O Filho da Porta

“MOM-TIA … Goo-molling … chou san!”.

Assim anunciava com a sua voz forte e nessa linguagem peculiar, o começo do dia no edifício “Veng San” (永新), 

“Eternamente novo”, como seria traduzido para português, o auspicioso e bem intencionado nome desse edifício. Efectivamente, assim se esperava quando acabou de ser construído, nos finais dos anos setenta do século passado, com uma traça arquitectónica moderna fora de comum para altura, com tons sóbrios de verde esbatido nas partes salientes e branco no fundo. Com quatro fracções por cada dos seus quinze pisos, albergou parte da grande vaga de quadros portugueses do início da década seguinte, numa altura em que também aí estavam os então jogadores hispânicos da pelota basca. Mais tarde, absorvera ainda algum do contingente australiano, que vinha para as corridas de cavalo a trote, na então remota Taipa.

Sem surpresa, o velho Kong Va aprendera a lidar com esse universo multinacional, de gente de tão diversos mundos que por acasos de vida se encontravam a partilhar o perenemente novo edifício. Na verdade, não tinha de o fazer. Mas pelo seu feitio, nunca se limitaria a ser um simples porteiro.

refugeesFilho de pais refugiados da província de Fujian, entrou com cinco anos de idade em Macau, pelas Portas do Cerco em 1940, dias antes da queda de Hong Kong nas mãos dos japoneses. A vida não era fácil para chineses, encarados como povo inimigo pela potência belicosa de então, mesmo em solo neutro, como era o secular enclave português – o único ponto na imensa China, oficialmente em paz. Não foi preciso lição alguma para perceber, que para viver teria primeiro de sobreviver, e para isso tudo valia. Enquanto o pai puxava jerinxás e a mãe lavava a roupa da vizinhança, o pequeno Kong Va deambulava pela cidade, fazendo biscates, sendo moço de recados, assistindo senhoras no mercado, carregando os seus sacos de compra, apoiando os asilos de invalidez e de refugiados.

Desde muito moço, convencera-se de que precisava de uma receita estável e assim, sendo tarefeiro, teria que ser arguto, eficiente, conversador e, acima de tudo, discreto, para ganhar confiança de todos quantos regularmente assistia. Não obstante a fome à espreita, fazia questão em ser diferente dos outros, que se aproveitavam das situações para furtar. Tinha que se dar com todos. Tudo para garantir que ao jantar houvesse um pouco mais de arroz, para além do que o suor de seus pais trazia para as suas tigelas.

Não conheceu a infância, pois cresceu depressa e cedo se virou adulto. Duro de físico, era libente de espírito,  graças ao que conheceu e cruzou com muita gente. Não falava português, nem inglês. Mas, fazia-se entender nessas línguas com um léxico próprio, completando-se com sons, bocados de palavras, olhares e gestos de uma comunicação universal.

IMG_2145Sabia quem seria novo inquilino e quem deixara de o ser, as horas que todos entravam e saíam. Resolvia o problema de todos, desde o entupimento dos canos até as falhas da recepção televisiva. Se não podia arranjar por si, chateava quem o pudesse e devesse fazer. Homem sensato que entendia as questões em poucas palavras. “Nâm pissisa falâ… Kong Va sábi tudo!” (1)Acima de tudo, mantinha a ordem e fazia o trabalho que nem todos teriam o desplante de fazer.

Não poucas vezes viam-no a descompor meninos mal comportados que jogavam a bola no átrio da entrada. “Minino-malánto nâm-póte!” (2)era o seu vernáculo, ao que não admitia réplica.

Ou então, quanto à viúva do terceiro andar “A”, tornada aluna do Conservatório que flagelava à noite meio mundo com uma ária esganiçada, era ele quem bateria à sua porta, com mãos à cabeça, para um implorado “Aia! sióla, muto balúio … nâm-póte dumí!” (3).

Farejava esturro à distância, e quantas vezes não se o ouvira dirigir-se ao forasteiro de mau-olhado, com um sonante “Kat-chât-lou” (4) ou mesmo no seu castiço português  “Puta-caláio vai casa!”. Dizia-o com tanta autoridade que raramente tinha de fazer valer os atributos físicos que lhe dera o calvário da sua vida. Apesar de possuir mãos para estalo e murro, também levava sova de quando em vez, mas o agressor cogitaria a dobrar, antes de planear um novo retorno ao prédio.

Sabia das virtudes e defeitos de todos, que à surdina da noite se revelavam. Mas, mantinha a sua boca selada, qualidade que fazia questão em honrar. IMG_8028O seu silêncio mantinha-o indefinidamente seguro, com autoridade moral para assegurar a ordem no edifício. Aliás “que ganho eu com os podres dos outros, senão a podridão de um cusco?”, dizia ele aos seus botões.

Para uns ele era um filho da mãe – “com um P bem soado!”, como insistia um inconformado. Para outros, o filho do Divino colocado à porta do edifício, para a paz e sossêgo de todos.

Porém, anos passaram e coisas mudaram. Foram-se as pessoas e os ventos sopraram para outros nortes.  O tempo não poupou o já velho edifício, cujo nome passou a ser uma ironia. O verde esbatido era agora mais musgo que tinta, que se alastrava pelo branco, por sua vez já acinzentado.  Nos corredores já não se ouvia português, nem o já idoso Kong Va exercitava o seu invulgar vocabulário. Em seu lugar, passou a ser o inglês com forte pronúncia de tagalog, o mandarim ou então um cantonês amandarinado. Já não tinha tanta força nas pernas para subir e descer pelas escadas do edifício. E tudo se abandalhou.

Não obstante, Kong Va exercia ainda alguma influência sobre a manutenção da ordem, resolvendo à sua maneira as dores de cabeça de todos. Até que chegou um novo inquilino, com características bem diferentes. Mais implicativo e crítico de tudo quanto existia no edifício. IMG_6048Sujeito franzino, de bigode, com um penteado do tipo tapa-carecas, Kenneth Tam vinha de Hong Kong, com ideias muito próprias sobre a gestão de condomínio, à custa do que desdenhava “o atraso de vida” reinante em Macau. Repugnava-lhe no prédio o ambiente “terceiro-mundista” oriundo da “promiscuidade de nacionalidades”, como qualificava. Não nutria confiança por quem não fosse semelhante a ele.

Estava de peito feito para implementar grandes mudanças, quando se tornou administrador. Afinal, dizia, protegia a sua propriedade e o investimento de todos os condóminos, o que lhe merecera aplauso de todos e legitimidade bastante para se impôr. Encheu as paredes de avisos e notificações. Passou a haver regras para tudo e assembleias gerais a todo o tempo.

A única coisa interessante em Kenneth, era tão-só que se casara com alguém que nada tinha a ver com ele. De pele alva, tatuada nas vistosas costas, stockings-hiheelde altura mediana, cabelos lisos e sedosos, seios pequenos mas orgulhosos, ancas ágeis, ela tinha compleição física que faria ressuscitar qualquer alma condenada à morte eterna. O som dos saltos que o seu bamboleante e pausado andar causava sobre o chão de mármore, prenunciava pecado aos homens e  ciumeira violenta às suas mulheres.

Até o velho Kong Va franzira as sobrancelhas quando pela primeira vez a vira e inalara o seu aroma de sândalo. Contudo, para ele o espectáculo durou pouco, pois foi das primeiras vítimas do “grande salto para a frente” no prédio. Recebera a carta, tal como os seus colegas seniores, de que não se lhes renovaria o contrato de prestação de serviços de vigília. O novo plano de reabilitação do edifício não se compadecia com o amadorismo de um punhado de idosos, requeria antes o profissionalismo de uma empresa de segurança. Não se revoltara contra isso, pois o seu bom senso já o tinha precavido dessa data, vários anos atrás. Mas as duas semanas que lhe deram para resolver a sua vida tornaram-se martirizantes.

Na noite em que se despedia de todos, decorria mais uma assembleia geral de condóminos, em que Kenneth vangloriar-se-ia dos seus últimos feitos, desta vez apresentando a todos a nova equipa de vigilância que contratara. No quarto adjacente à portaria, Kong Va despachava a sua quinquilharia acumulada no decorrer do tempo, desde bocados de gaiola, até rodas de carrinho de bebé, quando um grito histérico se soou nos corredores. Alguém andou a urinar no elevador e ninguém quer saber, que vergonha, ouvia-se. O administrador, irado com a interrupção que o malfadado brado causara, embaraçado com o comentário pouco lisonjeador, foi logo ter com Kong Va. Antes que este iniciasse uma careta, vociferou.

“Estou-me nas tintas se é o teu último dia. Quero saber quem anda a sujar o meu prédio! Onde mora e com quem. E tu vais-me dizê-lo com todo o pormenor que eu queira!”

“Sim, Sr. Tam. Percebido”. Iria ser esmifrado até o último momento, foi o que bem depreendera daquele tom de voz e dos olhinhos de tacanhez. Não obstante, encolhera os ombros e não reagira. Iria honrar o seu compromisso até o último segundo, como também sabia há muito ser da sua sina.

lambaz

Dirigiu-se ao elevador, com balde de água e lambaz e observou a poça. Não era volumosa. Não era canina, nem felina. O odor não acusava álcool, nem consumo de fritos. Se o sujeito estava aflito, teria descarregado litros e nunca seria no elevador, pensou. Ou então, estando aflito, não seria adulto. Não vira alma nenhuma, apenas se ouviam aplausos efusivos que se ressoavam da sala improvisada para a reunião dos condóminos. Encolheu os ombros e pôs-se a limpar a sujidade.

Pressentiu que não estava só. As paredes velhas do edifício pareciam sussurar-lhe sobre uma alma tímida à espreita num canto do longo corredor. Kong Va fingiu não dar por isso e resolveu introduzir-se no elevador à espera de um movimento do exterior. Prevendo uma correria que passaria pelo elevador, só teve de esticar o pau do lambaz na altura certa. O suficiente para fazer tombar um gigante. Porém, o que se estatelou no chão fora algo que confirmara as suas suspeitas.

“You?” Kong Va reconheceu-o, mirou para o local molhado e fixou nele os seus olhos julgadores.

filipino_boyPlease Sir, patawad po (5)! I didn’t mean to be a masamang bata (6), Sir. But I couldn’t go home, don’t be mad at me, please Sir!”, desfazia-se o pequeno em pranto, quer de pavor, quer de vergonha, enquanto os seus calções se encharcavam de urina.

“You velly malánto! Nei-tou no toilet! You want shi-shi… you go out!” (7)Exclamou o velho, no vernáculo de que já sentia saudades.

“No time, sir, I’m so sorry. It won’t happen again! Please don’t tell my dad!

Antes de terminar a frase, já o menino fora puxado para dentro do elevador e Kong Va pressionando o botão de subida para o 11º andar. Ignorando as suas súplicas, foi direito ao seu apartamento.

À porta ouviam-se murmúrios ritmados em contrabalanço com um martelar compassado, mal se discernindo, contudo, se era metal contra a parede, se madeira contra o chão. O certo é que a campainha tocava e ninguém correspondia. Kong Va, bem ciente do que se passava aí dentro, já não tinha a paciência de outrora, cerrou o punho e deu três pancadas fortes à porta de madeira. Rapidamente cessou a martelada, mas nem por isso a chamada foi atendida. Mais três murros se seguiram, cada um mais forte que o outro.

A porta abriu-se por fim e saiu de lá Aquilino, um filipino, arfando descalço e seminu. Fitou no olhar frio e penetrante do velho porteiro, com a mão dada ao seu filhote, ranhoso e de calções molhados, e percebera da borrada em que se metera. Juntou as mãos em posição de prece.

Pa...pataw…”.

A manápula rugosa do velhote no pescoço franzino do filipino, impediu que ousasse a acabar a frase. Apontou o seu indicador directamente para o seu nariz.

“Nest time you tiu-hai, boy stay and shi-shi home. Chi-ng-chi-tou?! I call police!” (8)

Aquilino sentira uma vontade súbita de repetir a façanha do seu pequenote. Kong Va, porém, olhou por cima dele, para a escuridão. Não viu ninguém, mas inalara e franzira as sobrancelhas. Meneou a cabeça, suspirou fundo e deixou o filipino em paz, ante o seu atarantado filhote. Tinha cumprido o seu papel, não precisava de mais.

Já em baixo de novo no seu poiso, continuou a lidar com a sua bugiganga. Nessa altura, tinha terminado a assembleia geral e Kenneth transpirava vitória. O administrador prontamente se dirigiu ao estaminé do velho.

“Então, o que me contas? Solta a língua!”

Foi um puto que estava aflito e que não conseguia entrar em sua casa. Nada de mal, não se preocupe. Já está com o seu pai e já limpei tudo o que tinha que limpar, Sr. Tam.”

“Casa de quem? Casa daquela gente?”

Kong Va apenas baixou as suas pálpebras. “Está resolvido, Sr. Tam. Já lhe chamei a atenção, asseguro que…”

“Eu fiz-te a pergunta. Responde sim ou não!”

“Sim, Sr. Tam.”

“E quem mais estava dentro de casa?”

Não vi mais ninguém. O que está dentro de casa, não é da nossa conta, Sr. Tam.”

“Tens a fama de saberes de tudo e agora não viste mais ninguém? Sou o administrador tenho o direito de saber que gentalha mora aí. Não te armes em espertinho, quem mais esteve naquela casa, seu velho canalha?! “

As pálpebras do velho semicerraram. Havia muito que não exercitava os músculos que a sua vida lhe dera, de cuja rigidez não duvidava. Com a mesma mão que apertara o pescoço de Aquilino, segurou a gravata de Kenneth e puxou-o para si. E sem pestanejar mirou nos aturdidos olhos do administrador. E segredou:

“A sua mulher, acredita se quiser! E diga-lhe que sândalo sai-se muito mal com o fedor de  suor, Sr. Tam!”

Fez-se silêncio fúnebre no “Veng San”. Não mais foi importunado até ele deixar o local.

Enchera com os seus haveres e pequenas lembranças um saco de plástico rijo com listras de cor azul e rosa e arrastou-o para o corredor. Olhara para o relógio, quando badalara a meia-noite. Chegara o fim desta longa etapa da sua vida. Os seus incansáveis olhos percorriam pelos cantos do edifício, pela derradeira vez. Muitas das paredes levavam já a nova pintura encomendada por Kenneth. Ficaram vistosas, com tons alegres e joviais, um ar de novidade se introduzia no edifício, lufando frescura. Fez-se jus ao seu nome que afinal não era mera ironia.

Mas para Kong Va, cada canto era uma voz, cada ranhura um grito, um bocado de si que a nova pintura tratava-se de apagar. Em poucas horas de pincelada soterrava-se uma vida, para ganhar uma outra nova sem passado e de futuro incerto. Encolheu os ombros e saiu do edifício.

A lua resplandecia no firmamento. Olhou para trás, sorriu e também pela última vez se despediu do dia.

“Mo-nôte!” 

Macau, 8 de Junho de 2018, sexta feira.

© Miguel de Senna Fernandes

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(1) “Não é preciso dizer mais, Kong Va compreende tudo!”

(2)  “Meninos marotos, não podem (jogar à bola)!”

(3) “Ó minha senhora, é muito o barulho … ninguém dorme!”.

(4) Calão cantonês correspondente a “Vai p’ró c*ralho!”.

(5) “Peço perdão” em tagalog (filipino).

(6) Traquinas, em tagalog.

(7) “És um maroto. Isto aqui não é uma retrete. Queres xi-xi, tens de sair (do prédio).

(8) “À próxima que f*deres, o teu puto fica e mija em casa. Entendes?  Ou eu chamo a polícia!”

 

13 thoughts on “O Filho da Porta

  1. First time I read any of your short stories….really liked It! Somewhat made me think of my childhood in Macau. Thank you! X

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