, como um mero retrato na parede que, graças à teimosia do seu dono, se manteve aí incólume às intempéries da vida. Deixou de fazer sentido a adoração por aquilo que agora tinha a certeza de que era uma miragem. Porém, Marilu era real, quiçá, a recompensa de tanto ano de redenção, a pessoa que a final lhe permitiu compreender a razão de ser da sua existência. E estava aí a seu lado, acompanhando-o à espera do combóio que o levaria para a eternidade.

Quando ela retornou, os seus olhos já não mexiam, abertos, mas sem mira. Ela entendeu e estava pronta. Foi à secretária e abriu a gaveta, donde retirou a fotografia de Benita para a colocar sobre o seu peito. 

“Nico… Nico.” – chamou por ele suavemente. Seus olhos ainda responderam, concentraram-se nela. Beijou no retrato, mas deixou-o deslizar-se para o chão. Puxou-a perto de si. Ela cedeu e encostou o seu ouvido junto da sua boca, quando seus lábios trémulos principiaram a pronunciar uma palavra. Fechou os olhos quando Nico se calou e beijou-lhe longamente a mão que se arrefecia. Murmurou-lhe, então, em cântico.

“Como fué, Nico. No sé decirte como fué…no se explicarte qué pasó….pero de ti me encanté… Muchas gracias Niquito!”

E ficaram assim conversando em silêncio, cada um querendo reter a imagem do outro na hora do adeus.

 

Era domingo quando o corpo de Nico recebeu as últimas bençãos, na capela do Cemitério de S. Miguel. Muito pequena era a assistência, algo que Marilu já esperava. Não obstante, fez questão em cumprir todas as regras sociais, participando à imprensa o óbito e a data das exéquias, tanto em português, como em chinês. Fez o melhor ao seu alcance para que fosse identificado, mencionando as suas alcunhas e até características físicas. Nico fora sempre muito solitário e uma limitada assembleia não surpreenderia.

Pediu ao padre que lhe permitisse a por a tocar uma música durante a missa, num momento de pausa nas preces. Ficou combinado que o fosse apenas por um minuto e meio.

Queria tanto concentrar-se na homilia, sentir as palavras, quando o padre dizia maquinalmente que o finado jamais morreria se tivesse fé em Cristo. Porém, não logrou fazê-lo. Nico estava bem presente na sua mente e ainda que não tivesse tido fé alguma, nunca morreria dentro dela. Enquanto o padre rezava a missa ela percorria a sua memória, como se vasculhasse livros de uma biblioteca. E reviu todos os momentos mais significativos da sua relação com um homem que nunca sonharia encontrar. Evocou a memória de se ver ao espelho com ele atrás, por onde aprendeu a aceitar-se e se convencer da sua beleza apesar dos padrões convencionais, viu-se mulher de paixões fortes enaltecidas por uma dança que lhe restituiu a dignidade que ela própria menosprezou.

Sentada, os seus pés sapateavam suavemente, ao ritmo de Beny Moré, das maracas, congas, bongos e guiros, no momento combinado para a música. Ocorria-lhe a imagem da charanga da avó Consuelo, que ele tanto contava. Fantasiou conversar com Benita de mãos dadas.

No momento em que o caixão descia para a cova, uma borboleta pousou no seu ombro. Quem sabe se não era ele sob outra forma a dizer-lhe adeus, pensou Marilu. A saudade era imensa, mas não estava triste. Talvez chorasse quando chegasse à casa, mas naquele momento queria estar a seu lado até o fim, como prometera, com a determinação a que se habituara com ele. Pensou na sua própria mãe e nos seus meio-irmãos e depois no seu pai português da Marinha Grande, e encolheu os ombros. Quem seriam eles para ela, não soube responder. E que importava naquele momento? Mas sabia o que Nico era para ela.

A caminho da saída, chamou por ela um padre, com acentuada pronúncia castelhana.

“Perdoe-me, vi a senhora todo o tempo junto do falecido, achei que devia ter sido uma pessoa muito chegada a ele. Queria lhe dizer que o senhor Nicolás D’Aragón foi um grande homem. Uma mão muito importante para os refugiados de Vietnam, juntou famílias dispersas, construiu carros de madeira para os meninos, bonecas de pano para as meninas. A nossa congregação deve-lhe muito e para perpetuar a nossa gratidão, você pode ficar a viver  na sua casa pelo tempo que quiser, tal como o fez o senhor Nicolás em vida.”

Marilu apenas acenou agradecida com a cabeça, mas não respondeu. E continuou o sacerdote, com uma caneta sobre um bloco de notas:

“Para registo apenas, posso saber o seu nome e a sua relação com o Sr. Nicolás?”

“Maria Lúcia …”

Não prosseguiu mais, quando o bolero começou a soar na sua mente, com a imagem dele lhe entregando a bela muñequita na noite dos seus anos. Não era de cabelos de ouro, nem lábios de rubi. Era delgada e na saia estava inscrito o seu nome. Foi para ela a boneca. Só para ela, sem ter de compartilhar com ninguém. Entendeu.

Olhou então para o seu interlocutor e sorriu.

Mi nómbre és Marilu D’Aragón. Soy su hija.”

 

Macau, 17 de Janeiro de 2020, sexta-feira

 

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(1) Da canção “Mucho Corazón” (Emma E. Valdemar)

2 thoughts on “CHI-CA-POM, O BOLERO IMPROVÁVEL

  1. Miguel Senna Fernandes, adorei todas as linhas deste lindo conto que escreveu e partilhou. Abraço amigo. Armanda Ferreira

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